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3 A DINÂMICA DO ASTROTURFING: ACONTECIMENTO E QUADROS DE SENTIDO

3.3 Quadros de sentido e a influência do astroturfing

3.3.2 Reverberações da manifestação de um público simulado

A primeira dessas características parte da observação de que não basta ao astroturfing introduzir um novo elemento nas relações sociais no sentido de um público se manifestando, mas é necessário também que essa ideia conquiste uma circulação ampla na sociedade, ou seja, que aquela manifestação de um público simulado reverbere.

Antes de prosseguirmos, porém, é importante reforçar um aspecto decorrente da ideia de que o astroturfing é uma fabricação, ou seja, algo que visa fazer com que os sujeitos tenham uma falsa crença sobre determinada situação, no caso uma manifestação de um público simulado que seria reconhecida como uma manifestação de um público autêntico. Relembrando a reflexão de Goffman sobre o assunto, o que está acontecendo para aqueles que estão sendo enganados por uma fabricação é justamente o que está sendo fabricado. O que isso significa é que, a partir desse ponto, aquela manifestação é encarada pelos sujeitos e pela mídia como uma entre inúmeras outras manifestações públicas, se comportando como tal. Assim, para refletir sobre a capacidade daquele acontecimento de pautar a mídia, faz sentido recorrer aos estudos que versam justamente sobre a relação entre manifestações públicas, movimentos grassroots e imprensa.

Ao abordar tal temática, o norte-americano William Gamson (1985) observa que o relacionamento entre os movimentos grassroots e a imprensa remete a uma dança em que ―ambos os parceiros estão simultaneamente atraídos e cautelosos. E com uma boa razão para isso. Os parceiros nessa dança desconfortável não são, de forma alguma, iguais‖ (GAMSON, 1985, p. 618, tradução nossa96). Segundo o autor, o impacto de uma manifestação pública está relacionado, em grande medida e ainda que não reconhecidamente por todos os integrantes de movimentos grassroots, com a forma com que a mesma é retratada pela mídia – ela necessita da visibilidade ampla que pode ser conferida pela imprensa para exercer influência na opinião pública, assim como de uma abordagem positiva por parte da mesma.

Por outro lado, Gamson argumenta que a imprensa encara os movimentos e as manifestações públicas como pautas que, por vezes, se mostram interessantes, na medida em que elas podem prover histórias com dramas, conflitos e ação. Porém, tais manifestações são apenas uma fonte de notícias entre diversas outras, e podem perder seus encantos rapidamente quando caem na repetição, na falta de novidades e no lugar comum. A desigualdade entre os dois atores surge justamente do fato de que a imprensa não necessita dos movimentos e das manifestações públicas na mesma medida em que estes dependem dela.

Foi a partir de uma observação semelhante que a autora Charlotte Ryan escreveu sua obra Prime Time Activism (1991), lidando com a forma com que os movimentos grassroots e a mídia se relacionam. A proposta da autora parte do reconhecimento das desigualdades que marcam tal relação e da importância crucial da mídia para o sucesso dos movimentos sociais para, em seguida, pensar estratégias e ações que poderiam ser adotadas pelos grassroots na

96 ―…in which both partners are simultaneously attracted and wary. And with good reason. The partners in this

tentativa de obter visibilidade midiática e uma cobertura positiva na imprensa para suas atividades e manifestações.

Assim, o elemento central do pensamento de Ryan reside na possibilidade dos grassroots superarem as barreiras e os constrangimentos que eles enfrentam no que tange à conquista da visibilidade midiática. Para tanto, a autora argumenta pela necessidade de compreensão sobre como a mídia opera, desvelando suas lógicas e modos de produção, focando, especialmente, nos aspectos relacionados com as manifestações públicas. Um dos tópicos abordados por Ryan nesse sentido está relacionado justamente com uma reflexão sobre o que constitui uma notícia, com a autora remetendo a alguns critérios de noticiabilidade que acredita serem pertinentes para lidar com manifestações públicas e movimentos grassroots, reunidos na obra em três grandes categorias: reconhecimento público, importância e apelo ―interessante‖.

No que tange ao reconhecimento público, a autora argumenta que as manifestações que tratam sobre problemas já reconhecidos, bem como aquelas que conseguem demonstrar o seu caráter público, possuem maiores chances de pautarem a mídia. A partir de tal observação, Ryan lista algumas das formas que implicam a característica pública de uma questão, como a presença de pessoas reconhecidas e famosas na manifestação, a existência de um grande número pessoas se manifestando e a tentativa de transformar a questão em algo ―quente‖, algo importante em determinado momento e que todos estão comentando sobre.

