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A história e as coisas : crítica da história, coleção e história da arte no materialismo de Walter Benjamin

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

FERNANDA CAROLINA SANTOS RAMOS

A história e as coisas: crítica da história, coleção e história da arte no

materialismo de Walter Benjamin

CAMPINAS 2020

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A história e as coisas: crítica da história, coleção e história da arte no

materialismo de Walter Benjamin

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Filosofia.

ORIENTADORA: Profa. Dra. Taisa Helena Pascale Palhares

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA FERNANDA CAROLINA SANTOS RAMOS, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. TAISA HELENA PASCALE PALHARES.

CAMPINAS 2020

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Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Ramos, Fernanda Carolina Santos,

R147h RamA história e as coisas : crítica da história, coleção e história da arte no materialismo de Walter Benjamin / Fernanda Carolina Santos Ramos. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

RamOrientador: Taisa Helena Pascale Palhares.

RamDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Ram1. Benjamin, Walter, 1892-1940.. 2. História e Crítica. 3. Materialismo. 4. História na Arte. I. Palhares, Taisa Helena Pascale, 1974-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: History and things : critique of history, collection and art history in Walter Benjamin's materialism

Palavras-chave em inglês: History and criticism

Materialism History in Art

Área de concentração: Filosofia Titulação: Mestra em Filosofia Banca examinadora:

Taisa Helena Pascale Palhares [Orientador] Carla Milani Damião

Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado Data de defesa: 17-02-2020

Programa de Pós-Graduação: Filosofia

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-9680-5676 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2343502613052309

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora do trabalho de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 17/02/2020, considerou a candidata Fernanda Carolina Santos Ramos aprovada.

Profa. Dra. Taisa Helena Pascale Palhares Profa. Dra. Carla Milani Damião

Prof. Dr. Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Ouço de meus amigos acadêmicos sobre como o processo final da escrita é um trabalho solitário e, de fato, o é. Mas, tal como a tarefa diurna que antecede a esgrima noturna baudelairiana, é de matéria humana que ela é feita.

Agradeço à minha mãe por despertar em mim, desde cedo, a curiosidade pelo mundo, o amor pela natureza e o repúdio às injustiças. Por ter me ensinado a ler, a desenhar e por ter me dado meu primeiro livro, que guardo até hoje com carinho imenso. Também é a ela que agradeço por ter me mostrado a força da mulher.

Agradeço ao meu pai por todo apoio e compreensão, sempre presente e interessado, vibrando a cada novo passo dado. Agradeço também pela luta cotidiana.

Agradeço ao meu irmão, meu primeiro amigo, pelas brincadeiras da vida, pelas longas conversas, ensinamentos e desabafos ouvidos sempre de forma carinhosa e paciente.

Às três outras grandes mulheres de minha vida: a Suéllen Carvalho pelo amor, pela confiança, pela presença e pela partilha de ideais, minha mais nova amiga de infância que me ensinou o amor pela Educação e pela arte e que tanto me inspira; a Isabela de Oliveira Salinas por ter partilhado comigo sua casa, seu coração e seus amigos, pelas inesgotáveis discussões sobre arte e filosofia e pelos ensinamentos sobre amizade; e a Tatiana Gzvitauski por ser tão carinhosa, doce, sensata e compreensiva e por sempre me socorrer.

Agradeço aos amigos da História e da Filosofia da Unicamp que fiz ao longo desses anos e também aos amigos de Mogi Mirim. Aos últimos, pela paciência da espera, pela saudade e pela recepção generosa e carinhosa nas minhas escassas visitas durante o período de escrita.

Além disso, rememoro e agradeço a cada professor que marcou minha formação, seja como aluna, seja como pessoa, desde o ensino básico até o ensino superior.

Agradeço ao Pedro Ferreira pelas inesgotáveis conversas sobre Benjamin e Kant, sobre Filosofia e sobre o mundo. Pelo entusiasmo com o meu trabalho, pela escuta atenta e acolhedora, pelas histórias e estórias contadas com tanto corpo e com tanta alma. Pela companhia nos estudos, pelas fugas em nome da sanidade, pelos planos mirabolantes, pelos ensinamentos e trocas e por todo carinho e cuidado.

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grandes quanto seu conhecimento. Agradeço também pelas paixões compartilhadas e pelas querelas insolúveis.

Ao Rafael Palazi pelos apontamentos certeiros e pela escuta atenta e paciente. Agradeço à minha orientadora Taisa Palhares pela paciência e confiança, pelos ensinamentos, seja na graduação ou na pós-graduação, e por ter despertado em mim a paixão pelo pensamento de Walter Benjamin.

Agradeço ao GEETA (Grupo de estudos em Estética e Teoria da Arte/IFCH/Unicamp) e a todos os seus membros pela interlocução e pelas discussões, bem como ao CePETEC (Centro de estudos em Psicanálise, Estética e Teoria Crítica/IFCH/Unicamp) e aos seus membros pela partilha de conhecimento.

Aos membros da banca examinadora, Carla Milani Damião e Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado, agradeço por terem aceitado participar do exame de defesa e por todos os apontamentos minuciosos, fundamentais para a construção deste trabalho, bem como a Márcio Seligmann por ter participado do exame de qualificação e ter ajudado, junto com Carla Milani Damião, a orientar os rumos finais desta pesquisa.

Agradeço também a todas as funcionárias e funcionários do IFCH que garantiram o apoio estrutural necessário para a realização da presente pesquisa.

E, por fim, ao CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento), processo nº 130678/2018-0, pelo financiamento desta pesquisa, sem o qual ela não teria sido possível.

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Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Trecho do poema “O apanhador de desperdícios” de Manoel de Barros

Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Trecho do poema “Tabacaria” de Álvaro de Campos

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A presente pesquisa trata da investigação sobre elementos constitutivos da teoria materialista da arte no âmbito do pensamento de Walter Benjamin da década de 1930. O dois aspectos abordados foram: i) a crítica ao conceito de história oriundo do século XIX, ancorado no historicismo; ii) a importância de conferir a primazia do olhar para a materialidade dos objetos em seus detalhes particulares. Ambos elementos centrais para sua reflexão materialista, estes aspectos relacionam-se, pois o enfoque nos objetos, principalmente nos casos marginais, tem o potencial de abalar a autoridade da tradição por revelar elementos que não são passíveis de uma classificação harmônica e homogênea. Com isso, torna-se possível a ruptura da ideia historicista de um passado acabado, o qual poderíamos acessar de forma plena e objetiva.

Para isso, o fio condutor será, primeiramente, o ensaio Eduard Fuchs, historiador e

colecionador (1937), no qual Benjamin aponta, por um lado, os principais elementos de sua

crítica à história a partir do contexto de formação das primeiras teorias materialistas da arte, no início do século XX, no âmbito do partido social-democrata alemão e, por outro, o potencial inovador da atividade do colecionador como pioneiro na teoria materialista da arte. Além disso, abordaremos outros textos da mesma década nos quais questões semelhantes estão em jogo, como o Autor como produtor (1934), A obra de arte na época de sua

reprodutibilidade técnica (1935), História da literatura e ciência da literatura (1931).

Em seguida, desenvolveremos o debate que Benjamin estabelece, desde os anos iniciais de seu pensamento, com as correntes críticas da história da arte da virada do século XIX para o século XX. Isso porque neste debate também estão em questão tanto a crítica ao conceito de história, de forma ampla, quanto dos métodos da pesquisa sobre arte e sobre um tratamento dos objetos que extravase as meras classificações estilísticas e abstratas e que vise suas particularidades.

