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Quando se fala em revisão textual é frequentemente apenas considerada a relação entre autor e revisor. No entanto, dada a grande parcela de traduções no mercado editorial português – e o facto de a grande maioria dos autores traduzidos desconhecerem a língua portuguesa, ou ser o agente que o representa o elemento envolvido nas negociações – esta relação acaba por também se desenvolver entre o revisor e o tradutor. Salientamos, aqui, a diferença entre uma revisão mais interventiva – abarcando construção de personagens, intervenção no desenvolvimento de enredo, e afins –, a que na Relógio d’Água se refere como edição, e uma revisão mais focada em pontuação, gramática, ortográfica, ou escolhas vocabulares. Tratando-se da revisão de uma tradução, ou seja, de uma obra que já se encontra editada e disponível no seu mercado de origem, a revisão a efectuar será a segunda referida.

Independentemente da qualidade e capacidade do tradutor, é inevitável que surjam na transposição de um idioma para outro situações às quais é necessário dar resposta, e nas quais é necessária a intervenção do revisor. Referimo-nos a mais do que a correcção de gralhas, como ficará em evidência:

• Registo oral no texto de origem

Ao procurar registar por escrito as pronúncias, desorganização, e desvios sociolinguísticos característicos do registo oral, e ainda mais de um grupo em particular, é frequente que o autor propositadamente escreva com o que se consideram erros ortográficos ou gramaticais. Dada a sua intenção, não se justifica uma interferência do revisor. Cabe, contudo, ao tradutor encontrar o que seria o melhor reflexo possível desse registo no idioma de chegada, uma função que não se pode considerar fácil, por se tratar

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de uma situação em que claramente a linguagem se encontra emaranhada numa cultura específica. Como reproduzir em português o inglês característico do interior de África, por exemplo?

Por sua vez, é necessário que o revisor tenha consciência deste contexto ao rever uma obra que contenha estes elementos. Torna-se imprescindível que tenha acesso ao texto original, bem como conhecimento das intenções do autor, não correndo o risco de começar a indicar que se corrija conforme a norma o que não se pretende normalizado. Simultaneamente, recai sobre os ombros do revisor verificar se o objectivo do texto original foi mantido durante a tradução, comparando ambos os textos, contextualizando com a cultura linguística do idioma de chegada, e sugerindo outras opções, caso necessário, num diálogo constante com o profissional de tradução.

A Figura 4, excerto da obra Leopardo Negro, Lobo Vermelho, de Marlon James, publicado em 2019 pela Relógio d’Água, exemplifica esta situação, sendo o excerto superior o texto de origem e o inferior o da tradução. É de salientar não ter tido a estagiária directa intervenção nesta faceta da revisão textual, tendo mantido um papel de observação.

Figura 4

• Consistência vocabular

Verificou-se, durante a revisão de uma das obras trabalhadas durante o estágio, terem sido as palavras “cock” e “balls” – ambas de recorrência amiúde na obra em questão – traduzidas com um determinado vocábulo durante cerca de metade do

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manuscrito, e com outro durante o restante. Ou seja, para uma só palavra no idioma de origem utilizaram-se duas no idioma de chegada. O facto de a divergência ocorrer sensivelmente a meio do manuscrito exclui a hipótese de ter sido com a intenção de evitar repetição e, por conseguinte, fugir a uma possível cacofonia durante a leitura. Também a contextualização do uso exclui a possibilidade de se tratarem de vocábulos que, utilizados no mesmo contexto no idioma original, sejam díspares no idioma de chegado, justificando uma adaptação linguística. Por conseguinte, ao rever a tradução surgiu a necessidade de apontar alterações vocabulares que restituíssem a coerência do idioma de origem, optando-se pelo vocábulo – único e consistente ao longo da totalidade da obra – que melhor se adequasse à narrativa. Uma vez mais ressalva-se a importância do conhecimento tanto da obra original quanto do idioma de chegada, ambos factores a considerar pelo revisor na escolha do vocábulo a utilizar, de modo a que a sua intervenção seja o mais precisa possível.

