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Capítulo 3. Os mercados de gases combustíveis

3.2. Contexto atual e perspectivas do gás natural

3.2.3. Restrição da oferta de gás natural

Os sinais de que o cenário de oferta de gás natural não era tão favorável quanto parecia à primeira vista começaram a se mostrar já no início de 2004. Em janeiro daque- le ano, foram feitos testes para verificar se as termoelétricas do Nordeste tinham condi- ções de funcionar simultaneamente. Os testes mostraram que a disponibilidade efetiva de geração das usinas do Programa Prioritário de Termoeletricidade (PPT) era de 409 MW médios, contra a considerada até então de 1.195 MW médios. A diferença devia-se à falta de gás natural para produção de eletricidade36.

A situação começou a ficar mais complicada, no entanto, a partir de 2005. No primeiro semestre daquele ano, os consumidores brasileiros que dependiam do gás natu- ral importado da Bolívia começaram a ficar apreensivos diante das ameaças de naciona- lização das reservas de hidrocarbonetos do país vizinho. O fato tornou-se realidade ape- nas no ano seguinte, após a eleição de Evo Morales à presidência do país. Junto com a nacionalização das reservas, as empresas produtoras de petróleo e gás no país tiveram de transferir seus ativos para a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB). A estatal local também passou a ser responsável pela comercialização dos hidrocarbonetos (BARUFI, ET AL., 2006).

A nacionalização na Bolívia não causou interrupções no fornecimento de gás pa- ra o Brasil. Mesmo assim, as notícias na imprensa brasileira a respeito do assunto foram suficientes para deixar parte dos consumidores em pânico: a Bolívia deixou de ser um parceiro confiável e o gás natural passou a ser visto como um combustível de risco. A própria Petrobras suspendeu temporariamente novos investimentos na expansão de pro- dução de gás na Bolívia. Paralelamente, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) cancelou o processo regulatório que permitiria a ampliação do Gasbol. Anteriormente estava previsto um aumento de capacidade da ordem de 12 mi- lhões de metros cúbicos por dia (BARUFI, ET AL., 2006).

No cenário interno, os problemas também começaram a se agravar. Percebeu-se que, apesar dos planos da Petrobras de massificação do uso do gás, a infra-estrutura de transporte do combustível ainda era insuficiente para permitir a transferência de gás de regiões onde havia excesso de gás – o Sudeste – para regiões com falta – em particular o

36 As informações foram obtidas no site da Aneel:

Nordeste. Além disso, o crescimento do consumo de eletricidade passou a exigir o des- pacho cada vez mais freqüente das termoelétricas a gás natural. Ao mesmo tempo, a Petrobras não renovava contratos com as distribuidoras e estas continuaram expandindo seus mercados sem retaguarda do fornecedor de gás (informação pessoal37).

A gravidade da situação se confirmou em outubro de 2007, com a interrupção no fornecimento de parte do gás natural distribuído pela CEG, CEG Rio e Comgás. A seca que então se verificava obrigou o despacho de usinas termoelétricas e evidenciou o de- sequilíbrio entre oferta e demanda. O gasto extra de 8 milhões de metros cúbicos de gás natural por dia para gerar eletricidade causou cortes no fornecimento a indústrias (PAM- PLONA E TEREZA, 2007). Algumas foram estimuladas pelas distribuidoras a retomar o

uso do óleo combustível (CAPELA, 2007).

A Petrobras, que é responsável pela produção e importação da maior parte do gás natural consumido no país, começou a renegociar os contratos com as distribuidoras em novas bases a partir de dezembro daquele ano. Os novos contratos incluem quatro formatos de contratação, descritos na Tabela 3.2. O principal objetivo é garantir a possi- bilidade de transferência de parte do gás para a geração termoelétrica quando for neces- sário o acionamento dessas usinas. Anteriormente, todo o gás era contratado em termos firmes e inflexíveis, ou seja, que deveria ocorrer a entrega do volume contratado.

Tabela 3.2 - Características dos novos formatos de contratos de compra de gás natural

Tipo de contrato Principais características

Firme inflexível A Petrobras garante a entrega do volume de gás natural estabelecido. Interruptível O fornecimento pode ser interrompido apenas pelo fornecedor, de acordo

com condições previamente negociadas.

Firme flexível O fornecimento pode ser interrompido, mas o supridor tem o compromis- so de cobrir os custos adicionais dos consumidores decorrentes do uso de combustível substituto (óleo combustível).

