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Ser e Pensamento

Não se podendo fugir a esta evidência, há necessariamente que concluir que todo o ser é sob a forma interior da consciência ou, se se quiser uti- lizar uma linguagem mais clássica, que todo o ser é sob a forma de pensamento, que todo o ser é pensamento.148 Não se confunda esta úl-

tima afirmação com essoutra que dissesse que tudo é sob a forma de pensamento, – pensamento humano, claro está –, pois o acto não en- tra aqui, dado que não é possível um pensamento do acto senão sob a forma de ser, melhor, é a divisão participativa do acto em sujeito e objecto que institui quer o ser, produto objectivo, quer o pensamento,

também a evidência, que é a nossa, a do nosso próprio e inegável acto de ser, da plurivocidade manifesta, presente, do infinito. Assume que a única unicidade e uni- vocidade possível é a do infinito. O infinito é o único possível e a única voz perante o nada. Mas esta voz única é infinita. Nisto aproxima-se do sentido escotista da univocidade. A participação é a demonstração quer da univocidade quer da pluri- vocidade infinita do infinito, mas também a manifestação da sua não-equivocidade. Daqui decorre necessariamente o acto como algo de intrinsecamente marcado pelo valor: “[...] toute valeur réside dans l’exercice d’une activité désintéressé où l’infini se trouve toujours enveloppé.”, T.V.I, p. 415 ([...] todo o valor reside no exercício de uma actividade desinteressada em que o infinito se encontra sempre envolvido.).

148C.S., pp. 306-307: “On ne possède que ce que l’on pense au moment où on le

pense. [. . . ] Or la possession des biens de l’esprit comme celle de tous les vrais biens ne se distingue pas de l’opération qui les fait être : quand elle s’en distingue, c’est qu’on les a perdus.” (Não se possui senão o que se pensa, no momento em que se o pensa. [...] Ora, a posse dos bens do espírito, como a de todos os verdadeiros bens, não se distingue da operação que os faz ser: quando deles se distingue, quer dizer que se perderam.).

produto subjectivo, dessa instituição. O ser é o lado de cá da consciên- cia, é-lhe co-extensivo, os dois em indissociável conjunto acto podem receber o nome de pensamento. Este esgota o ser, dado que com ele se confunde, mas não esgota o acto, aliás, directamente nem mesmo o aflora nem mesmo o pode aflorar ou confundir-se-ia com ele.

O ser é a totalidade do pensamento. É a totalidade do pensamento em acto, quer individual, – e o pensamento é individual, e apenas indi- vidual, dado que é ele que institui o indivíduo –, quer universalmente considerado, se se quiser, por abstracção não totalmente legítima, juntar teoricamente isso que seria o somatório geral das parcelas possíveis dos vários actos de pensamento, supostamente exercidos ao mesmo tempo, sem se considerar que o tempo é apenas interior a cada acto de pen- samento e não faz sentido num entre-acto de pensamentos: são mun- dos diferentes, que não comunicam por um exterior das suas fronteiras próprias, onde nada há e nada é possível, mas pelo eco interior que a presença dos diferentes actos de ser acorda na interioridade mesma de cada consciência, eco que remete necessariamente para algo de co- mum, imanente, mas transcendente a cada uma e a todas as diferentes consciências e que, por isso, permite o seu encontro, não como uma forma de penetração de umas no interior das outras, que as destruiria na sua individualidade própria sua instituidora, mas como forma de re- conhecimento em si de algo que se apresenta como quer pertencente às outras quer pertencendo a si mesma, mas com estatuto de autonomia e de independência relativamente a todas:

“Dès lors, si c’est le rôle de la matière de séparer les êtres les uns des autres, le rôle de la conscience, c’est de les unir en faisant de cet obstacle même le moyen de leur union ; son essence propre est de pou- voir pénétrer partout. C’est elle déjà qui crée autour du corps cet espace lumineux dans lequel s’engagent à la fois le regard, le mouvement et le désir. Dans cet espace, tous les êtres sont situés comme nous ; autour de chacun d’eux se forme un cercle de clarté dont l’ampleur est mesu- rée par la puissance même de sa pensée et la pureté de son intention. Tous ces cercles se croisent : ils possèdent certaines zones communes

qui figurent, pour ainsi dire, les moyens dont disposent les différentes consciences pour entrer en rapport entre elles et certaines zones propres à chacun et qui témoignent de l’irréductibilité de chaque conscience particulière. Ainsi c’est la conscience qui permet au moi de se quitter et de communiquer avec un autre moi par l’intermédiaire d’une réalité qu’ils perçoivent tous les deux : les objets qui remplissent l’espace, les souvenirs qui peuplent le temps, les idées qui habitent l’intelligence, forment entre tous les êtres les véhicules d’une communication vivante qui doit toujours être refaite et demeure toujours en péril. Elle oblige chacun d’eux à une prise de possession personnelle de l’objet, du sou- venir e de l’idée, qui ne coïncide jamais exactement avec celle d’un autre et doit être confrontée avec elle pour s’éprouver, se préciser et s’enrichir indéfiniment.”149