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This research deals with the investigation of constitutive elements of materialist art theory within the framework of Walter Benjamin's thought of the 1930s. The two aspects addressed were: i) the critique of the concept of history from the 19th century, anchored in historicism; ii) the importance of giving primacy to the materiality of objects in their particular details. Both central elements for its materialistic reflection, these aspects are related because the focus on objects (especially in marginal cases) has the potential to shake the authority of tradition by revealing elements that are not amenable to a harmonic and homogeneous classification. With this, it becomes possible to break the historicist idea of a finished past, which we could access in a full and objective way.

For this, the main thread will be firstly the essay Eduard Fuchs, historian and collector (1937), in which Benjamin points out, on the one hand, the main elements of his critique of history from the context of the formation of the first materialist theories of art at the beginning of the 20th century in the ambit of the German Social Democratic Party and, on the other hand, the innovative potential of the collector's activity as a pioneer in materialist theory of art. In addition, we will address other texts from the same decade in which similar issues are at stake, such as the The Author as Producer (1934), The work of art in the age of its

technical reproducibility (1935), Literary History and Literary Science (1931).

We will develop next the debate that Benjamin establishes, since the early years of his thought, with the critical currents of art history from the turn of the 19th to the 20th century. This is because this debate also calls into question both the criticism of the concept of history in a broad sense and of the methods of art research and of a treatment of objects that goes beyond mere stylistic and abstract classifications and aims at their particularities.

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Introdução ………...12

Capítulo I: O problema do historicismo ………...………22

Historicismo e materialismo histórico na época da social-democracia alemã …….………..28

Crítica à história da cultura …..………..38

A prática do colecionador: resposta às “aporias da teoria” ………..…45

Capítulo II: História da arte, história material, história do material

…..…..60

A história crítica da arte: Heinrich Wölfflin e Aloïs Riegl ………..61

Capítulo III: Restos da História ..………99

O colecionador e o trapeiro ………...………100

Citação e montagem ………...………108

História da arte como treino do olhar ………...119

Considerações finais ………...……126

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Introdução

A partir da década de 1930, Walter Benjamin volta seu interesse teórico para o materialismo histórico. O autor não apenas criticou diversos teóricos materialistas do início do século XX, como também se propôs refletir sobre os fundamentos de uma teoria materialista da arte que cumprisse a exigência revolucionária própria ao materialismo. Este período ficou conhecido como a “fase materialista”1 de sua produção e ocupou toda a última década de sua

vida.

Contudo, apesar desta separação de seu pensamento em fases, a maioria de seus comentadores defendem que muitas permanências, convergências e transformações das fases anteriores, mais do que bruscas rupturas, ocorrem ao longo de sua trajetória intelectual. As diversas doutrinas, teorias e correntes que constituem seu pensamento ao longo dos anos de sua formação até sua fase madura não seguem uma sucessão na qual um se abre após o encerramento do outro, superando o imediatamente anterior. Se sobrepõem, se interpenetram, deixam marcas, mesmo os elementos aparentemente mais inconciliáveis entre si.

Portanto, o presente trabalho apresenta uma discussão sobre alguns aspectos do pensamento de Walter Benjamin durante a década de 1930, especificamente no que toca a teoria materialista da arte. Com isso, não temos pretensões sistematizantes sobre seu pensamento, ou intuito de reconstruí-lo, mas acreditamos que seja mais frutífera uma investigação sobre alguns de seus aspectos característicos nessa fase mencionada. O recorte temporal foi necessário: estabeleceu os limites possíveis da extensão de uma pesquisa de mestrado. Contudo, não tomamos o partido daqueles que defendem rígidas delimitações classificatórias no pensamento de Benjamin a partir de drásticas rupturas em fases, ou concebemos defini-lo em linhas teóricas que não fazem justiça à riqueza de fontes sobre as quais debruçou-se ao longo de sua obra, tais como a teologia judaica, o romantismo alemão, a filosofia da linguagem, a teoria crítica dentre muitas outras. Com isso, assumimos as continuidades e transformações de muitas das reflexões anteriores do autor, tal como as

1 ADORNO, Theodor W.; BENJAMIN, Walter. Correspondência, 1928-1940/Theodor Adorno, Walter Benjamin. Trad. Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora UNESP, 2012. p. 413.

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presentes em obras de extrema relevância como o Conceito de crítica de arte no romantismo

alemão (1920) ou a Origem do Drama Barroco Alemão (1928). No entanto, mantivemos o

pensamento elaborado na década de 30 como referencial para a análise aqui proposta. Além disso, esse referencial também foi necessário para que não recaíssemos em uma pretensão totalizante de um pensamento tão amplo quanto o de Walter Benjamin, e que, além disso, colocava-se como crítico às pretensões sistematizantes da filosofia.

Isso posto, os aspectos que investigamos em alguma de suas produções da década de 1930, no escopo de sua preocupação com uma teoria materialista da arte, foram a crítica à história e a potencialidade, para o autor, de uma análise que tenha como ponto de partida, e que não perca de vista, a constituição e a duração material dos objetos. Portanto, o conjunto de textos selecionados percorrem o percurso dessa problemática: qual a possibilidade e potencialidade dos objetos produzidos pela humanidade, especialmente as obras de arte, de romperem com uma narrativa que selecionava seus elementos constitutivos a partir do modelo de uma tradição excludente e, ao mesmo tempo hegemônica, que fora tratada como história do passado tal como aconteceu, fundamentada na visão historicista?

Sendo assim, o presente trabalho foi dividido em três capítulos: Capítulo I: O

problema do historicismo, Capítulo II: História da arte, história do material, história material e Capítulo III: Restos da história. Por fim, segue-se ao último, algumas

considerações finais sobre esta pesquisa.

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O primeiro capítulo apresenta a condição de possibilidade de uma história que se pretenda realmente materialista: a crítica da concepção tradicional de história, aquela oriunda do historicismo. É só a partir desta crítica que o materialismo histórico pode realizar sua tarefa: despertar o potencial político implosivo da história.

Para Benjamin, até a década de 30, tanto a historiografia burguesa, quanto a historiografia marxista, estavam profundamente enraizadas no historicismo, conceito de história oriundo do séc. XIX. O problema disso é que não era realizada a crítica deste conceito, ou seja, não era revelada a ideologia de dominação sob a qual se fundamentava a

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história e que ela própria perpetuava. Com isso, no ensaio Eduard Fuchs, historiador e

colecionador Benjamin faz um diagnóstico de sua época a partir da obra e de elementos

biográficos de Fuchs – e até mesmo de alguns traços autobiográficos – para traçar um panorama do problema e propor possibilidades para sua superação.

O que está por trás da máxima historicista rankeana, que crê descobrir o passado “tal como aconteceu”, é uma concepção de temporalidade linear, fio condutor da história preenchido pelos fatos encadeados sucessivamente por uma lógica causal, em direção ao progresso. Ao historiador que nisso crê, cabe a descoberta objetiva – no sentido positivista do método das ciências naturais – do passado. Para isso, o passado teria que se encontrar num lugar temporal diferente daquele do presente, fixado e pronto, onde aguarda sua descoberta. Esta tendência cientificista das ciências humanas corresponde a uma ideia de história da cultura como inventário dos grandes feitos da humanidade, ideia que, para sustentar sua aparência harmônica, conciliadora e homogênea, é hipostasiada, ou seja, isolada das relações sociais e de produção que as produziram e que, por isso, oculta a face de barbárie da cultura.