Preferencial A distribuidora detém a prerrogativa de interromper o fornecimento, en- quanto o fornecedor é obrigado a providenciar o suprimento de gás quan- do demandado.

Fonte: MANO, 2008.

37 A informação é de Zevi Kann, comissário chefe do Grupo Técnico e de Concessões da Comissão de

Serviços Públicos de Energia (CSPE, atual Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo), e foi obtida em entrevista feita em agosto de 2007.

Em meio a esse cenário crítico, a Comgás acabou se voltando para o mercado residencial de gás natural que, juntamente com o segmento comercial, ainda detém par- ticipação muito reduzida nas vendas, como mostra o Gráfico 3.5. Para atingir os clientes residenciais, a estratégia da companhia inclui um aumento nos investimentos na capila- rização dos ramais de distribuição. Além disso, passou a trabalhar mais no convenci- mento dos consumidores residenciais para que passassem a usar o combustível. Em 2007, a empresa ligou cerca de 75 mil clientes residenciais e fechou o ano com 680 mil38 unidades consumidoras desse segmento. O volume total de gás distribuído aumen- tou 5,8%, chegando a um total de 120,7 milhões de metros cúbicos no ano.

O potencial de crescimento é grande tanto em termos de novas unidades residen- ciais como em termos de volume, no caso das unidades já ligadas à rede. Estimativas da Comgás indicam que, em sua área de concessão, existam mais de 6,4 milhões de domi- cílios (MORAES, 2003). Evidentemente que, por se localizarem em regiões de baixa den-

sidade demográfica, boa parte desses consumidores nunca serão conectados à rede de gás. Mas, considerando o mercado que a distribuidora já atende atualmente, há espaço para quase dobrar o volume distribuído. Em dezembro de 2007, a empresa entregou 340 mil metros cúbicos de gás natural por dia para 680 mil unidades residenciais. Ou seja, houve um consumo médio de 0,5 metro cúbico por dia por consumidor naquele mês, o equivalente a um consumo mensal de 15 metros cúbicos.

A Comgás trabalha com uma média de consumo residencial de 7 metros cúbicos por mês nos casos em que há só fogão e de 27 metros cúbicos mensais quando também há aquecedor de água a gás. Caso todos os consumidores da distribuidora estivessem nesse patamar máximo de consumo, a empresa teria distribuído em torno de 18,36 mi- lhões de metros cúbicos em dezembro ou 612 mil metros cúbicos por dia, 80% a mais do que o volume entregue naquele mês. Esses dados sugerem que os investimentos da companhia no segmento residencial não estão sendo feitos da maneira mais racional possível39.

Essa situação se refere em particular às unidades já construídas, nas quais o fo- gão é o único ponto de consumo garantido. Na maioria dos casos, a introdução do aque- cedor a gás natural ocorre apenas quando já existe a estrutura preparada para a produção

38 O número se refere à quantidade real de clientes e não de medidores, já que alguns dos medidores são

coletivos.

39 Reconhece-se, no entanto, que essa avaliação é apenas superficial, já que a eficiência de tais investi-

mentos também depende de outros aspectos, como o interesse dos consumidores, por exemplo, que não serão abordados neste trabalho.

centralizada de água quente, com boilers elétricos ou aquecedores a GLP. A necessida- de de reformas de maior porte quando são usados chuveiros elétricos dificulta a introdu- ção do aquecedor a gás nas construções já existentes (informação pessoal40).

De uma maneira geral, o principal vetor de expansão das redes no segmento re- sidencial são os novos domicílios. Isso porque o trabalho de inclusão de sistemas de aquecimento de água a gás é mais prático nas novas unidades habitacionais, já que o processo normalmente demanda, por exemplo, a existência de dupla canalização para água, o que não existe na maioria das residências onde se usam chuveiros elétricos41.

Para convencer as construtoras a incluir sistemas a gás natural nas novas resi- dências, consultores da distribuidora acompanham as obras em determinadas regiões da área de concessão da empresa. É um trabalho de mão dupla: as empresas buscam a liga- ção dos condomínios novos e a Comgás vai atrás de novos clientes. Ela volta-se princi- palmente para os empreendimentos em que está previsto o uso de aquecedores a gás, principalmente se for necessário expandir a rede para atingir as novas unidades habita- cionais. A classe social para a qual o empreendimento é destinado não é considerada nesse processo de decisão (informação pessoal42). Apesar desses esforços e do interesse

das construtoras e clientes, a falta de redes em algumas localidades dificulta a ligação de novos consumidores em diversos locais (MORAIS, 2005).