A comunicação não se faz de consciência a consciência, passando por uma não consciência mediadora, mas dentro de cada consciência,

149M.S., pp. 105-106 (Ora, se constitui papel da matéria separar os seres uns dos

outros, o papel da consciência é uni-los, fazendo daquele mesmo obstáculo o meio da sua união; a sua essência própria consiste em poder penetrar por toda a parte. É já ela que cria em torno do corpo este espaço luminoso no qual se empenham simultanea- mente o olhar, o movimento e o desejo. Neste espaço, todos os seres se encontram situados como nós; em torno de cada um deles forma-se um círculo de claridade cuja amplitude é medida pela mesma potência do seu pensamento e pela pureza da sua intenção. Todos estes círculos se cruzam: possuem certas zonas comuns, que repre- sentam, por assim dizer, os meios de que dispõem as diferentes consciências para entrar em relação entre si, e certas zonas próprias de cada uma, que dão testemunho da irredutibilidade de cada consciência particular. Deste modo, é a consciência que permite ao eu deixar-se e comunicar com um outro eu, por intermédio de uma re- alidade que ambos percebem: os objectos que preenchem o espaço, as recordações que povoam o tempo, as ideias que habitam a inteligência constituem, entre todos os seres, os veículos de uma comunicação viva, que deve sempre ser refeita e que permanece sempre em perigo. Obriga cada um deles a uma tomada de posse pessoal do objecto, da recordação e da ideia, que nunca coincide exactamente com a de um outro e deve ser confrontada com ela, a fim de ser testada, de ser precisada e de se enriquecer indefinidamente.).

pela presença no seu interior das outras em acto,150 isto é, no acto de

ser de cada acto de ser humano está presente o acto de ser dos outros actos de ser, não como um reflexo ou como um fenómeno exterior de algo interior que se mostraria, em parte do que é exteriormente, sendo esta exteriorização o que se apreenderia desse acto de ser outro. A presença de cada acto de ser humano, a presença que o constitui é uma forma de participação do acto puro, fonte de todo o acto. Deste modo, qualquer presença é fruto da participação desse acto de ser do acto puro. Qualquer. A presença de qualquer ser é fruto desta participação. A presença de um outro acto de ser humano no seio do que é o meu acto de ser é fruto da participação do meu acto de ser do acto puro.151

Aparentemente estranha, esta afirmação compreender-se-á facilmente percebendo que a participação não é apenas o acto de auto-co-criação de esta ou aquela presença, mas o acto geral da criação de todas as pre- senças e de toda a presença, criando neste mesmo acto a presença dos seres uns aos outros, na sua individualidade e na sua comunidade. No acto de criação do todo da presença, cada presença participa do acto puro, sob a forma já participada de ser, ser que é o seu ser, mas não

150M.S., p. 112: “C’est dire que si la création d’un être, c’est la possibilité qui

lui a été donnée de se créer lui-même, chacun de nous sent bien qu’il ne peut se créer qu’avec la collaboration de tous les êtres qui sont mis sur son chemin. Il n’y a de communion que dans l’exercice d’une activité à la fois personnelle et commune. Toute communion est une co-création de soi et d’autrui indivisiblement par autrui et par soi.” (É o mesmo que dizer que, se a criação de um ser é a possibilidade que lhe foi dada de se criar a si mesmo, cada um de nós sente bem que não se pode criar senão com a colaboração de todos os seres que foram postos no seu caminho. Toda a comunhão é co-criação de si e de outro indivisivelmente pelo outro e por si.).

151 M.S., p. 111: “Au contraire la communion met en présence les êtres eux-

mêmes par une interpénétration de leur vie et non pas seulement de leur pensée. Mais on comprend sans peine qu’elle n’est pas possible si chacun se porte directement au-devant de l’autre au lieu de se tourner d’abord avec lui vers la source de leur com- mune inspiration.” (Pelo contrário, a comunhão põe em presença os próprios seres, por meio de uma interpenetração da sua vida e não apenas do seu pensamento. Mas compreende-se sem dificuldade que ela não é possível se cada um se puser directa- mente em frente do outro, em vez de primeiramente se voltar com ele para a fonte da sua comum inspiração.).

deixa de ser, também, o ser que é parte do todo da participação, ser único e irredutível ou irrepetível:

