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Restos da história

Nos dois primeiros capítulos procuramos mostrar como um outro tipo de relação com os objetos pode revelar ao investigador elementos até então ocultados pelas lentes da tradição artística ou de uma concepção historicista de passado. Mais do que isso, esse outro tipo de relação é necessário para uma experiência revolucionária com o passado, pois ela libera forças antes soterradas pelo continuum da história. Portanto, esse outro olhar sobre os objetos é estimulado por uma relação crítica com a concepção tradicional da história, e também a abala tão profundamente que a torna insustentável.

Este olhar, como foi evidenciado por Benjamin na atividade do colecionador, descobre novas fontes que, por sua vez, são insubmissas às classificações tradicionais por conterem características particulares por ela inabarcáveis. Conferir valor próprio a estas fontes permite que elas não sejam excluídas por valores extrínsecos a elas, mas que, além disso, rompam com qualquer pretensão de universalidade valorativa. Afinal de contas, o colecionador não apenas as descobre, mas as retira de seu contexto original para reconfigurá- las em sua coleção a partir de semelhanças por ele designadas. Segundo Benjamin, o que ele empreende é “uma luta contra a dispersão” na qual “se encontram as coisas no mundo” e que, ao reunir as que são afins, consegue “informar a respeito das coisas através de suas afinidades ou de sua sucessão no tempo”245.

Não se trata de uma concepção museológica de coleção, como poderia ser a do colecionador burguês, mas aquela que mais se aproxima das descobertas arqueológicas, uma arqueologia que não busque as ruínas de um passado glorioso, mas que desenterre elementos da cultura material de outra época que foram esquecidos em seu significado original, mas que permaneceram materialmente, para serem lembrados à luz de seu encontro com o presente.

Nesse sentido, Riegl também rompe com a tradição ao tentar incluir obras de arte consideradas como não-clássicas, mas também outros tipos de artefatos, com caráter utilitário,

245 Nesta passagem, Benjamin compara o colecionador ao alegorista, outra figura emblemática de seu pensamento. BENJAMIN. Walter. Passagens. op. cit., [H 4a, 1], p. 245.

antes considerados como artesanato ou “artes menores”, na narrativa histórica do desenvolvimento das formas artísticas. Seu feito torna-se emblemático por dois motivos: o primeiro por se opor ao cânone classicista em uma área tão tradicionalista como a história da arte, dominada pela teoria classicista prescritiva de Winckelmann e, em segundo lugar, por ter reivindicado a materialidade das obras contra a abstração dos períodos artísticos e estilos em uma disciplina que lida em grande parte com a cultura material, ou seja, as artes plásticas, mas que estava destituída do olhar sobre o detalhe particular, pois que obscurecido por um enquadramento prescritivo de pretensões eternas e universais.

Esses elementos, a crítica à concepção de progresso na história e o interesse, desde os anos iniciais da formação de Benjamin, pela teoria da arte, levaram-no a um olhar para os objetos que é único, não da perspectiva da história do pensamento, mas no que toca a cada objeto no contexto social vivo de seu encontro.

Procuraremos então, neste terceiro capítulo, mostrar como esta precedência da materialidade dos objetos em relação aos grandes modelos teóricos do erudito, é um dos aspectos mais particulares das reflexões materialistas de Walter Benjamin, bem como a potencialidade crítica deste método frente à história tradicional, que culmina no abalo de sua autoridade e em uma outra forma de pensar sobre a história e o passado, que não a crença em sua imobilidade e acabamento. Além disso, propicia a constituição de uma análise realmente materialista do ponto de vista de seu potencial político.

O colecionador e o trapeiro

Aqui temos um homem — ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria,

vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis246.

