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RESPONSABILIDADE DAS EMPRESAS CONCESSIONÁRIAS DE

Ao aprofundarmos o estudo da matéria, pudemos observar a existência atual de controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais que envolvem o assunto em apreço em dois pontos específicos.

O primeiro ponto diz respeito à ordem de responsabilização do Estado frente aos danos ocasionados a administrados em decorrência de serviço de transporte prestado por empresas concessionárias, discussão que se concentra na indagação acerca da possibilidade de ser a responsabilidade estatal de natureza solidária ou subsidiária.

O segundo ponto de discussão é afeto à aplicação ou não da teoria da responsabilidade civil objetiva às empresas concessionárias de transporte público em hipóteses de ocorrência de danos a sujeitos que, no momento da ocorrência do evento danoso, não caracterizavam-se como usuários do serviço de transporte.

Em virtude de estarmos estudando no presente trabalho tão somente a responsabilidade das empresas concessionárias de transporte público, nos concentraremos no segundo ponto de discussões jurisprudenciais e doutrinárias.

Até o ano de 2009, a jurisprudência de nossa Suprema Corte encontrava-se estabelecida no sentido de que as empresas concessionárias de transporte coletivo responderiam subjetivamente pelos danos ocasionados na prestação do serviço delegado a indivíduos que não se encontrassem utilizando o serviço de transporte prestado.

Assim sendo, na hipótese de algum transeunte ser atropelado por veículo que prestasse serviço de transporte público, aquele teria de comprovar a culpa na conduta do motorista do transporte de forma a possibilitar o ressarcimento dos danos suportados, do contrário concluir-se-ia pela irresponsabilidade da empresa concessionária frente aos danos suportados pelo administrado.

Tal jurisprudência tinha por argumentos a alegação de que no caso específico de prestação de transporte público por entidade privada delegada, o artigo 37, §6° da Constituição Federal estabelecia a aplicação da responsabilidade objetiva tão somente aos usuários do serviço, tendo em vista que somente a estes a Constituição intencionaria assegurar

a indenização sem a necessidade de discussão acerca de quem seria o agente culpado pelo dano, tendo em vista que seria tão somente o usuário o detentor do direito subjetivo de receber um serviço público ideal, excluindo-se do alcance da norma constitucional, assim, terceiros que não se encontrassem utilizando do serviço.

Ademais, como sustentáculo a tal teoria, era sustentado, ainda, que não se poderia dar alargamento desmesurado ao dispositivo constitucional, tendo em vista que tal alargamento poderia trazer consequências financeiras gritantes para as empresas concessionárias de serviços públicos, as quais fazem cálculos econômicos dos riscos que irão incorrer, riscos estes que seriam por demais alargados se a leitura do mencionado dispositivo constitucional fosse estendida aos não usuários do serviço.

Nesse sentido, vejamos a ementa do acórdão que decidiu o Recurso Especial nº 262.651/SP, a qual foi responsável por estabelecer jurisprudencialmente a teoria acima exposta.

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL.

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO: RESPONSABILIDADE OBJETIVA. PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO. CONCESSIONÁRIO OU PERMISSIONÁRIO DO SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO. C.F., art. 37, § 6º. I. - A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente aos usuários do serviço, não se estendendo a pessoas outras que não ostentem a condição de usuário. Exegese do art. 37, § 6º, da C.F. II.

- R.E. conhecido e provido.64

A nosso ver, tal entendimento se demonstra absurdo.

Primeiramente, antes de adentrarmos ao mérito constitucional da questão, deve-se esclarecer que a empresa delegada do serviço de transporte público, é, como já demonstrado alhures, uma prestadora de serviço, nos termos do artigo 3° do Código de Defesa do

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RE 262651 / SP - SÃO PAULO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO. Julgamento: 16/11/2005. Órgão Julgador: Segunda Turma. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28262651%29&base=baseAcordaos>. Acesso em: 31/05/2012.

Consumidor65, o que traz como consequência a aplicação das normas constantes naquele diploma legal.

