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RESULTADOS E REFLEXÕES SOBRE TEXTO EM AÇÃO

5. RITUALIDADE: OS USOS E AS APROPRIAÇÕES DA TELENOVELA POR MULHERES AUTO-ORGANIZADAS

5.3 RESULTADOS E REFLEXÕES SOBRE TEXTO EM AÇÃO

A aplicação do texto em ação nos serviu para ratificar os dados que foram coletados nas entrevistas, pois, de maneira geral, as leituras que as mulheres realizam acerca de temas como relacionamentos abusivos, infidelidade masculina e feminina e posições ocupadas pelas mulheres em situações de violência, se confirmam a partir das interações que realizam com as novelas durante a exposição das cenas.

Durante a aplicação desta técnica percebemos comentários mais e menos conservadores por parte das entrevistadas. O tema da infidelidade confirma-se como complexo, na medida em que apenas Luanda percebe e critica o fato de as próprias mulheres culparem outras mulheres que são infiéis. As outras duas entrevistadas julgam mais as mulheres que traem – sejam elas infiéis aos cônjuges ou amantes. As maiores críticas que Rafaela e Maria Luísa realizam aparecem quando expressam o ―nojo‖ que sentem com relação aos personagens Dom Pedro e Pedro, que foram infiéis às esposas.

A partir das leituras que realiza das tramas, Luanda confirma o entendimento de que a saída das mulheres de relacionamentos abusivos e/ou violentos envolve questões que vão além das vivências individuais. Apesar de refutar a violência contra as mulheres, Rafaela parece perceber que a saída desse tipo de relacionamento depende mais das próprias mulheres que as vivenciam, o que, em certa medida, pode a levar a culpá-las.

Bem como ocorre no restante da pesquisa, marcas da maternidade ideal, marcada por características como o cuidado e a compreensão para com os filhos, são reforçadas a partir do texto em ação, o que ocorre a partir do endosso de boas mães ou das críticas àquelas que não atendem aos aspectos esperados.

A esfera do trabalho não é tratada pelas mulheres no texto em ação. Inferimos que talvez pela pouca representatividade desse tipo de atividade nas tramas – constatada pelas entrevistadas –, durante a aplicação dessa técnica as mulheres não chegam sequer a lembrar de novelas através deste ponto.

Como em Junqueira (2009, p. 226), confirmamos com o texto em ação a validade das telenovelas em auxiliar as receptoras a fazer ―uma narrativa própria da vivência de desigualdades, através de processos diversos como identificações, julgamentos, comparações, análises, etc.‖ Aqui, as narrativas de experiências a partir das tramas não ocorre apenas por meio das desigualdades, mas de todo e qualquer tema ou núcleo que remeta às experiências das mulheres, seja no âmbito da maternidade, das relações afetivas, da sexualidade ou do trabalho, mesmo que este último em menor medida.

As contribuições do método nessa pesquisa foram além da captura das percepções sobre as relações de gênero. A técnica mostrou-se útil para desvendar e reiterar a presença da telenovela na vida das mulheres, sendo que Rafaela foi a mais detalhista ao tratar sobre vivências, relações e características de atores e atrizes, bem como sobre diferentes personagens vividos pelos mesmos intérpretes.

Por questões relativas ao tempo para a realização da pesquisa, o texto em ação74 foi aplicado com as entrevistadas que mais problematizaram questões relativas a gênero no decorrer da realização das entrevistas, Maria Luísa, Rafaela e Luanda. Os temas e as cenas das novelas apresentadas às mulheres foram escolhidos pelas próprias, como explicado no subitem 2.1.1. Quase todo o tempo de apresentação das 20 cenas de telenovelas foi permeado por comentários das entrevistadas, mas boa parte deles não foi sobre gênero. Para sintetizar essa apresentação, focaremos nas interações das mulheres acerca das relações de gênero, quando elas o fazem.

Escrava Isaura75 é lembrada pelas entrevistadas a partir dos abusos sofridos pela protagonista por parte do seu ―patrão‖. A cena da novela retrata o momento em que Leôncio (Rubens de Falco) ataca Isaura (Lucélia Santos) e pede forçosamente que ela lhe beije, deixando nítidas marcas da diferença de classe entre os personagens e os reflexos dessa sobre as configurações das relações de gênero. A partir dessa cena, Luanda e Maria Luísa se detém em comentários relacionados aos vínculos estabelecidos entre classe e gênero. A primeira comenta que já sofreu assédio sexual em mais de um emprego e que, por conta disso, entende a cena como ―bem atual, do que tem o dinheiro, tem o poder, achar que a gente é subalterna e que nessa relação de força a gente tem que ser fácil‖. Maria Luísa afirma que ―ele era dono dela‖, no sentido da relação escravo e senhor. Rafaela trata sobre a forma como as novelas vêm cada vez mais abordando temas de cunho social, como abuso sexual e a questão

74 As tabelas com os resultados do texto em ação não serão apresentadas aqui porque ocupariam 15 páginas. 75 As sinopses das telenovelas mencionadas aqui foram apresentadas no subitem 5.2.

LGBTTTs76, mas relaciona a incidência desse tema ao fato de existirem autores de novelas gays, mais do que algo que vem do social.