Riegl inaugura no campo da história da arte as prerrogativas para o estudo de materiais antes excluídos do curso de sua narrativa, bem como as artes ornamentais, as artes utilitárias, o artesanato. No início dos anos 20, o encontro de Benjamin com as ideias de Riegl já tinha repercutido na Origem do Drama Barroco Alemão, obra na qual Benjamin buscou a valorização do período barroco por suas próprias características positivas, encontradas a partir de uma investigação minuciosa sobre as obras do próprio período. Contudo, o período barroco, mesmo sendo desvalorizado e considerado como decadente no desenvolvimento da história da arte, ainda tratava-se de um objeto de estudo do âmbito da teoria literária e, com isso, dotado de um status mais elevado que o das coisas triviais e utilitárias, do ponto de vista do interesse de uma pesquisa acadêmica. Contudo, no final da década de 1920, com o início da pesquisa para as Passagens, Benjamin vai além da teoria e da história da arte, o que marca o seu pensamento nos anos 30; a valorização do caso marginal como detentor do maior potencial histórico, leva-o a fazer de seus objetos de estudo os dejetos, os restos da sociedade. Sinal disso foi o fato de que a obra Origem do Drama Barroco Alemão encerrou os seus estudos dedicados exclusivamente à teoria literária, em 1925, e foi sucedida pelo início do trabalho nas Passagens, em 1927, projeto no qual passa a se dedicar aos elementos da cidade grande surgente. Em correspondência, Benjamin confessa a Gerhard Scholem, já em 1924, que pensa em “deixar de lado a exegese literária da literatura alemã” para desenvolver seus pensamentos políticos de forma experimental e extrema247.

Uma das evidências da mudança drástica em seus objetos de estudo pode ser notada justamente no projeto construtivo das Passagens, onde Benjamin não apenas se dedica a outra época, o século XIX, mas a objetos e a tipos sociais citadinos e marginalizados, os quais sequer eram vistos como matéria de interesse filosófico. Neste sentido, se antes a atividade do colecionador era a referência para o historiador materialista, posteriormente, uma comparação com a atividade do trapeiro – chiffonier, Lupensammler – torna a tarefa deste historiador ainda mais radical. Isso porque a atividade do trapeiro relaciona-se à coleta de trapos: restos, dejetos da vida urbana e industrializada da Paris do séc. XIX.

246 BAUDELAIRE, Charles. apud., BENJAMIN. Obras escolhidas 3, p. 78. 247 BENJAMIN, Walter. apud. BUCK-MORSS, Susan. op. cit., p. 38.

Contudo, tanto o colecionador, quanto o trapeiro, como descobridores de novas fontes, não contentam-se com o que já fora encontrado antes e, neste aspecto, assemelham-se. Há muitas figuras expressivas no pensamento de Benjamin, dentre elas o alegorista, o colecionador, o jogador, o flâneur etc. Mas é ao colecionador, e àquele que aparenta-se ao trapeiro, que Benjamin atribui a arqueologia da cidade. Nenhuma dessas figuras, às quais podemos associar a tarefa do historiador materialista, são redutíveis umas às outras, como ressalta Wohlfahrt; mas ele também destaca a importância do trapeiro como uma das chaves de compreensão essenciais para o pensamento de Benjamin, apesar das poucas menções a ele em sua obra:

O Lumpensammler [trapeiro] é, como o ‘colecionador’ propriamente dito, tanto um pequeno item dentro da coleção total quanto uma figura para a atividade de juntá-la. Embora ele tenha apenas uma pequena parte dentro do todo, ele também pode ser considerado uma versão em miniatura do todo.248

A figura do colecionador – que muitas vezes é equiparada por Benjamin ao historiador materialista – e a do trapeiro reforçam que é tarefa primeira da atividade materialista encontrar novas fontes a partir de sua própria experiência. Essas novas fontes não devem ser um instrumento para a história, mas, a partir de sua própria constituição, mostrá- la249.

O trapeiro não é apenas uma figura literária, mas um personagem da organização social da Paris do século XIX que se prolifera rapidamente com o crescimento da cidade e com a expansão da indústria: “Maior número de trapeiros surgiu nas cidades desde que, graças aos novos métodos industriais, os rejeitos ganharam certo valor. Trabalhavam para intermediários e representavam uma espécie de indústria caseira situada na rua.”250

Assemelham-se aos catadores de entulhos contemporâneos, mas também resguardam

248 WOHLFAHRT, Irving. “Et cetera? The Historian as Chiffonier”. New German Critique, n. 39, Second Special Issue on Walter Benjamin, Outono de 1986, p. 144.