Nesse contexto, o artigo 14 do mesmo diploma legal66 estabelece que a responsabilidade das empresas prestadoras de serviços se dará de forma objetiva, alargando o conceito de consumidor a todos os indivíduos que sejam lesados pela atividade do prestador de serviços, conforme artigo 17 do diploma em apreço 67.

Desta forma, já se configuraria a responsabilidade objetiva das empresas prestadores de transporte coletivo em face de terceiros lesados não utilizadores do serviço, sem a necessidade de socorrer-se ao artigo 37, §6° da Constituição Federal.

Por outro lado, ao analisar o caso sob o prisma constitucional, a conclusão não se modificaria, senão vejamos.

Inicialmente, deve-se observar que a atividade exercida pela instituição privada, no caso em análise, é um serviço público, o qual não tem sua natureza modificada pelo simples fato de seu exercício ter sido delegado a uma entidade privada.

Assim sendo, a atividade exercida pela pessoa jurídica de direito privado tem natureza público-estatal, devendo ser exercida em prol da coletividade. Nessa toada, não se faz justo que um particular seja obrigado a arcar com os danos provenientes de uma atividade que é desenvolvida visando o benefício de toda a coletividade. Assim, deve o particular, independentemente de serviço público se encontrar sendo exercido diretamente pelo poder público ou por empresa concessionária, ser ressarcido dos prejuízos suportados.

Por outro lado, a Constituição Federal, artigo 37, §6°, não faz qualquer distinção no que concerne a qualificação do sujeito passivo do dano. Exige o mencionado dispositivo

65Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. § 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

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Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

constitucional tão somente que haja dano, nexo causal entre este e atividade desenvolvida como serviço público, que a atividade da qual defluiu o dano seja considerada formalmente serviço público (preceito legal e contrato de delegação, nos termos legais) e que o agente causador do dano esteja no exercício de suas funções no momento em que der causa ao dano.

Podemos, ainda, argumentar que a interpretação do dispositivo em apreço não pode ser feita de forma divorciada dos princípios constitucionais. Desta maneira, ao interpretarmos a norma contida no artigo 37, §6° devemos levar em consideração o princípio da isonomia68. Assim, fácil é perceber a impossibilidade de se fazer distinções entre os “terceiros” nominados no dispositivo, não sendo autorizado dar tratamento diferenciado para usuários do serviço público e os não usuários, tendo em vista que tanto os primeiros como os últimos estão passíveis de sofrerem danos em razão da ação administrativa do Estado, seja ela realizada diretamente ou através de pessoas jurídicas de direito privado.

Absurdo se demonstra o argumento levantado no julgamento do RE n° 262.651/SP - São Paulo de que somente deveria ser aplicada a responsabilidade objetiva às concessionárias de transporte público, quando estes fossem ocasionados a usuários do serviço, tendo em vista que somente estes teriam o direito subjetivo de receber um serviço adequado. Ora, o serviço público tem por natureza o caráter de generalidade e, assim, deve estender-se a todos os cidadãos, os quais são beneficiários diretos da ação estatal. Nesse sentido, todos (inclusive os indivíduos que no momento da ocorrência do dano não caracterizavam-se como usuários) teriam direito de receber um serviço adequado, devendo, em consequência, ser aplicada a todos a proteção estabelecida pelo artigo 37, §6° da Constituição Federal.

Por outro lado, se o dispositivo constitucional ora analisado se referisse tão somente aos usuários imediatos/diretos do serviço de transporte público, a referida norma constitucional seria uma norma vazia, tendo em vista que a responsabilidade contratual do transportador frente ao transportado, já asseguraria a presunção de culpa por parte do transportador em caso de ocorrência de qualquer acidente, tendo em vista ser da natureza do contrato de transporte a obrigação de entregar o transportado são e salvo ao seu destino, o que tornaria a prescrição constitucional desnecessária. Desta forma, tal interpretação se torna descabida, sob pena de afrontar diretamente às técnicas interpretativas constitucionais

68Princípio estatuído pela Constituição Federal em seu artigo 5°, o qual estabelece tratamento jurídico igual para todos os sujeitos que se encontrem em mesma situação.

classicamente defendidas pela doutrina, as quais são meios de se obter o real significado das normas constitucionais, sobremaneira a Técnica da Máxima Efetividade69 e a Técnica da Força Normativa da Constituição70.