“Sans doute on n’a pas tout à fait tort de penser que je ne pourrais saisir la nature d’un autre être qu’en me changeant en lui, qu’en réali- sant ainsi un commencement de métamorphose. Mais une telle idée ne doit pas être poussée trop loin ; car cette métamorphose est elle-même une œuvre de l’imagination : elle m’aliène à moi-même au moment où je pense qu’elle m’unit à un autre. Toute véritable union laisse subsis- ter l’indépendance entre les êtres : elle veut cette indépendence sans la- quelle leur vocation personnelle et mutuelle serait perdue au lieu d’être fondée et justifiée. Il serait donc faux de penser que la communion en- tre les consciences abolit leur diversité. On pourrait dire plutôt qu’elle la pousse jusqu’au dernier point et lui donne sa véritable signification. Je ne me sens jamais plus moi-même que lorsque mon action s’accorde avec la vôtre, mais sans lui ressembler pourtant ni se confondre avec elle. C’est une erreur très grave de croire qu’en abdiquant cette origi- nalité individuelle qui m’assigne dans le monde une mission unique, je parviendrai à me rapprocher de vous dans un domaine anonyme fait de répétitions et d’imitation. Pour être uni à vous, pour vous compren- dre, pour vous aider, il faut que je sente que votre vie vous appartient, qu’elle ne double point la mienne, qu’elle se détache en un autre point sur le tronc commun de l’existence, mais qu’elle est parcourue par la même sève.”152

152M.S., p. 111 (Não há dúvida de que não se está errado quando se pensa que

eu não poderia apreender a natureza de um outro ser senão transformando-me nele, realizando, deste modo, um começo de metamorfose. Mas tal ideia não deve ser levada demasiado longe, pois esta metamorfose é, ela mesma, obra da imaginação: aliena-me de mim mesmo, no momento em que penso que me une a um outro. Toda a verdadeira união deixa subsistir a independência dos seres: ela quer esta independên- cia, sem a qual a sua vocação pessoal e mútua seria perdida, em vez de ser fundada e justificada. É, então, falso pensar que a comunhão entre as consciências abole a sua diversidade. Pode-se dizer, antes, que a prossegue, até ao ponto último, e lhe dá a sua verdadeira significação. Nunca me sinto tanto eu próprio como quando a minha acção se põe de acordo com a vossa, mas sem, no entanto, se lhe assemelhar nem com ela se confundir. É um erro muito grave acreditar que, abdicando desta originalidade

O ser da consciência, – que não o seu acto, a consciência não tem acesso directo ao seu próprio acto –, e a consciência do ser são o mesmo e são o que se costuma denominar pensamento. A interioridade da consciência não é nem subjectiva nem objectiva, mas toda ela ser, que não é nem subjectivo nem objectivo, mas pensamento, isto é, a forma própria da presença do acto à consciência e a forma própria do acto de consciência, acto que encerra em acto todo o ser em acto, bem como toda a possibilidade de ser. É esta acessibilidade que o homem tem ao que é. Esta não é o ser, no sentido de que o esgota, mas é o ser realmente à nossa medida, não que lha imponhamos, mas porque somos feitos com ela, nós e o ser, nós, o ser.

Deste ponto de vista, o ser é sempre humano. Não é possível qual- quer referência a algo que possa não ser marcado pelo modo próprio da presença humana, própria do acto de ser humano. No mais profundo do que lhe parece ser a realidade trans-humana, objectiva, se se quiser, o homem encontrará sempre a marca do homem, pois qualquer caminho para lá chegar foi exactamente o caminho do homem para lá chegar e o fim desse caminho é o fim do caminho que o homem fez para lá chegar. O homem, não algo de diferente. Mesmo num regime em que a razão última de tudo fosse dada em absoluta gratuidade,153 isto é, que fosse

revelada por algo de diferente do homem, essa revelação seria feita ao homem e, portanto, teria de ser feita à medida do homem, capaz do

individual, que me consigna no mundo uma missão única, conseguirei aproximar-me de vós, num domínio anónimo, feito de repetições e de imitação. Para estar unido a vós, para vos compreender, para vos ajudar, é necessário que eu sinta que a vossa vida vos pertence, que ela não duplica, de modo algum, a minha, que se destaca, num outro ponto, do tronco comum da existência, mas que é percorrida pela mesma seiva.).

153 Ainda assim, indiscernível do acto de presença, próprio de cada acto de ser

humano, da sua participação: “Quand la grâce est présente, nous cessons de regarder vers l’avenir, de désirer et même d’espérer : nous sommes comblé. Et le signe de la grâce, c’est que le présent est toujours pour nous surabondant.”, C.S., pp. 303-304 (Quando a graça está presente, deixamos de olhar para o futuro, de desejar e mesmo de esperar: estamos cumulados. E o sinal da graça consiste em o presente ser, para nós, sempre superabundante.).

homem, de modo a permitir que o homem fosse capaz dela e, assim, nova e irredutivelmente marcada pela inamissível dimensão humana. O sentido, que, em última análise se confunde com o próprio ser do homem, que é semântico, por essência, é sempre humano; a negação desta necessidade implica a negação do próprio humano, num acto que, paradoxalmente, o afirma.