249 Esta distinção entre “dizer” e “mostrar” o objeto assemelha-se à discussão que Benjamin estabelece no ensaio Sobre a linguagem e geral e sobre a linguagem do homem entre o uso nomeador e o uso geral da linguagem, onde a linguagem nomeadora é contraposta à linguagem geral, instrumental. Nesse contexto, a linguagem nomeadora é aquela que comunica a essência das coisas em vez de comunicar a essência das coisas através do conceito. Cf. BENJAMIN, Walter. “Sobre a Linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”. In: BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Editora 34; Duas Cidades, 2011.

250 Id., Obras escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Batista. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 16.

diferenças, dentre elas: a delimitação de seu trabalho ao período noturno, enquanto os demais dormiam, o que lhe conferia um ar soturno, e o fato de que os materiais coletados não eram revendidos para serem reciclados, mas ele mesmo que os reconfigurava em novos objetos. Personagem que, já à época, intrigava os estudiosos da pobreza e também fora incluído dentre as classes consideradas perigosas251, como relata Benjamin em seu estudo sobre Baudelaire. A

pergunta, relembrada por Benjamin, que indignava os que refletiam sobre a atividade e a condição do coletor de trapos era “onde seria alcançado o limite da miséria humana?”252,

pergunta que reforça o seu caráter extremo e limiar: o trapeiro alargou os limites do que se conhecia, no contexto das cidades, por miséria humana.

É preciso, contudo, distinguir em alguns aspectos a figura social do trapeiro da imagem poética criada sobre ele, como no caso do trapeiro que para Baudelaire assemelhava- se ao poeta.

(…) existem, no entanto, diferenças decisivas entre um trapeiro metafórico e um trapeiro real. Este último é tão abjetamente dependente das leis do valor de troca que só pode reproduzir a sua própria existência servindo diretamente as necessidades reprodutivas da economia capitalista: ‘Os salários de um colhedor de trapos, como os de um trabalhador, são inseparáveis da prosperidade industrial’.”253

O trapeiro metafórico, figura errante das madrugadas, que, assim como o poeta de Baudelaire, vaga à procura de rimas, “(…) a todo instante, se detém no caminho para recolher o lixo em que tropeça”254. Conduz um andar interrompido, trôpego e inconstante, pois sua

atenção aos objetos do entorno, atenção que busca os mais interessantes, o faz parar, retornar, e prosseguir de tempo em tempo. Assim, Baudelaire compara o fazer do poeta à atividade do trapeiro. Benjamin assume analogia semelhante entre o trapeiro e o colecionador e, por extensão, entre o historiador. O paralelo torna-se interessante graças à indistinção proposta por Benjamin entre o fazer do historiador daquele do literato do ponto de vista de sua técnica. A coleta de materiais das Passagens, por sua vez, trata-se mais do trabalho de um trapeiro do que de um colecionador, devido à constituição de seus elementos: os restos deixados para trás

251 Durante o século XIX, na França, as classes perigosas foram associadas às classes mais pobres, mais marginalizadas, da sociedade.

252 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. op. cit., p. 16.

253 WOHLFAHRT, Irving. “Et cetera? The Historian as Chiffonier”. op. cit., p. 152. 254 Id., ibid., p. 79.

pelo funcionamento diurno das cidades. A diferença entre os dois tipos de trapeiro, o da vida real e o literário, portanto, é que o primeiro “procura salvar sua própria existência recolhendo detritos” e, o segundo, “procura salvar seu ‘tesouro’ da ordem capitalista” e, com eles, construir outros objetos que, de forma revolucionária, são perturbadores desta ordem255.