É nessa atmosfera que Fuchs se forma e inicia sua produção intelectual. Nele estão em jogo duas forças: é, ao mesmo tempo, colecionador de gravuras, caricaturas, de ilustrações eróticas e de costumes, dentre outros, e historiador, cujas fontes são os objetos que constituíam sua coleção. Na sua atividade de colecionador Benjamin vê o pioneirismo de uma teoria materialista da arte, a resposta prática às aporias da teoria. No entanto, no historiador Fuchs ele ainda identifica resquícios da concepção de história burguesa. Apesar disso, graças a sua prática como colecionador, vários caminhos são abertos também em suas obras teóricas, como o reconhecimento da arte de massas, da reprodutibilidade técnica das artes e a necessidade da constituição de uma história da recepção das obras.

Portanto, buscamos investigar qual o potencial da prática do colecionador em propiciar este tipo de abertura na história e que vai em direção à força política do materialismo histórico: liberar na história o seu potencial de transformação.

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No segundo capítulo retomamos, a partir da resenha Estudo rigoroso da arte, uma frutífera discussão que Benjamin estabelece com uma corrente de história da arte crítica à própria prática.

O que está em jogo neste debate, para Benjamin, não é apenas o diagnóstico da situação problemática da historiografia da arte até o final do século XIX, a saber: um aglomerado enciclopédico de informações que apenas tangenciavam as obras, como dados factuais sobre o contexto de sua produção, elementos biográficos do artista, relações de aquisição e de atribuição das obras, a decifração de elementos iconográficos, entre outras informações que, isoladas, pertencem ao âmbito da mera curiosidade ou de uma vaga erudição. Trata-se também da resposta prática a este diagnóstico: uma inovação metodológica que tornasse as obras o centro da reflexão da história da arte e não meramente um compilado de informações vagas que as orbitavam.

As consequências da manutenção da historiografia tradicional eram profundas, pois conservava um modelo de história fechado, que excluía os elementos que não correspondessem à sua autoridade prescritiva. Por um lado, a análise estética não participava da história da arte, pois considerava-se que as obras elencadas por essa tradição eram dotadas de um valor eterno e universal. Assim, tornava-se inconcebível uma reflexão sobre a mutabilidade do conceito de obra de arte ao longo do tempo e sobre as diferentes formas de recepção que eram atribuídas às obras e que podiam destoar drasticamente tanto da recepção de seus contemporâneos, quanto das intenções de seu criador. Esta concepção de história da arte era profundamente devedora da ideia historicista de passado histórico, passível de acesso pleno e objetivo, no qual caberia ao historiador encontrar os fatos tal como aconteceram na linha de sua sucessão histórica. A história que origina-se nesse tipo de concepção de passado é harmônica, cuja sucessão linear e progressiva dos eventos conduziria a uma evolução gradual, no caso da história da arte, dos períodos ou estilos artísticos. Os períodos que não correspondessem ao modelo da tradição, eram excluídos da narrativa por serem considerados como “decadentes”, ou seja, períodos nos quais, graças a determinadas circunstâncias históricas, o desenvolvimento artístico teria sido interrompido até um momento que propiciasse novamente as condições para o seu desenvolvimento.

No cerne deste debate retomado por Benjamin, encontram-se dois historiadores da arte da virada do século XIX para o XX, Aloïs Riegl e Heinrich Wölfflin, que diagnosticaram

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a situação do campo de estudo da história da arte em sua época. A resenha Estudo Rigoroso

da Arte retoma este debate e é um dos únicos textos em que Benjamin aborda diretamente esta

discussão da história da arte e que contém também sua posição, de modo amplo, quanto à questão, mas também sobre o papel dos historiadores, anteriormente mencionados, neste debate e na renovação epistemológica da disciplina.

Benjamin aponta que Wölfflin fez um diagnóstico preciso sobre a problemática, mas que fora infeliz na proposição e aplicação de seu método formalista, uma vez que foi insuficiente para superar as questões que estavam em jogo. Riegl, por sua vez, e não apenas nesta resenha, foi considerado por Benjamin o grande precursor na revolução da história da arte graças ao método que propôs, no qual a primazia da análise é direcionada ao objeto individual em suas características particulares com o intuito de reconhecê-las em sua positividade. Ao contrário dos grandes sistemas explicativos, seu método não descartava o diferente, mas reconhecia-o enquanto tal. Além disso, Riegl reconheceu as obras de arte, bem como os outros produtos da atividade humana, como a expressão da visão de mundo de uma determinada sociedade em determinada época, o que tornou inviável a ideia de um valor artístico eterno e universal. Com isso, períodos artísticos outrora considerados como decadentes tornavam-se, aos seus olhos, a expressão de outras épocas, cujos objetivos artísticos eram outros e até mesmo incompreensíveis para nós.

Além disso, Riegl, que exercia a função de curador no Museu de Artes Aplicadas de Viena, foi um crítico vigoroso da concepção museológica historicista, cujo objetivo não era o reconhecimento das obras, mas a apologia de determinados períodos artísticos de acordo com interesses nacionalistas.

O potencial da crítica da história da arte é amplo, pois não apenas antecipa qualquer postura crítica dos historiadores sobre a própria prática, como também revela as potencialidades de um método que volta-se para a própria constituição dos objetos que investiga. O resultado deste olhar atento é implosivo, pois abala a autoridade de uma tradição há muito consolidada como eterna, ao confrontá-la com as evidências das transformações de um contexto social vivo, que deixa de ser ignorado.

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O terceiro capítulo não pretende realizar uma síntese ou uma conclusão consecutiva derivada dos capítulos antecessores, mas notar como pontos tão destacados por Benjamin na obra de outros autores aparecem em sua própria obra e vão ao encontro de fundamentos que já estavam presentes em seu pensamento desde suas reflexões de juventude, mas que também transformam-se na relação com novas ideias e reflexões e com as mudanças nas circunstâncias histórico-sociais que permeavam sua vida.

Neste capítulo, buscamos através das Passagens – uma obra interrompida pela morte do autor e que, segundo os projetos apresentados, viria a se constituir como uma compilação de citações das mais diversas origens – compreender como a materialidade dos objetos penetra no próprio pensamento de Benjamin e passa a ser não apenas a parte fundamental de uma tarefa investigativa, mas a constituir a própria forma de apresentação deste trabalho.

O texto aforístico Rua de mão única, de 1927, tornou-se simbólico enquanto transição do pensamento de Benjamin de uma fase conhecida como mais esotérica – ou teológica –, marcada pela elaboração da obra Origem do drama barroco alemão, entre 1924 e 1928, para uma fase de tendência marxista, com o início das pesquisas preparatórias para as

Passagens em 1927. Esta transição é marcada não apenas pela diferença em suas inclinações

teóricas, mas também pela radicalização de seu pensamento, cada vez mais voltado em direção a uma prática política revolucionária. Além disso, seus temas de estudo deixam de lado cada vez mais os temas da teoria literária que marcaram suas pesquisas de juventude, como o ensaio As afinidades eletivas de Goethe (1924-25), O Conceito de Crítica de Arte no

Romantismo Alemão e, o já mencionado, Origem do Drama Barroco Alemão, e vão em

direção a um estudo sobre temas e objetos da sociedade industrial de massas, das técnicas de reprodutibilidade artística, como o cinema e a fotografia, sobre a imprensa de sua época ou sobre objetos gerais – e muitas vezes marginais –, como os restos da produção industrial de bens de consumo, ou de personagens marginais emblemáticos desta atmosfera sociocultural.