Pedra sobre Pedra é mencionada pelo ritual realizado pelas fãs e ex-amantes de Tadeu (Fábio Jr.), que comem uma flor para que esse apareça. A partir dessa cena, Rafaela cogita a possibilidade de receptores terem comido flores, como faziam as personagens: ―deve ter tido gente botando isso na boca [risos]‖. Essa observação remete ao poder da novela em auxiliar na conformação do comportamento dos receptores.

A novela A Viagem é mencionada pela relação conflituosa entre Diná (Christiane Torloni) e Téo (Maurício Mattar). A partir do cunho religioso da novela, que retratava a vida após a morte, a principal colocação de Luanda foi a crítica que realiza sobre ao modo como a igreja católica percebe os gays: ―na missa de sétimo dia da minha tia, quando tinha sido aprovado o casamento gay na Argentina, o padre falou que ali na igreja eles (gays) podiam ficar sentados nos bancos assistindo a missa, mas jamais ir pro altar. Eu fique muito P da vida‖. Sem apresentarem opiniões nítidas, Rafaela e Maria Luísa comentam sobre o fato de Diná ter sido apaixonada pelo namorado mais jovem que ela.

A telenovela O Clone é mencionada pelo primeiro encontro dos protagonistas Jade (Giovanna Antonelli) e Lucas (Murilo Benício), marcado por amor à primeira vista. Além de comentários mais gerais das entrevistadas, Rafaela refere-se a sua percepção acerca da masculinidade quando entende que Lucas é ―bundão‖ por demorar para assumir o relacionamento com Jade.

As entrevistadas definem Mulheres Apaixonadas com base na relação conflituosa estabelecida entre Heloisa (Giulia Gam) e Sérgio (Marcello Antony) devido ao ciúme da mulher. Na cena que as mulheres assistiram, a personagem conta para o marido que realizou uma laqueadura para não dividir o amor do cônjuge com filhos. Luanda e Rafaela intitulam a personagem como ―louca‖ e ―obcecada‖. A última questiona relacionamentos marcados por diferença de idade: ―isso que dá, uma mulher mais velha querer ficar com um cara mais novo e ele querer dar uma de boyzinho da praia. É que nem um véio querer ficar com uma guria mais nova, acha o que, que a guria não vai olhar pros caras mais novo?‖.

Essa novela também é indicada pelas entrevistadas pela violência contra os avós praticada pela personagem Dóris (Regiane Alvez). Na cena, ela agride o avô, enquanto briga com o irmão. Luanda coloca a existência do ―individualismo‖ das últimas gerações como um problema comum independentemente das opções políticas das famílias, diferente da forma

como ela podia comportar-se quando jovem: ―eu tenho algumas críticas com relação ao modo como se comporta essa geração. Não sei se é porque eu era muito família, assim, tinha muita preocupação com a minha mãe e os meus irmãos‖. Maria Luísa menciona que o pai da personagem foi criticado após agredi-la com uma cinta e Rafaela afirma que ―odiava essa guria aí‖.

Senhora do Destino marcou a trajetória da maior parte das mulheres pelas relações conflituosas entre Maria do Carmo (Susana Vieira) e Nazaré (Renata Sorrah), porque essa sequestrou a filha de Maria do Carmo. Na cena apresentada às mulheres fica expressa a persistência da mãe no objetivo de encontrar a filha. É sobre isso que versa Luanda quando afirma: ―aí mostra o que a gente é capaz de fazer pelos filhos, né‖,

Outro ponto dessa mesma novela, lembrado pelas informantes, é a relação abusiva e violenta entre Cigano (Ronnie Marruda) e Rita de Cássia (Adriana Lessa). Na cena, o personagem ameaça a esposa ao perceber a aproximação de Constantino (Nuno Melo), que depois casa com a personagem. Maria Luísa afirma que Rita não traiu o marido na novela. Luanda critica a relação desigual entre homem e mulher e afirma que ―esse homem achava que ela era mercadoria, que ela era posse dele‖. Ela também critica ―essa coisa de mulher casada não poder ter amigo homem‖ e conta que foi julgada por familiares na época em que trabalhava em uma ONG por viajar demais e, consequentemente, ficar pouco em casa.

Durante toda a pesquisa Rafaela posicionou-se contra a violência às mulheres. Entretanto, nos parece que sua percepção de que a saída de relações marcadas pelo abuso ou e/ou violência depende mais da mulher pode a levar a culpar as vítimas de agressões pela permanência nessas relações: ―essa parte eu odiava. Ele batia nela na cadeia e ela fazia visita íntima, vai catar coquinho no asfalto!‖. Ela relaciona a independência financeira com a emocional: ―quem se sustentava não era ela? Ela ainda tinha que conseguir dinheiro pra mandar pra ele na cadeia. A mulher que sabe se sustentar sozinha, se tem dois braços e duas pernas, que se vire!‖.

Ao tratarem de Páginas da Vida, as entrevistadas relembram o preconceito que Marta (Lília Cabral) tinha com relação à neta com Síndrome de Down. A cena apresenta o momento em que a avó descobre a situação da neta e não aceita cuidar da menina. Maria Luísa e Rafaela julgam o comportamento de Marta como mãe por ser desprovido de cuidado e compreensão. A primeira chega a afirmar que ―me deu um nojo dessa mulher que Deus o livre‖. A partir de experiências em trabalhos como Assistente Social, Luanda comenta sobre a incidência de pais que abandonam esposas ao descobrir que terão filhos com problemas, estes que fazem com que as crianças fujam das suas ―idealizações‖ masculinas.