Não há modo de fugir a esta evidência: visto o ser deste modo, nós somos o ser, o ser é tudo o que somos e nós somos todo o ser, tão grandes ou tão pequenos um quanto o outro e um pelo outro; mas o ser não é tudo, é só isso que nós somos.154 O resto é o infinito em

acto, de que o ser é apenas esta nossa parte participada e, por isso, finita. A finitude é não o preço e muito menos ainda o prémio de algo que de nós dependa, mas tão só a marca de fabrico desta realidade do ser, que não pode ser infinita porque já não é um acto puro, um puro acto, porque já é o nosso modo próprio, nosso porque acto dividido, acto dividido para ser nosso, posse a efectuar pela realização do valor, preço da possibilidade do absoluto da nossa liberdade. As implicações éticas, políticas e teológicas desta descoberta são fundamentais:

“Dans cette double démarche par laquelle elle pose le possible et le réalise, la liberté est tour à tour intelligence et volonté. Seulement elle n’aurait aucun mouvement pour nous détacher du réel, pour imaginer le possible et pour l’actualiser, si elle n’était pas animée par l’amour de la valeur, qui est le simple amour. Sans lui la liberté serait inerte et res- terait elle-même un pur pouvoir qui ne s’exercerait jamais. C’est lui qui l’oblige à entrer en jeu, qui romp l’indiférence, qui fonde l’option, mais qui va bien au delà. Il pose la valeur comme la pensée pose le possi- ble, mais il nous oblige à poser d’abord le possible pour poser la valeur, dont il exige ensuite qu’elle se réalise. Il naît lui-même dans l’intervalle qui sépare notre activité propre de l’absolu dont elle procède : il cher-

154Há um óbvio corolário para esta afirmação: cada homem possui, e possui porque

é, um mundo de ser e do ser exactamente à sua medida, um mundo medíocre para homens medíocres, um mundo grande para homens grandes. O mesmo se passa com as filosofias e os filósofos, profissionais ou não.

che sans cesse a le combler. Le terme valeur évoque à la fois la fin vers laquelle il tend et la raison qui le justifie. C’est la liberté parfaite, c’est-à-dire qui a trouvé sa propre nécessité, qui se change elle-même en amour.

On pourrait dire qu’il y a entre la valeur et l’amour un rapport com- parable à celui que nous avons établi entre l’être et l’acte. La valeur paraît plus proche de l’être et l’amour plus proche de l’acte, mais l’acte est au centre de l’être, bien que l’être en paraisse l’effet, comme la valeur est au centre de l’amour, bien que l’amour semble l’engendrer. La valeur, c’est l’être même défini comme objet d’un suprême intérêt, c’est-à-dire d’un acte d’amour. Et on peut dire encore qu’elle ne fait qu’un avec l’amour où l’être et l’acte s’identifient. [. . . ] On peut donc dire que l’amour est l’acte par lequel la liberté affirme la valeur. Il est le oui suprême donné à la vie, qui se renouvelle dans chacune de nos pen- sées et dans chacune de nos actions à travers beaucoup de difficultés, d’obstacles et de périls.”155

155T.V.I, pp. 429-431 (Neste duplo movimento por meio do qual põe o possível

e o realiza, a liberdade é concomitantemente inteligência e vontade. Só que não teria movimento algum para nos destacar do real, para imaginar o possível e para o actualizar, se não fosse animada pelo amor do valor, que é o simples amor. Sem ele, a liberdade seria inerte e permaneceria em si mesma um puro poder que nunca se exerceria. É ele que a obriga a entrar em jogo, que rompe a indiferença, que funda a opção, mas que vai bem mais além. Põe o valor, como o pensamento põe o possível, mas obriga-nos a pôr primeiro o possível, a fim de pôr o valor, cuja realização, de seguida, exige. Ele próprio nasce no intervalo que separa a nossa actividade própria do absoluto de que procede: procura sem cessar preenchê-lo. O termo valor evoca, ao mesmo tempo, o fim para que tende e a razão que o justifica. É a liberdade perfeita, quer dizer, que encontrou a sua própria necessidade, que se transforma, ela mesma, em amor. Poder-se-ia dizer que há entre o valor e o amor uma relação comparável àquela que estabelecemos entre o ser e o acto. O valor parece mais próximo do ser e o amor mais próximo do acto, mas o acto está no centro do ser, se bem que o ser pareça ser o seu efeito, como o valor está no centro do amor, se bem que pareça ser o amor a