A segunda categoria identificada pela autora versa sobre a importância da questão que está sendo tratada, relacionando-a principalmente com o impacto que aquela manifestação pode ter (quanto maior o impacto, maior a chance de cobertura) e com a existência ou não de um conflito sobre o tema com instituições fortes, principalmente o governo. Já a terceira categoria pensa sobre o que existe de interessante naquela manifestação ou movimento, identificando uma série de questões que aumentariam o apelo da mesma para a mídia, como a presença de personagens atraentes com quem as audiências podem se identificar, a formação de narrativas de conflitos, a existência de apelos emocionais ou dramáticos e a oportunidade para fotos interessantes. Além dessas questões, a ressonância cultural daquelas manifestações também constitui, para Ryan, um elemento importante, sendo que manifestações que incorporam temas culturalmente amplos e consolidados despertam maior interesse da mídia. Por fim, o grau de inovação que aquela manifestação traz também é algo a ser considerado e que aumenta o seu apelo perante a mídia – se ela é diferente, não usual, lúdica, inédita.

Tais critérios que operam para os movimentos grassroots fazem sentido também para o astroturfing. Quando aquela manifestação de um público simulado é encarada como

uma ação de um público autêntico, ela deve trazer apelos e características que possam chamar a atenção da imprensa para que seja capaz de pautar a mesma. O astroturfing, como uma construção estratégica voltada para influenciar a opinião pública, é pensado desde o princípio com apelos que visam facilitar a obtenção de tal visibilidade, sendo o reconhecimento da dinâmica da mídia algo que está nos princípios básicos da atuação de propagandistas como Bernays – não é coincidência que, ao observamos um caso como o das ―tochas da liberdade‖, encontramos diversos dos critérios formulados por Ryan, já que o episódio trazia um público se apresentando de formas novas e inusitadas, gerando oportunidades para fotos, tentando demonstrar a importância social da questão e abordando temas culturalmente ressonantes a partir de personagens interessantes.

Mas, como Boorstin e Bernays nos lembram, não basta que tal prática obtenha visibilidade midiática, ela deve, ao mesmo tempo, ser capaz de pautar as conversações cotidianas, modo pelo qual ela cai definitivamente no sistema de circulação social. Evidentemente, a presença na mídia tem uma grande importância também nesse ponto, especialmente devido à capacidade que ela possui de inserir assuntos e situações nas conversações ordinárias (GAMSON, 1992). Todavia, ter visibilidade na mídia não é por si o fator chave: aquele acontecimento deve ter também um poder em certa medida ―inflamável‖, trazer elementos atraentes que o façam entrar na corrente das conversações, se tornar um assunto amplamente comentado em determinado momento. As observações de Boorstin caminham nesse sentido, com o autor destacando a importância do pseudo-acontecimento trazer elementos que o tornem mais ―socializável‖, mais dramático, mais interessante, e que incentivem conversações sobre ele, que despertem curiosidades. Muitos desses elementos apontados pelo historiador americano coincidem com os critérios elencados por Ryan sobre os apelos que tornam uma manifestação interessante para a própria mídia, o que faz sentido ao se considerar a existência de uma dinâmica reflexiva entre a mídia e as conversações: a mídia não apenas pauta essas conversações, mas também é influenciada pelas mesmas.

As manifestações públicas, nesse sentido, são tópicos tradicionais de conversações, seja por interferirem na vida cotidiana dos sujeitos, seja pela identificação criada quando essas demonstram o posicionamento/ação de pessoas ―como nós‖, que se unem visando atuar sobre um problema – e não é difícil, inclusive, encontrarmos casos em que uma identificação tão forte ocorre e faz com que a própria ausência de cobertura midiática sobre uma determinada manifestação pública se torne um tema central de conversações e de novas manifestações. Nesse aspecto sobre a identificação, podemos observar como as ―pretensões de solidariedade‖ trabalhadas por Mayhew são fatores que, além de aumentarem a credibilidade e o potencial de

influência de práticas de astroturfing, podem aproximá-las também dos ciclos de conversações ordinárias. Faz sentido refletir, assim, sobre como tais manifestações de públicos simulados trazem apelos que tentam invocar identidades e interesses comuns, demonstrando como ela é formada de pessoas ―como nós‖ e gerando identificação.

A amplitude de circulação que aquela manifestação de um público simulado conquista está relacionada também com a sua capacidade de reforçar opiniões, uma das lógicas de influência da propaganda que Ellul observa e que abordamos anteriormente. Retornando aos apontamentos de Allport (1937) sobre a questão, esse reforço está diretamente relacionado com o fato dos sujeitos escutarem a opinião de outras pessoas, existindo uma necessidade de que essa seja manifestada de alguma forma. Ao introduzir um novo elemento no quadro de sentido social na forma de uma manifestação pública, o astroturfing cria a impressão de que certa opinião está sendo defendida por uma multiplicidade de sujeitos, sendo tal ilusão reforçada na medida em que aquela ideia reverbera socialmente. Claro que, para que o reforço de opinião realmente ocorra, a prática deve recorrer novamente aos quadros de sentidos já estabelecidos através dos quais os indivíduos ordenam a realidade e suas próprias opiniões, partindo de posições já compartilhadas pelos sujeitos.