Ao refletir sobre o significado do trapeiro no contexto das Passagens e do pensamento de Benjamin, Wolhfarth assume que “como colecionador do ‘lixo da história’, ele seria também o incógnito de um autor que, neste caso, procura abandonar as tradicionais prerrogativas da autoria por uma posição mais marginal, anônima e subterrânea da qual, idealmente, deixa os materiais históricos falarem por si.”256

No entanto, a ação do trapeiro é mais radical que a do colecionador. Ele não apenas coleta trapos, mas o faz para uma questão de sobrevivência, pertence às classes mais baixas e não apenas coleta e retira seu meio de vida dos trapos, mas veste-se deles: dos restos, refugos, dejetos e entulhos, coisas que para os demais não têm mais valor. Ele denuncia a miséria não apenas ao expor os restos da sociedade, mas pela sua própria existência.

(…) o Lumpensammler [trapeiro] é ao mesmo tempo o epítome de uma (a)existência social insalvável (‘sem a possibilidade de existência’), o mais baixo dos baixos, o fundo do barril, e, apesar de tudo isso, ou melhor, por causa disso, o próprio agente de redenção, o raspador do barril. Tal é a lógica das ‘últimas coisas’. ‘O chiffonnier’, observa Benjamin, ‘é a figura mais provocadora da pobreza humana’. Lupenproletariado em um duplo sentido: vestido de trapos e ocupado deles. Ninguém tem uma relação mais próxima, mais mimética, mais materialista do que ele com o mundo material: é preciso uma existência insalvável para salvar o insalvável. O chiffonnier é, em suma, uma figura de pernas privilegiadas, na medida em que inverte todos os privilégios. Ele é o convidado não convidado que finalmente convida a todos para a mesa. Destacá-lo para uma atenção especial é repetir o gesto que é a fonte da sua atração.257

Além disso, o trapeiro também distingue-se do colecionador na medida em que não é o seu ato de coletar que inutiliza os objetos, mas a própria lógica da circulação de mercadorias já o inutilizou no ato de seu descarte. O trapeiro é aquele que lhe conferirá vida nova. Wolhfahrt ressalta que o colecionador “liberta os objetos do trabalho de serem úteis”, guarda-os como preciosidades em coleções, enquanto que o trapeiro “está sujeito à produção e

255 WOHLFAHRT, Irving. “Et cetera? The Historian as Chiffonier”. op. cit., p. 152. 256 Id., ibid., p. 144.

circulação de mercadorias, ao valor de uso e troca”258, uma vez que o fundamento de sua

coleta é a transformação dos dejetos da cidade e das indústrias em produtos para sua própria sobrevivência. Ele identifica e participa da lógica da obsolescência rápida dos produtos, mas tomando-os quando já não servem mais para nada em seu próprio mundo, o mundo das mercadorias. “Enquanto o colecionador se opõe à inutilidade do utilitarismo burguês, o metafórico colecionador de trapos opõe um utilitarismo militante (…) contra o ‘prazer desinteressado’ da estética clássica burguesa”.259 Por sua radicalidade, o trapeiro seria um tipo

de colecionador mais revolucionário. Ele é destituído não apenas da posição, mas da aparência do erudito, do acadêmico. Neste sentido, a prática do trapeiro é mais consciente por estar mais imbricada em suas próprias condições de existência do que aquela do colecionador.

Sendo assim, nas Passagens, Benjamin, tal como o poeta de Baudelaire, também se aproxima dessa atividade de procurar e recolher trapos: “como o trapeiro [Lumpensammler] em Paris, Benjamin está procurando coletar [sammeln] os farrapos, os trapos [die Lumpen], para poder utilizá-los fora dos circuitos convencionais”.260 Neste sentido,

é interessante a analogia que Wohlfahrt estabelece entre as Passagens e a construção de barricadas, do ponto de vista tanto de sua finalidade política quanto dos materiais construtivos, pois “a construção de barricadas com o que quer que seja que venha à mão sugere também paralelos evocativos com o próprio projeto de Benjamin de ‘citar fora do contexto’, ‘usar’ - em oposição a ‘fazer um balanço’ (inventariar) - os recursos disponíveis como ‘a única forma de os fazer justiça.’”261