É a partir dessa mudança de panorama que pretendemos investigar a figura do trapeiro [chiffonier ou Lupensammler]: um personagem típico das ruas de Paris no século XIX, que torna-se marcante tanto na literaturada época, quanto nos estudos sociais sobre a cidade, tendo sido incluído dentre as classes sociais consideradas “perigosas”. Esta figura aparece na obra de Baudelaire como análoga ao poeta destituído de sua auréola, aquele que

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não mais possui caracteres divinos, mas que vagueia pela cidade – inclusive por seu submundo – em busca de sua matéria-prima artística. Com algumas poucas menções na obra de Benjamin durante a década de 1930, o trapeiro, que resguarda inúmeras semelhanças com a figura do colecionador – abordada no capítulo II –, exerce sua atividade de coleta com uma potência mais radical do que aquela do segundo: seus objetos de interesse são os trapos, os dejetos da indústria, da cidade e da esfera de circulação das mercadorias. Desta coleta depende a sua própria sobrevivência a partir da produção de produtos constituídos por esses resíduos. Não só sua atividade é um emblema de sua radicalidade, mas também sua aparência: suas vestimentas são maltrapilhas, feitas de trapos. Tanto a inadequação social de sua imagem, quanto a sua atividade de subsistência são emblemas da marginalidade na qual vive. Para além da atividade de seleção e coleta de seus objetos para sua manufatura ou uso posterior, o trapeiro mantém diferenças fundamentais com o colecionador: seus produtos não são por ele retirados da esfera da circulação das mercadorias, mas são rejeitados por essa própria lógica por serem considerados inúteis. O trapeiro sobrevive dos restos rejeitados pelo próprio sistema que ocasionou sua situação de marginalidade por não ser possuidor de bens. O colecionador, por sua vez, é quem inutiliza os objetos retirando-os de circulação ao inseri-los em sua coleção.

Em sua condição de exilado, ao se ver obrigado a fugir da Alemanha nazista durante os anos 30, Benjamin torna-se também marginalizado: é destituído de sua nacionalidade, da possibilidade de consolidação profissional, de bens. Se outrora identificou-se como colecionador de livros2, como poderia continuar acumulando-os se sequer tinha

residência fixa? Um colecionador de família burguesa, que possuía enorme apreço por obras de arte, mas que tornou-se um trapeiro: sua condição de estrangeiro e de desprovido de tudo tornava-o um observador privilegiado das contradições da cidade que se tornou a primeira metrópole moderna, Paris, a “capital do século XIX”. Passou a coletar seus fragmentos: citações dos mais variados textos que constituiriam uma imagem – uma montagem – das drásticas transformações do século XIX e que já se configuravam como ruínas no início do século XX. Afinal, tais fragmentos não constituem também os resíduos, os dejetos da cidade descartados pela vertiginosa velocidade da obsolência dos produtos industriais?

2 Em uma de suas “Imagens do pensamento”, Benjamin se apresenta como um “autêntico colecionador” de livros e rememora sua prática. cf. BENJAMIN, Walter. “Desempacotando minha biblioteca”: Um discurso sobre o colecionador. In: Obras escolhidas II: Rua de mão única. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987.pp. 227-235.

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Sendo assim, o material que Benjamin coleta são citações, estas que, por sua vez, avisa Benjamin, serão apresentadas sem o uso de aspas. Isso significa que se apresentarão por si mesmas, sem uma introdução ou qualquer outra mediação explicativa, pois seu método de trabalho não visava o dizer, mas o mostrar. As citações não são utilizadas para delas extrair um significado único que as diluirá em um sistema explicativo maior, mas elas são o próprio objeto da exposição. Elas exercem no pensamento de Benjamin aquele mesmo papel dos objetos em suas materialidades próprias, que devem ser o centro de toda investigação para que suas características particulares sejam destacadas, em vez de subjugá-los a qualquer grande modelo classificatório.

O método de composição das citações nas Passagens será o da montagem. Este método as conecta posteriormente, na sua recepção, pois a montagem é análoga a uma constelação de fragmentos na qual múltiplas conexões são possíveis e podem ser refeitas para que outras sejam estabelecidas, dependendo do ponto de vista do espectador e dos elementos que nela foram postos um em relação aos outros. Cada configuração é única, mas não permanente: o significado da montagem é aberto e inacabado. Além disso, a montagem não têm uma aparência de totalidade ou de organicidade: ela revela-se enquanto construção e também o seu processo construtivo, mantendo a particularidade material de cada um de seus elementos constitutivos. A montagem é também o fundamento composicional das obras de vanguarda, como no caso das colagens, e das obras produzidas por meio de técnica industrial, como a fotografia e o cinema. Essas montagens – tanto o procedimento artístico, quanto a montagem da história – têm em comum a sua constituição a partir de elementos concretos e uma configuração que não elimina as interrupções próprias dessa construção: a reunião destes elementos não pressupõe uma assimilação por uma continuidade temporal ou espacial de pretensões totalizantes e harmônicas, mas pretende manter as interrupções características que existem entre as coisas no mundo.

Por fim, buscamos explorar o aspecto mais amplo da história crítica da arte no escopo de uma crítica à historiografia tradicional de modo geral visada por Benjamin. A precedência da história da arte nessa crítica traz alguns questionamentos: trata-se não apenas de um enfoque conferido por Benjamin, mas de um pioneirismo dentro do campo dadisciplina histórica, pois a reflexão epistemológica realizada pelos historiadores críticos da arte nos últimos anos do século XIX e no início do século XX antecipam – em quase trinta anos – as renovações da história em geral enquanto disciplina. São as primeiras tentativas de

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diagnóstico acurado e de inovação metodológica na busca de um maior rigor investigativo, cujo impacto, porém, não teve uma longa e ampla abrangência. Esses aspectos trazem questões sobre quais circunstâncias propiciaram o pioneirismo da história da arte na crítica à historiografia em uma área na qual o peso da tradição faz-se presente até os dias atuais. Esta área, cujo interesse pelos seus objetos de estudos fora por muito tempo determinado pela crença na universalidade e eternidade do valor de seus objetos, exigia quase uma veneração moral, de legitimação sagrada, de suas obras.

Além disso, Benjamin já nos havia deixado claros indícios de seu interesse em textos, desde os anos iniciais de sua formação, pela teoria da arte. Um interesse que visava acabar com a distinção das áreas de conhecimento como disciplinas totalmente isoladas entre si e que via as obras de arte como expressão das tendências sociais, econômicas, históricas e culturais de seu tempo. Neste sentido, o percurso formativo de Benjamin foi permeado pela sua relação e interesse constante pela teoria da arte, mas que não a via como um domínio isolado restrito apenas às manifestações artísticas em si. Não apenas esse aspecto, mas também seu contato com a teoria literária, a crítica de arte, o romantismo alemão, o surrealismo e as demais vanguardas artísticas, dentre outros, marcaram profundamente seu pensamento de uma forma única e contribuíram para levar sua reflexão para além das teorias tradicionais da filosofia e também ao seu questionamento. Benjamin bebe de várias fontes ao longo de sua vida intelectual, dos mais diversos tipos, o que faz com que sua reflexão seja ampla e não se submeta às imposições ou modismos de famosas teorias em voga em sua época, como o materialismo vulgar, o historicismo, a teoria da empatia e tantas outras. Contudo, a relação com a teoria da arte é um dos elementos que destaca-se dentre os distintos caminhos que persegue ao longo de seus estudos.

