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CAPITULO I – AS TRANSFORMAÇÕES TECNOLÓGICAS NA SOCIEDADE

4.1. Revendo o conceito de comunidade

A história da humanidade apresenta, em diferentes momentos, a formação e o relacionamento de grupos sociais nas diversas regiões do planeta. Sendo o homem um ser gregário, sempre buscou o convívio em grupos. A família, predominantemente, constitui- se em seu primeiro grupo social. Depois da família, outros grupos foram surgindo, ligados por interesses comuns como, por exemplo, as instituições religiosas. A comunidade, então, pode ser caracterizada de maneira simplificada como um conjunto de pessoas que vivem num mesmo espaço, partilhando os mesmos valores, crenças e cultura.

Etimologicamente, a palavra comunidade deriva de comum: algo que pertence a todos. Conceitualmente, várias são as definições dadas para o termo. O dicionário de

Ciências Sociais (1986) cita que já foram encontradas 94 definições, embora não haja um consenso entre os cientistas sociais além da referência de que as pessoas vivem em comunidade. A dificuldade em estabelecer um significado preciso para esta palavra fez com que ela fosse usada quase sempre como sinônimo de sociedade, aldeia, organização social, associação de bairro, conjunto habitacional ou clube esportivo. Todas estas significações, porém, corroboram a idéia de que, para existir, uma comunidade deve ocupar um locus, um território específico, um espaço geograficamente determinado onde as pessoas estejam ligadas pelos mesmos interesses. Acredita-se que as pessoas que vivem em comunidade possuem um senso de interdependência e integração.

Contudo, não é apenas o fato de um grupo viver num determinado território que irá caracterizá-lo como uma comunidade. Para que ela exista, seus integrantes necessitam ter um ‘sentimento’ de comunidade, algo que, segundo Bauman (2003), citando Tönnies, é um “entendimento compartilhado por todos os membros. Não um consenso” (p.15). Isso porque consenso se refere a uma escolha de opinião feita pela maioria. Para haver consenso é preciso que haja alternativas de escolha que possam ser analisadas e votadas. Já o entendimento compartilhado a que Tönnies faz referência é tácito e flui de maneira natural entre os integrantes do grupo.

Tönnies estabelece ainda algumas diferenças entre comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft). Para ele, a comunidade seria o local de coletividade, onde existe a cooperação entre as pessoas e as ações são desenvolvidas de forma espontânea, com base nas emoções. A sociedade seria o local de desenvolvimento da personalidade individual, onde há uma competição que levaria ao desenvolvimento de comportamentos distintos por meio de atitudes calculadas e racionalizadas.

Bauman (2003), baseado nas idéias de Tönnies, diz que “comunidade significa entendimento compartilhado do tipo ‘natural’ e tácito’, ela não pode sobreviver ao momento em que o entendimento se torna autoconsciente, estridente, vociferante” (p. 17). Por isso, o autor nos mostra as dificuldades enfrentadas com o surgimento das comunicações entre as pessoas da comunidade e o mundo exterior. Desde então,

suas condições começam a desabar: quando o equilíbrio entre a comunicação “de dentro” e “de fora”, antes inclinado para o interior, começa a mudar, embaçando a distinção entre “nós” e “eles”.(...) Exatamente essa fissura nos muros de proteção da comunidade se torna trivial com o aparecimento dos meios mecânicos de transporte; portadores de informação (p. 18).

Dentro desta perspectiva, a partir do momento em que a comunidade passa a ter troca de informações com o mundo exterior, as fronteiras são quebradas e a comunidade

passa a ser uma sociedade como a conhecemos atualmente. Talvez o desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação tenha modificado as relações da comunidade, mas será que isso significa que ela tenha desaparecido ou que hoje exista apenas na ficção, como escreveu James Hilton no livro Horizonte Perdido70? Antigas tradições nem sempre desaparecem com o surgimento de outras, mas elas podem se juntar criando espaços híbridos. Os monjes do Tibete, que hoje convivem também com novas fontes de informação e com acesso à internet, seriam ainda considerados uma comunidade?

Percebe-se, desta forma, que a escolha por uma definição específica de comunidade não dará conta de abarcar os diversos grupos que estão se formando e que se denominam também como comunidade. Nesta perspectiva, Hobsbawn (1995) alerta-nos que “jamais a palavra ‘comunidade’ foi usada mais indiscriminada e vaziamente do que nas décadas em que as comunidades no sentido sociológico se tornaram difíceis de encontrar na vida real – a ‘comunidade de informação’, a ‘comunidade de relações públicas’, a ‘comunidade gay’” (p. 416). Os grupos étnicos criam, na verdade, identidades, mas não comunidades. Eles são “grupos de identidade” (Idem, p. 417) constituídos por pessoas que possuem as mesmas características existenciais. Bauman (2001) comenta que Jock Young conseguiu resumir o pensamento de Hobsbawn em relação à identidade da seguinte forma: “Exatamente quando a comunidade entra em colapso, inventa-se a identidade” (p. 196).

Entretanto, identidade não é um retorno à comunidade, pois identidade é individual, singular e, por isso, diferente para cada pessoa ou grupo. Num grupo de identidade as escolhas são feitas por votação, em que cada alternativa é analisada e discutida longamente entre os integrantes para que haja um consenso. A cada nova proposta, novas argumentações são levantadas e novas escolhas são feitas. Numa comunidade, o entendimento é único, não necessitando assim de escolhas entre alternativas.

A reconstituição de uma comunidade de entendimento comum na contemporaneidade demandaria a formação de fronteiras que pudessem manter o estranho (as informações de fora) afastado da comunidade. Isso, porém, se lhe daria segurança, tiraria sua liberdade. Por isso, Bauman (2003) percebe ser impossível a formação de comunidades no mundo que hoje habitamos.

70

Trata-se de um romance, cuja primeira edição foi publicada em 1933. Esta obra descreve uma comunidade de monjes tibetanos que vivem no mosteiro Shangri-La, onde a paz, a harmonia, o auto- conhecimento e a felicidade estão presentes diariamente.

É possível que a formação de comunidades localizadas em territórios geograficamente demarcados, conforme entendido por Bauman, seja mesmo difícil de acontecer no mundo contemporâneo, porém o desenvolvimento da comunicação baseada nas TIC tem feito com que novos coletivos de pessoas estejam sendo formados com objetivos comuns. Esses novos coletivos virtuais não ocupam apenas um espaço determinado, mas cada ponto da rede onde haja um integrante conectado realizando atualizações. Esses novos coletivos têm sido denominados de comunidades virtuais.

Esta denominação faz referência ao fato dessas comunidades estarem presentes no ciberespaço, onde as categorias de tempo e espaço estão redimensionadas. Desta forma, o espaço torna-se independente de qualquer lugar ou região específica. Sobre uma outra perspectiva de análise, Giddens (1991) entende que as novas configurações de tempo e espaço são características da modernidade, onde

o lugar se torna fantasmagórico: isto é, os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena; a “forma visível” do local oculta as relações distanciadas que determinam a sua natureza (p. 27).

Os novos coletivos que surgem com as TIC possuem peculiaridades próprias do ciberespaço onde a virtualização e a hipertextualidade são suas características básicas. Por este motivo, será que o fato de possuírem aspectos diferenciados do conceito de comunidade aqui apresentado, estas comunidades virtuais podem ser entendidas como comunidades?