Ademais, a não aplicação da teoria da responsabilidade objetiva às concessionárias de serviço de transporte público figuraria como fraude a norma constitucional, senão vejamos.

A intenção da mencionada norma, como já mencionado, é dar maior segurança aos administrados frente ao risco criado pelo exercício da atividade administrativa.

Na hipótese de o serviço de transporte ser executado diretamente pelo Estado, a este seria imputada responsabilidade civil objetiva por todos os danos ocasionados a terceiros, sendo estes usuários ou não (nunca tendo havido qualquer discussão com relação a responsabilidade do estado em tais circunstâncias).

A teoria acolhida na decisão que julgou o RE 262651 / SP traz como consequência a seguinte situação: o terceiro não usuário do serviço de transporte seria albergado pelo benefício da desnecessidade de comprovação de culpa na ocorrência de dano quando o serviço fosse prestado diretamente pelo Estado, não o sendo quando este fosse prestado por empresa privada concessionária.

Ocorre que a empresa concessionária está substituindo o Estado na execução do serviço de transporte, devendo se imitir não só nos bônus da atividade, mas também em seus ônus. A hipótese traria evidentes prejuízos para o administrado, sujeito o qual a norma constitucional pretende proteger com a maior abrangência possível.

Como último argumento para defender a aplicação da teoria da responsabilidade civil objetiva às empresas concessionárias de serviço público em decorrência de danos ocasionados frente a sujeitos não usuários do serviço, podemos salientar que o artigo 2571 da

69A Técnica da Máxima Efetividade tem por escopo imprimir eficácia social ou efetividade às normas constitucionais, extraindo-lhes o maior conteúdo possível.

70A Técnica da Força Normativa da Constituição deve ser aplicada quando duas ou mais interpretações possíveis surgem para uma mesma norma, devendo-se priorizar a interpretação que der maior eficácia, aplicabilidade e estabilidade às normas constitucionais.

71Art. 25. Incumbe à concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida pelo órgão competente exclua ou atenue essa responsabilidade.

lei 8.987/95, a qual regulamenta os regimes de concessão e permissão de serviços públicos previstos no artigo 175 da Constituição Federal, estabelece expressamente ser de responsabilidade da concessionária responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, acabando com qualquer dúvida afeta ao caso.

Marcando uma mudança na jurisprudência sobre a matéria e comungando do entendimento acima defendido, em agosto de 2009, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, negou provimento ao Recurso Extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, que concluíra pela responsabilidade civil objetiva de empresa privada prestadora de serviço público em relação a terceiro usuário e não usuário do serviço.

EMENTA: CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO. PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO. CONCESSIONÁRIO OU PERMISSIONÁRIO DO SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA EM RELAÇÃO A TERCEIROS NÃO- USUÁRIOS DO SERVIÇO. RECURSO DESPROVIDO. I - A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente a terceiros usuários e não-usuários do serviço, segundo decorre do art. 37, § 6º, da Constituição Federal. II - A inequívoca presença do nexo de causalidade entre o ato administrativo e o dano causado ao terceiro não-usuário do serviço público, é condição suficiente para estabelecer a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito privado. III - Recurso extraordinário desprovido.72

Importante destacar que apesar da modificação no entendimento jurisprudencial do STF com a prolação da decisão acima transcrita, este não se encontra totalmente pacificado, tendo em vista que a decisão acima colacionada fora prolatada por maioria de votos, tendo o Ministro Marcos Aurélio discordado do entendimento acolhido pelo pleno. O que demonstra a possibilidade de posterior reviravolta no entendimento daquela Corte.

72RE 591874 / MS - MATO GROSSO DO SUL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI. Julgamento: 26/08/2009. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Disponível em: < file:///E:/Estudos/TCC/Jurisprudencia/listarJurisprudencia%202.asp> . Consulta em: 31/05/2012.

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