O interesse de Benjamin pela história crítica da arte – representada por historiadores do início do século XX, como Heinrich Wölfflin e Aloïs Riegl – também vai ao encontro da crítica do progresso que esboça desde textos de juventude, do início de sua formação, mas também, a partir do método que confere a primazia à constituição particular de cada objeto, Benjamin aguça o seu olhar filosófico sobre as minúcias materiais das coisas.

Em último lugar, nas considerações finais, dedicamos algumas reflexões sobre a importância da atualização de pensadores como Eduard Fuchs e Aloïs Riegl não com o intuito de reconstruir o processo formativo de Benjamin de uma forma descritiva, mas à luz da

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pergunta sobre o que fez o pensamento desses intelectuais saltar aos seus olhos em sua época e o que podem nos dizer ainda hoje. Benjamin atualiza estes pensamentos reconhecendo não apenas suas realizações passadas, mas seu potencial para o presente e a partir do presente. O que é posto em questão é a ruptura, o estremecimento, e não a fixação. Não é à toa que Benjamin é reconhecido dentre os estudiosos de Aloïs Riegl e da Escola de Viena como um dos principais expoentes posteriores de seu trabalho graças a atualização que promoveu em seu pensamento buscando mais destacar e desenvolver seus aspectos revolucionários do que desqualificá-lo por seus limites.

Além disso, apesar do recorte de análise deste trabalho privilegiar, mas com certa flexibilidade, a produção de Benjamin da década de 1930, percebemos ao longo da pesquisa que muitos dos problemas aqui tratados – bem como a crítica ao historicismo e ao progresso e a primazia conferida à constituição material dos objetos – não são problemas novos, constituídos neste período em questão, mas aspectos que já apresentavam-se de diversas formas no seu pensamento e que se transformam parcial ou totalmente ao longo do tempo, na medida em que se reconfiguraram em outras constelações de preocupações, de objetos e de pensamentos. Portanto, é pelo reconhecimento da amplitude da obra de Benjamin, da profundidade e complexidade de suas questões e da multiplicidade de suas referências – como, por exemplo, a teologia judaica por um lado e, por outro, o materialismo histórico – que encerramos este trabalho, fruto de dois anos de pesquisa, não com conclusões objetivas, mas com apontamentos em aberto que conduzem a possibilidades de desdobramentos futuros.

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Capítulo I

O problema do historicismo

“(…) a apresentação materialista da história traz consigo uma crítica imanente do conceito de progresso.”3

Ao tratar sobre a vida, a formação intelectual e a obra de Eduard Fuchs no ensaio “Eduard Fuchs, colecionador e historiador”, de 19374, Benjamin apresenta de forma crítica o

3 BENJAMIN, Walter. Passagens. op. cit., [N 11, 4], p. 789.

4 O ensaio sobre o colecionador Eduard Fuchs foi publicado em 1937, escrito sob encomenda de Max Horkheimer em 1933 para a Revista de Pesquisa Social e se trata de um dos escritos tardios da obra de Walter Benjamin. A partir das correspondências trocadas entre Benjamin e Max Horkheimer, Gretel Adorno, Theodor Adorno e Gershom Scholem é possível descobrir não apenas algumas das motivações de Benjamin para a escrita deste ensaio, mas em grande parte os empecilhos. Horkheimer, então diretor do Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, encomenda-o a Benjamin – neste momento bolsista do Instituto. Apesar de não haver o registro da encomenda nas correspondências, em carta do final de 1934 Horkheimer o questiona sobre o andamento da pesquisa. Porém, Benjamin demonstra-se contrariado ao ter que tratar sobre Fuchs e por vezes tenta adiar o prazo para envio do artigo, o que acarreta muitas cobranças por parte de Horkheimer. Além disso, em quase todas as correspondências, é discutida a situação financeira alarmante de Benjamin, que alega não conseguir manter-se morando em Paris apenas com a bolsa de pesquisa do Instituto, o que atrapalha seus planos de trabalhar na Biblioteca Nacional, onde coletava material para o trabalho ao qual atribuía maior importância, as Passagens. Dessa forma, a demora de Benjamin para concluir o ensaio sobre Fuchs parece ser influenciada, primeiramente, por tratar a encomenda como um obstáculo às suas pesquisas para as Passagens, mas também como pretexto para manter-se vinculado à cidade de Paris e poder continuar suas pesquisas na Biblioteca Nacional para a que considerava sua grande obra, uma vez que alegava a Horkheimer e Adorno que era crucial a sua proximidade com Fuchs que também residia em Paris, onde poderiam encontrar-se para a coleta de informações sobre sua trajetória. Contudo, em setembro de 1935 Benjamin parecia ter se resignado à execução da encomenda ao confessar em carta a Gretel que a redação do texto sobre Fuchs não era mais necessariamente um empecilho para suas pesquisas, mas que conseguiu conciliar sua escrita com temas de seu interesse.

Além disso, em carta datada do mesmo mês, em resposta a Horkheimer, que lhe escreve uma avaliação elogiosa sobre a sinopse do ensaio encomendado, Benjamin parece finalmente aceitar a fixação de um prazo definitivo para sua entrega, porém, tal concordância mostra-se mais relacionada à precariedade de sua situação financeira e, com isso, à necessidade de agradar ao Instituto de Pesquisa para garantir a manutenção de sua bolsa, do que ao apreço pelo assunto. Enquanto que a Scholem, Benjamin lamenta sobre seus projetos inacabados e teme que as Passagens some-se a eles, pois o trabalho no ensaio sobre Fuchs não o permitia mergulhar na coleta de material do século XIX, ao mesmo tempo que esse projeto parecia não suscitar tanto interesse em Horkheimer. Por fim, no início de 1937 o ensaio é finalmente concluído e bem recebido por Horkheimer que muito o elogia – apesar de realizar alguns apontamentos sobre modificações que bastante incomodaram Benjamin – e autoriza sua publicação. Em abril de 1937, Benjamin escreve à Scholem para relatar a novidade da conclusão do ensaio e se retratar ao dizer que o trabalho não assumiu o caráter de penitência que lhe havia conferido inicialmente. A essa mudança de perspectiva atribui o fato de ter conseguido articular este ensaio aos seus interesses de pesquisa para o projeto das Passagens a partir da teoria materialista da cultura que vê na obra de Fuchs. A importância atribuída por Benjamin a este ensaio no contexto de sua obra é posterior à sua escrita, apesar de seus interlocutores e financiadores terem a ele atribuído uma crítica positiva desde sua conclusão. cf. Id., O anjo da

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contexto dele como emblemático da situação problemática na qual encontrava-se o materialismo histórico nas primeiras décadas do séc. XX durante a expansão do partido social-democrata alemão5, o que reflete vários elementos de sua própria formação. A partir

disso, expõe sua crítica a correntes materialistas da arte produzidas nesse período e explicita, de forma mais abrangente, sua concepção de história antecipando diversos elementos que seriam apresentados em suas teses Sobre o conceito da história. Nesse sentido, é interessante nos remetermos aqui ao resumo em francês do ensaio como ponto de partida, escrito pelo próprio autor:

Este trabalho é sobre os escritos de Fuchs, considerados como exemplo do método materialista contemporâneo. O julgamento trazido sobre a obra de Fuchs se confunde com um julgamento crítico sobre a noção de história da cultura, que domina então a ciência popular de inspiração socialista6.

O que nos interessa aqui, de saída, é a concepção tradicional de história, que se fundamenta sobre a noção de história da cultura, que trataremos mais adiante, sua crítica, que para Benjamin deve ser o fundamento de toda teoria materialista, e as potencialidades que Benjamin reconhece no pensamento e na prática de Fuchs frente a essa conjuntura.