O lado transgressor do colecionador, ressaltado por Benjamin no ensaio sobre Eduard Fuchs, bem como o potencial do trapeiro, são oriundos das experiências de cada um e não apenas de uma erudição acadêmica, o que se torna ainda mais discrepante no segundo caso. O olhar de Fuchs sobre as obras não-clássicas não foi graças à sua formação acadêmica tardia, mas ao contato com esses objetos ao longo de sua vida, um contato tão próximo que o permitiu notar as características próprias desses materiais, sem submetê-las ao juízo de valor excludente estabelecido pelo cânone clássico, bem como no caso de Riegl, cujo contato com os materiais foi propiciado pela sua atividade de curadoria. No caso do trapeiro, sua experiência com as coisas é oriunda das ruas, onde se encontram os resíduos citadinos, e de

258 WOHLFAHRT, Irving. “Et cetera? The Historian as Chiffonier”. op. cit., p. 152. 259 Id., ibid., p. 153.

260 Id., ibid., loc. cit 261 Id., ibid., op. cit., p. 150.

sua necessidade de sobrevivência. Benjamin tem consciência disso, o que reverbera em sua própria pesquisa e escrita, tal como as condições de vida do trapeiro levam-no à sua atividade: “O ritmo de escrita é devido ao próprio ritmo da experiência histórica da comunidade do escritor”.262

Assim também as Passagens refletem as condições de vida de Benjamin no desenrolar dos anos 30, um exilado em Paris, que no fim da vida perdeu qualquer nacionalidade ou cidadania graças aos avanços das investidas nazistas, vivia em precária situação financeira e que coletava os trapos da cidade para conferir-lhes uma utilidade revolucionária. Dentro deste escopo, Marc Berdet descreve as forças que estão em jogo nas

Passagens e as transformações que atravessam o pensamento de Benjamin: por um lado, “um

impulso histórico-sociológico do exterior através dos seus amigos”, com os quais discutia calorosamente suas concepções filosóficas, e por outro, um impulso

da experiência material do próprio Benjamin (‘as dificuldades externas’) dão uma forma histórico-sociológica (quebrada) ao seu trabalho. Ao admitir este impulso, Benjamin imprime esta forma. Este processo conduz ‘toda a massa de ideias, originalmente impulsionada pela metafísica, a um estado de agregação onde o mundo das imagens dialéticas é protegido contra as objeções que a metafísica provoca’. Um pouco como uma massa de trapos, movida pelo lado obscuro da sociedade industrial, é transformada pelo trapeiro em uma confusão intoxicante cuja lógica subverte a do capital.

O trapeiro, com o seu passo brusco, introduz esta montagem de restos. Benjamin quer fazer com que o material histórico e social fale conosco, e não dizê-lo em seu lugar; recolher, como um trapeiro, a experiência enterrada e do século XIX, como uma palavra preciosa dos anos 1930; pegando o que, na época, parecia ser sucata do século XIX e ainda pode salvar o presente. Estas perspectivas sussurram de um século a outro, esta continuidade secreta das coisas esquecidas e de homens oprimidos, esta ‘tradição dos derrotados’, constituem o tecido da história- sociológica das Passagens. A ‘sociologia’ de Benjamin emerge do molde em talhe que forma a modernidade; ele imprime nela a ‘marca dos tempos’ particular dos anos 1930 para se inclinar sobre o século XIX.263

Portanto, a experiência marginal revela ao trapeiro – e a Benjamin – que a matéria da qual é constituída a história, a matéria do mundo, não é harmônica, coerente e transparente como a narrativa histórica a representou, mas densa, rompida, feita de trapos, ou seja, dos restos do que as classes dominantes elegeram para si. Esta é sua relação com o historiador materialista, mais do ponto de vista de seus materiais do que de seu arranjo – como no caso do

262 BERDET, Marc. “Chiffonier contre flâneur”: Construction et position de la Passagenarbeit de Walter Benjamin. Archives de Philosophie, tome 75, n. 3, p. 444.

colecionador -: “O historiador, segundo Benjamin, vive sobre um monte de trapos: é o erudito das impurezas, dos restos da história. É o arqueólogo do inconsciente da história. (...)”264

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