• Nenhum resultado encontrado

2.2 A FRAGILIDADE DO TESTEMUNHO DA CRIANÇA

2.2.1 A Revelação: o enfrentamento da família

A dificuldade da criança em revelar as sevícias sexuais de que é vítima também está relacionada às representações da sexualidade que aprendeu em sua vida cotidiana, podendo relacionar o sexo ao que é sujo e proibido. O sentimento de estar enredada em uma situação amoral e o temor dos castigos que poderá sofrer com a revelação, gera uma auto- imagem negativa e um desconforto emocional constantes.

A culpa remete a uma instância moral que legisla sobre o bem e o mal, sobre os valores dos pais e da sociedade da qual faz parte, portanto quanto mais rígidas as regras familiares e os princípios educacionais, maior será a intensidade dos danos psíquicos e da resistência da criança-vítima em confiar suas queixas a alguém.

Os adultos que são escolhidos pela criança ou que flagraram o abuso sexual, na maioria das vezes, preocupados com a repercussão de tal revelação e diante da irreversibilidade da situação provocada após a exposição familiar e social, não compreendem o comportamento da criança e não se atêm em preservá-la de constrangimentos ou culpas. A dúvida e/ou a acusação dos adultos sobre a criança, com a alegação de que está mentindo, é outro fator que impede a revelação e pode levá-la a se retratar posteriormente, já que se confunde em entender o que é pior, se a clandestinidade do que vivia ou as acusações e incredulidades a que está sendo submetida após a revelação. A criança percebe-se só e exposta a uma confusão de conceitos e valores, levando-a a estabelecer relações e vínculos inseguros.

Na maioria das vezes, o segredo fez parte da vida da criança por um longo período, intervindo em seu funcionamento psíquico e gerando mecanismos mentais para suportar o sofrimento. Por esse motivo, o momento da revelação e a maneira como é recebida determinarão as conseqüências psicoemocionais que a criança levará consigo por toda a vida.

Nas cidades pequenas, onde os fatos, verdadeiros ou falsos são comentados por diferentes setores da sociedade, a criança que é vítima de abuso sexual, bem como sua família, sofre assédios e constrangimentos intoleráveis, que podem suscitar pressões para a criança desmentir, ou ela própria sinta tal necessidade para se preservar. Os familiares se vêm às voltas com uma problemática que prefeririam ignorar e que gostariam que fosse fruto da atividade imaginativa da criança. Assim, optam por omitir-se de buscar os recursos judiciais para proteger a criança e a si mesmos, vivenciando contradições que modificam indelevelmente a dinâmica familiar. O ato de revelar o abuso sexual é

vivenciado tanto no aspecto individual, quanto social, desvelando os limites familiares e materializando os pecados, na significação do que é religioso e moral.

As questões de gênero relacionadas à educação das crianças são expostas frente às reações dos familiares à revelação do abuso sexual. Por mais sutil que sejam as manifestações dos pais, há uma clara tendência ao temor de que a criança apresente algum desvio sexual, no sentido de haver gostado dos atos libidinosos e, assim, possa desenvolver conduta inapropriada na vida adulta. Em relação à menina, os temores são de que apresente uma sexualidade aguçada e que se interesse por uma vida sexual ativa e não contida como socialmente se espera dela, e quanto ao menino, há o temor que desenvolva atitudes efeminadas e que desperte para o homossexualismo.

Muitas das reações dos pais são agressivas, descarregando sobre a criança a angústia vivenciada diante da violação da infância de seu filho e da frustração das expectativas geradas pelo despertar sexual deste, seja menino ou menina. A impulsividade de um ato agressivo dos pais, quando tomam conhecimento do ocorrido, demonstra a responsabilidade que depositam na criança sobre a permissão para o ato e em uma proporção maior para os casos em que o agressor é o padrasto da vítima-menina. Assim, as contradições vivenciadas pela criança no momento da revelação e a inusitada reação dos pais são particularidades importantes a serem levadas em conta, quando são tomadas as declarações da criança, posteriormente, no âmbito policial e judicial.

Os fragmentos do relato de uma mãe, no Caso 6, autenticam o que foi dito acima, a qual ao flagrar o companheiro praticando atos libidinosos com sua filha de 05 anos de idade, reagiu, primeiramente, agredindo ao abusador e, após, desferiu alguns tapas na criança. Mostrou-se arrependida, posteriormente, ao analisar sua própria conduta, pois sua atitude impulsiva e reacional foi de culpar também a vítima, já que há uma construção histórica que referencia a figura feminina como provocadora dos impulsos sexuais do homem.

Percebe-se que a maneira como o fato é tratado na família e as circunstâncias em que ocorreu a revelação vão determinar as reações da criança e sua predisposição a falar sobre o assunto tanto no inquérito policial, quanto no processo judicial. Em contrapartida, também a preparação e os modos de interrogatórios são determinantes para que a criança sinta-se segura em seu depoimento e possa validar seu testemunho perante a autoridade dos adultos. A diferenciação entre a revelação e a denúncia é necessária, uma vez que são dois processos distintos, mas nenhum menos doloroso para a vítima.

A revelação torna-se pública a partir do momento que ultrapassa as barreiras da família e exterioriza-se para o início do processo de responsabilização, ou seja, quando é levada ao conhecimento de alguém capaz de iniciar o processo de responsabilização (Professora, Diretora de escola, membros do Conselho Tutelar, Policiais Militares, Delegado de Polícia etc.) (ROCHA, 2006, p.35).

Portanto, após a revelação há um novo processo a ser enfrentado, o que exige daquele que recebeu a queixa o reconhecimento da palavra da criança, já que estará desempenhando um importante papel, não somente diante dos olhos da vítima que o elegeu como denunciante, mas também pelo temor em comprometer-se diante do seu grupo social e das autoridades judiciais.