Para isso, pretendemos analisar, a partir do contexto de formação intelectual de Eduard Fuchs, o diagnóstico que Benjamin faz sobre a teoria materialista da arte da época que por não abdicar de um conceito de história tradicional burguês, não possui potencial de revolvimento das estruturas sociais. Conceito de história este impregnado pelo historicismo e pelo positivismo que influenciaram a separação das disciplinas em áreas de conhecimento isoladas e trataram o passado histórico como irrevogável e acessível. Entretanto, tal conceito inseria-se em um contexto mais amplo: o de uma ideia de cultura como “bem” ou como

5 A história da criação e expansão do Partido Social-Democrata da Alemanha é abordada por João Lopes Rampim: “O Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) é fruto do programa de unificação de Gotha, realizado em 1875. O programa confluiu duas vertentes até então concorrentes na representação da classe trabalhadora alemã: o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores (SDAP), fundado em 1869, em Eisenach, tendo em nomes como August Bebel, Wilhelm Liebknecht e Wilhelm Bracke seus principais fundadores, e o primeiro partido operário da Alemanha, a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães (Adav), fundado em 1863, em Leipzig, por Ferdinand Lassalle. Marx e Engels colocaram-se contra a unificação, pois a concebiam como uma concessão às influências de Lassalle – as quais, segundo eles – constituíam um retrocesso à causa socialista. A crítica a tais influências está bem documentada em Crítica do Programa de Gotha, apresentada por Marx em forma de glosas ao programa de unificação. O programa de Gotha seria abandonado no Congresso de Halle em 1890, a partir do qual estabeleceu a necessidade de um novo programa, o qual, após ser erigido, foi aprovado um ano depois no Congresso de Erfurt”. Para mais detalhes, cf. RAMPIM, João Lopes. Colecionador,

arte e materialismo histórico em Walter Benjamin. São Paulo: Editora Unifesp, 2018. pp. 65-66.

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“inventário”, dotada de uma ilusão de autonomia em relação às condições sociais e aos processos de produção. A partir disso, e de outros textos de Benjamin da mesma época, pretendemos delinear a crítica à história que deve servir de fundamento a toda teoria materialista e, ao mesmo tempo, nela realizar-se.

O segundo movimento deste capítulo consiste em buscar circunscrever as características da prática de colecionador de Eduard Fuchs, a qual Benjamin atribui o pioneirismo da reflexão materialista sobre a arte. Isto significa que, de algum modo, na sua prática de coletar e organizar os materiais de sua coleção, Fuchs rompe com a concepção tradicional de história que ainda impregnava as correntes materialistas da arte de sua época e realiza a crítica e a ruptura que Benjamin atribui como tarefa do historiador materialista.

***

No ensaio Eduard Fuchs, colecionador e historiador Benjamin diagnostica, na passagem do século XIX para o século XX, insuficientes tentativas de constituição de uma teoria materialista da arte. Menciona autores como Kautsky, que foi um dos primeiros estudiosos materialistas a abordar problemas relacionados à arte, enquanto Plekhanov e Mehring foram protagonistas ao dedicarem-se à questão da arte propriamente dita. Inspirado pela teoria darwinista da evolução, Kautsky tratou as obras de arte a partir de sua importância histórico documental por meio de uma leitura biologizante do desenvolvimento cultural, condicionando os avanços filosóficos ao avanço técnico das sociedades. Segundo Leandro Konder, Plekhanov, apesar de muito ter contribuído com o pensamento materialista sobre a arte, considerava as obras como produtos de seus aspectos históricos e socioeconômicos imediatos. Mehring, por sua vez, investigou a natureza da arte, mas isolava-a das demais atividades humanas, como a econômica ou a social, e não abriu mão da tradição cultural tipicamente burguesa, mas propôs sua assimilação pela classe operária a partir de algumas correções que adaptavam a narrativa histórica tradicional a objetos produzidos pelo proletariado7.

7 KONDER, Leandro. Os marxistas e a Arte: breve estudo histórico-crítico de algumas tendências da estética marxista. Editora Civilização brasileira: Rio de Janeiro, 1967. p. 39.

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Benjamin, no texto História da literatura, ciência da literatura8 de 1931, já havia

se pronunciado criticamente sobre a obra de Mehring, e isto porque “[Mehring] se ateve implacavelmente à convicção de que ‘os mais nobres bens da nação’ deveriam manter sua validez sob qualquer circunstância e antes um bem – no melhor sentido da palavra – conservador que um subversivo”9. Sobre a dupla significação do termo “bem” (algo bom ou

uma propriedade) nos ateremos mais a frente, por ora, cabe ressaltar que, apesar disso, dentre os teóricos materialistas da arte criticados por Benjamin, ele considera Mehring o mais frutífero – ou ao menos o mais influente – em sua reflexão, mas esse tipo de postura que pretende preservar “os bens mais nobres da nação”, até mesmo os mais conservadores, é uma opção por um tipo de história que não faz jus ao materialismo. O que é importante notar nessa crítica direcionada a Mehring é o problema da conservação de uma concepção universalizante de história, cujos “bens mais nobres” seriam dotados de valor de eternidade.

Mehring e Plekhanov refletiram sobre a relação entre a produção artística e o âmbito sociopolítico, contudo, as tentativas de elaboração de uma teoria materialista da arte esbarravam na – para Benjamin, problemática – concepção de história vigente na época, e por isso condicionavam as obras de arte a modelos teóricos em vez de confrontarem problemas especificamente artísticos. Isso mostra que nenhum desses autores detiveram-se nas obras de arte individuais como objeto de seus estudos, apesar de buscarem constituir uma teoria materialista da arte. Ao analisar essas tendências, Benjamin aponta que “os mestres, Marx e Engels, não fizeram mais do que sugerir que existe nela um vasto campo de trabalho. E os primeiros a ocupar-se dele [deste campo da teoria materialista da arte], um Plekhanov, um Mehring, só de forma indireta ou muito tarde absorvem a lição dos mestres”10. Mais adiante

explica que essa tradição favorecia mais o lado político do que o lado científico do marxismo e que isso deve-se ao fato de que esses pensadores materialistas receberam a teoria de Marx e Engels mediada pelo partido.

Benjamin, portanto, marca sua posição crítica: o que é posto em xeque não é uma análise materialista fundada no marxismo científico, mas as apropriações do materialismo

8 BENJAMIN, Walter. História da literatura e ciência da literatura. Trad. Helano Ribeiro. Rio de Janeiro: 7LETRAS, 2016. pp. 26-27.

9 Id., ibid., p. 27.

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realizadas a partir de sua vertente política, especificamente, do partido social-democrata alemão que vivia, naquele momento, um crescimento vertiginoso11.

Não é por acaso que Benjamin retoma o pensamento de Marx na seção I, que, em tom de manifesto, abre o ensaio sobre A obra de arte na época de sua reprodutibilidade

técnica12: “quando Marx empreendeu a análise do modo de produção capitalista, este modo

estava em seus primórdios. Marx orientou suas investigações de tal modo que adquiriram valor de prognóstico”. Mais à frente, na mesma seção, Benjamin prossegue: “o revolvimento da superestrutura, que se processa muito mais lentamente que o da infraestrutura, precisou de mais de meio século para fazer valer, em todos os domínios da cultura, a mudança nas condições de produção. De que forma isso aconteceu, somente hoje se pode indicar.”13 Assim,

Benjamin vê em seu presente a possibilidade de vislumbrar essas mudanças na superestrutura, o que ainda não seria visível na época de Marx. Contudo, sustenta sua distinção em relação às primeiras interpretações materialistas das artes, citadas anteriormente, do contexto da social-democracia, na medida em que reforça que, a partir das indicações sobre aquelas mudanças na superestrutura,

(…) devem ser levantadas certas exigências de caráter de prognóstico, às quais correspondem, todavia, não tanto teses sobre a arte do proletariado depois da tomada de poder, menos ainda sobre a arte na sociedade sem classes, mas teses sobre as tendências do desenvolvimento da arte sob as condições atuais de produção, cuja dialética não é menos perceptível na superestrutura do que na economia. Por isso, seria falso subestimar o valor de combate de tais teses.14

Nesse ensaio, cuja intenção programática está citada acima, Benjamin propõe uma análise materialista das transformações da obra de arte no período de ascensão da técnica industrial que propiciou sua reprodutibilidade. Em Marx, Benjamin encontra um campo

11 Nas teses Sobre o conceito da história, a tese XI também é dedicada à crítica da social-democracia-alemã: “O conformismo que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas ideias econômicas. É uma das causas de seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã do que a opinião de que nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista política.” cf. BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da história”. In: Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política, ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Prefácio de Jeanne-Marie Gagnebin. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 227-228.

12 Daqui em diante será tratado apenas como ensaio da Obra de arte.

13 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. op. cit. p. 15. 14 Id., ibid., p. 17.

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inexplorado – mas não insolúvel – de possibilidade de análise sobre o revolvimento da superestrutura e sua relação com as transformações da infraestrutura, ou seja, das condições de produção de uma sociedade. O movimento de retomada de Marx realizado nesses textos aparece como a tentativa de dar continuidade ao campo de estudo, que para Benjamin, fora deixado em aberto, mas também de propor um materialismo histórico que buscasse suas bases em Marx e não em outras interpretações posteriores, como as do partido. Bem como no ensaio sobre Fuchs, Benjamin retomará pensamentos de Engels para reinterpretá-los em contraposição à leitura mais consolidada após a 2ª Internacional15. Além disso, na citação

acima Benjamin também reivindica o potencial político da teoria materialista da arte, pois defende que a superestrutura, tal como a infraestrutura, também pode revelar a dialética das condições de produção.

Portanto, tanto o ensaio sobre Eduard Fuchs, quanto o da Obra de arte anunciam como ponto de partida a forte tese de que não há ainda uma teoria materialista da arte, a despeito dos autores já mencionados que propuseram uma análise nesses termos, enquanto que o desenvolver dos textos evidencia alguns elementos emblemáticos da análise materialista que Benjamin propõe, tal como o seu potencial político revolucionário. No ensaio sobre Eduard Fuchs, Benjamin apresenta os termos mais contundentes de sua crítica à situação das pesquisas em história e aponta elementos que julga fundamentais para uma teoria materialista da arte dotada de potencial político; “nele”, afirma Ernani Chaves, “Benjamin expõe, pela primeira e única vez, de forma detalhada, sua concepção ‘materialista’ da história e, por conseguinte, do próprio marxismo”16. Por sua vez, no ensaio sobre a Obra de arte Benjamin

elabora uma análise materialista das transformações da arte na sociedade capitalista industrial após a ascensão das técnicas industriais de reprodução, estabelecendo uma relação entre superestrutura e infraestrutura que supere a mera causalidade, mas que, ainda assim, mostra que a arte e a cultura não são isoladas em relação às condições de produção e aos revolvimentos sociais. Com isso, os dois textos aparecem como fundamentais para investigarmos alguns dos termos sobre os quais Benjamin propõe uma teoria materialista da arte e em qual medida destoam das correntes materialistas da arte do início do século XX.

15 CHAVES, Ernani. “É possível uma história materialista da cultura?” Walter Benjamin (re)lê Friedrich Engels. In: No limiar do moderno: estudos sobre Friedrich Nietzsche e Walter Benjamin. Belém: Paka-tatu, 2003. p. 38. 16 Id., ibid., p. 35.

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Historicismo e materialismo histórico na época da social-democracia alemã

A insuficiência da teoria materialista da arte do início do século XX e que ainda repercutia na década de 30, diagnosticada por Benjamin, estava, em última instância, na não realização dos propósitos mais urgentes, sejam teóricos ou políticos, pois a teoria que se propôs materialista continuava alimentando o sistema que dava manutenção às estruturas de dominação social, tanto nas relações de produção, quanto na posse do conhecimento produzido, por mais revolucionário que fosse o posicionamento político de seus pesquisadores.

Como ponto de partida para o diagnóstico desta situação na qual encontrava-se inserido o materialismo histórico durante a época da formação de Fuchs, Benjamin retoma uma carta de Engels17 destinada a Mehring, escrita em 1893:

Aquilo que mais contribui para a cegueira da maior parte das pessoas é essa aparência de uma história autônoma das formas de organização política, dos sistemas do Direito, das concepções ideológicas nos seus respectivos domínios específicos. Quando acontece a ‘superação’ da religião católica oficial por Lutero e Calvino, quando Hegel supera Fichte e Kant, ou Rousseau, indiretamente, com o seu Contrato Social, o constitucionalista Montesquieu, trata-se de um processo que permanece adentro dos limites da teologia, da filosofia, da teoria política, que representa uma etapa na história dessas áreas de pensamento e não sai delas. E desde que a ilusão burguesa da natureza eterna e em absoluto definitiva da produção capitalista chegou a essa conclusão, até a superação dos mercantilistas pelos fisiocratas e Adam Smith é vista como uma mera vitória do pensamento, não como o reflexo, no pensamento, da transformação de fatos econômicos, mas como a visão correta e finalmente alcançada de condições reais eterna e universalmente vigentes18.

Segundo a análise desse trecho, Benjamin afirma que Engels critica duas concepções comuns na época: a primeira, de que “na história das ideias” um novo paradigma seja na arte, ou na ciência, seria a “evolução”, “reação” ou “superação” de seu antecessor;

17 Ernani Chaves, sobre a referência de Benjamin a Engels, comenta que “essa referência tão elogiosa a Engels merece, sem dúvida, algumas considerações. O que salta aos olhos de imediato, é o quanto Benjamin toma Engels num sentido bastante diferenciado da leitura dominante a partir da 2ª Internacional, que enfatiza a ‘teoria da revolução do último Engels’, a partir de suas implicações com um pensamento de base darwinista” e mais adiante indica que “Ao retomar uma referência a Engels apartada da leitura dominante de sua obra, Benjamin indica, logo no início de seu texto, sua posição crítica diante do marxismo da 2ª Internacional”. cf. CHAVES, Ernani. op. cit., p. 38.

18 BENJAMIN, Walter. “Eduard Fuchs, colecionador e historiador”. op. cit. p. 127. Esta carta também reaparece no arquivo N – Teoria do conhecimento, Teoria do progresso - das Passagens. BENJAMIN, WALTER.

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contesta também a separação desses elementos de seus “efeitos sobre as pessoas e do seu processo de produção, tanto espiritual, como econômico”19, ou seja, que considera o

pensamento uma forma autônoma em relação às condições sociais. A isso Benjamin acrescenta que a “força explosiva do pensamento de Engels” vai além, pois “(…) questiona o caráter fechado das várias áreas do saber e da sua produção – por exemplo, no que se refere à arte, o seu próprio e o das obras que se propõe englobar”, caráter fechado que dissocia a obra de arte tanto das suas relações de produção, quanto das relações posteriores que ela estabelece com a sociedade, através de distintas recepções. Irving Wohlfahrt, a respeito desta carta, acrescenta que “de uma perspectiva marxista, então, não há uma história autônoma da cultura”20 e esse é o ponto de vista que inicia o texto de Benjamin e vai contrapor-se às teorias

materialistas da arte produzidas no contexto da social-democracia e investigar cada um dos elementos que contribuem com a perpetuação de um conceito tradicional de história.

É nesse sentido que Benjamin afirma que a teoria materialista da arte ainda não possuía uma história, isso porque caberia à história detentora do direito de ser chamada de materialista uma inquietação que romperia com a crença historicista de que o passado histórico podia ser alcançado tal como aconteceu. “O materialista histórico tem de renunciar ao elemento épico da história” e o materialismo histórico deve realizar a “exposição dialética da história”21 para assim abdicar de seu elemento épico. Em outras palavras, trata-se da

renúncia a um tipo de narrativa histórica que encadeia acontecimentos e fatos uns aos outros de forma causal e homogênea, seguindo o fluxo de uma suposta história universal, como explica Gagnebin22. Esta renúncia é a condição de possibilidade para a existência de uma

teoria materialista que faça jus à sua tarefa e toma as devidas precauções contra o risco de uma historiografia se apresentar falsamente como revolucionária ao descrever de forma “épica” – e estetizante – o sofrimento das classes oprimidas23, ao apenas substituir os

personagens da história, mas mantendo sua organização ao não questionar as estruturas de

19 BEJAMIN, Walter. “Eduard Fuchs, colecionador e historiador”. op. cit. p. 127.

20 WOHLFAHRT, Irving. “Smashing the Kaleidoscope”: Walter Benjamin’s Critique of Cultural History. In: STEINBERG, Michael P. (ed.). Walter Benjamin and the demands of history. Nova Iorque: Cornell University Press, 1996. p. 195. (tradução nossa)

21 BENJAMIN, Walter. “Eduard Fuchs, colecionador e historiador. op. cit. p. 128.

22 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. 2.ed. São Paulo: Pespectiva, 2004. p. 111.

23 O elemento épico da história faz a apologia dos “vencedores”: “A celebração ou apologia está empenhada em encobrir os momentos revolucionários do curso da história. Ele almeja intensamente a produção de uma continuidade, e dá importância apenas àqueles elementos da obra que já fazem parte da influência que ela exerceu. Escapam a ela os pontos nos quais a tradição se interrompe e, com isso, escapam-lhe as asperezas e saliências que oferecem um apoio àquele que quer ir além”. BENJAMIN, Walter. Passagens. [N 9a, 5]

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dominação social. Ao se contrapor a esse isolamento das áreas de conhecimento, principalmente no que diz respeito às “ciências do espírito” [Geisteswissenchaft] - Benjamin reforça a intenção programática do ensaio sobre a Obra de Arte. Nesse sentido, afirma o propósito de analisar “superestrutura” assim como Marx havia feito com relação ao modo de produção capitalista24, reconhecendo, portanto, que o revolvimento da superestrutura também

está atrelado às mudanças nas condições de produção. Com isso, Benjamin rompe com a concepção de separação da cultura em relação às condições histórico-sociais. E esse deve ser o ponto inicial para uma história que se pretende materialista.

Esse problema já havia sido abordado por Benjamin no texto História da

literatura e ciência da literatura, onde denuncia a frequência com a qual cada ciência era

tratada como um conhecimento fechado em si do ponto de vista de sua história e de seu desenvolvimento político-intelectual. Do ponto de vista da história literária, as consequências disso são metodológicas, uma vez que em obras consideradas como criações de grandes gênios, os seus aspectos filosóficos e artísticos passam a ser negligenciados e as grandes obras abordadas apenas através da mera comparação com outras do mesmo gênero, de forma classificatória. Esse fenômeno, caracterizado pela perda de uma relação genuína entre a história e a filosofia, para Benjamin respondia a uma demanda do público burguês, que levou à produção de manuais divididos em periodizações regulares e de caráter catalográfico, contudo, esse tipo de pesquisa não reconhecia-se como estando a serviço de uma classe. Com a proclamação de valores universais “a pesquisa torna-se um mero ofício amador num culto em que os ‘valores eternos’ são celebrados segundo um rito sincrético”25. Nesta esteira,

Benjamin pontua que “apenas uma ciência que renuncia a seu caráter museológico está apta a colocar o real no lugar da ilusão”26, ou seja, que renuncia seu caráter classificatório, ideal e

abstrato.

Por sua vez, a dicotomia entre engajamento político e produção intelectual também é refutada por Benjamin no texto Autor como produtor, escrito em 1934, ainda em relação à produção literária. Benjamin direciona sua crítica ao escritor burguês que alega que suas obras são destinadas apenas à diversão, portanto, não reconhece que escreve em favor dos interesses de uma classe e sente-se dotado de uma pretensa autonomia. A esse tipo de

24 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. op. cit., p. 9-11. 25 Id., História da literatura e ciência da literatura, op. cit., p. 19.

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escritor Benjamin contrapõe o escritor progressista, que reconhece ser orientado por uma causa – por uma tendência – em favor do proletariado e abre mão, portanto de sua suposta autonomia e neutralidade como escritor. Além disso, Benjamin defende que a tendência política de uma obra e sua qualidade literária – ou tendência literária – não são diametralmente opostas e, mais do que isso, “a tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político se também o for do ponto de vista literário”, pois “é a tendência literária, contida em toda tendência política correta, que determina a qualidade da obra”. Ao assumir essa relação, forma e o conteúdo tornam-se indissociáveis. Assim, Benjamin se opõe tanto a uma literatura engajada meramente “panfletária”, ou seja, que abre mão de sua qualidade artística em nome da propaganda política banalizada, quanto à dicotomia entre forma e conteúdo e à falsa aparência de neutralidade das obras, uma vez que alegar priorizar apenas a diversão, em vez de uma tendência política, não significa neutralidade, mas estar a serviço da ideologia dominante. Opor a tendência política à qualidade de uma obra, para Benjamin, trata-se da tentativa de “abordar fenômenos literários de modo antidialético, por estereótipos”27, sendo que o oposto disso, o tratamento dialético,

consistiria em situar formas antes vistas como rígidas e isoladas – “como obra, romance, livro” – em seu contexto social vivo28.

A crítica presente no ensaio sobre Eduard Fuchs, assim como nestes ensaios anteriores sobre literatura, torna-se mais polêmica por denunciar não apenas o conservadorismo da história de ideologia burguesa, mas na medida em que alega que mesmo os intelectuais militantes do partido social-democrata, que presavam pela tendência política de seus trabalhos, conservaram as disposições teóricas que davam manutenção à dominação sobre o proletariado. Portanto, a forte crítica feita por Benjamin sobre a teoria materialista da arte no contexto da social-democracia trata sobre o conservadorismo de sua produção, pois de nada adiantaria declarar apoio à classe trabalhadora, se não fossem combatidas as estruturas de dominação, principalmente no âmbito da cultura, que se camuflava como autônomo e neutro, relegado ao mero “entretenimento”, “interesse” ou “curiosidade”29.

27 BENJAMIN, Walter. “Autor como produtor”. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política, ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Prefácio de Jeanne-Marie Gagnebin. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 121-122.

28 Id., ibid., pp. loc. cit.

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