Ainda dentro do mesmo exemplo, podemos adiantar que a palavra “guizos” se tratou de uma das opções para a tradução de “balls”: uma escolha inadequada não apenas por a maior parte da população portuguesa não relacionar a palavra em questão com o significado pretendido, como também por provocar uma reacção cómica onde o contexto não o pretende. Trata-se, por conseguinte, de um exemplo dos elementos a serem tidos em conta pelo revisor aquando a necessidade de interferência na tradução com vista à consistência vocabular.

• Pontuação em diálogos

Actualmente a norma portuguesa admite como demarcação do discurso directo tanto a utilização de travessão (⸺) quanto de aspas ao alto (“ ”). Conforme se pode inferir nas normas enviadas pela editora aos tradutores com os quais trabalha (página 12 do presente relatório), a Relógio d’Água atribui preferência à sinalética constante no texto de origem, utilizando travessão ou aspas ao alto conforme o original. Em simultâneo, é de ressalvar que as aspas ao alto substituem, em caso de diálogo, a aspa única (‘ ’) utilizada no mercado anglófono, facto que salientamos por ser a literatura anglófona a que, no momento actual, domina o mercado de tradução no meio editorial português. As regras de pontuação no uso de aspas ao alto na literatura anglófona não são, todavia, as mesmas, registando diferenças quando se trata de literatura do Reino Unido (UK) ou de literatura dos Estados Unidos da América (US). Deste modo, o que

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no inglês britânico seria, por exemplo, ‘A waiting room, more or less’, she answered., no inglês norte-americano registar-se-ia como “A waiting room, more or less,” she

answered., verificando-se divergências tanto no tipo de aspas utilizado, quanto na

localização da pontuação: dentro ou fora de aspas.

Uma vez que a literatura portuguesa começou por utilizar apenas o travessão, tendo sido a inserção das aspas mais tardia – derivada na influência anglófona –, e que, como verificamos, existem duas fontes de influência com regras distintas, torna-se necessário especificar qual dos dois registos – UK ou US – deverão ser tidos em conta na adaptação ao português. De outro modo, gerar-se-á na literatura uma incongruência linguística potencialmente confusa para os usuários da língua.

Devido à influência da literatura norte-americana consumida pela estagiária, existia a crença prévia ao estágio de em discurso directo a pontuação correcta ser a utilizada nesse registo, ou seja, inserindo-se a pontuação dentro de aspas. A orientação da responsável de revisão na Relógio d’Água, todavia, permitiu rectificar o que se tratava de um erro. Deste modo, a norma seguida pela Relógio d’Água segue o sistema britânico: aspas ao alto (“ ”) e pontuação no exterior, como exemplificado na Figura 5, excerto da tradução de Leopardo Negro, Lobo Vermelho, de Marlon James:

Figura 5

• Revisão de uma peça teatral

Até ao momento temo-nos referido à revisão de textos em prosa. No entanto, um dos trabalhos de revisão desenvolvidos pela estagiária consistiu na peça O Rei João, de Shakespeare, dentro de um projecto de colecção editorial, em parceria com o CETAPS (Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies), pólo da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Não podemos deixar de incluir neste relatório algumas das situações notadas ou surgidas aquando a revisão elaborada, essencialmente pelo formato textual menos comum, o qual naturalmente acarreta elementos próprios. A

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revisão em análise necessitou de atenção tanto em detalhes que poderiam ser negligenciados por leitores mais desatentos – como o reajuste de parênteses rectos ao formato redondo, ao invés do itálico (conforme exemplificado no Anexo 3), ou a uniformização entre nomes próprios, quer se mantivessem conforme o original, quer se traduzissem para o português (como é o caso com figuras históricas) –, como em situações mais evidentes. Destacamos, dentro destas últimas, a necessidade de confirmação de consistência entre a tradução feita no texto em si e a apresentada em possíveis citações em outras secções da obra: conforme verificável nos Anexos 4 e 5, o tradutor cita na introdução à peça um trecho que, na obra em si, apresenta uma diferente escolha vocabular. Seja por lapso ou intenção de reajuste posterior, não pode o revisor permitir que a incongruência chegue ao público.

Outro factor de interesse a apontar prende-se com uma aparente inconsistência: a da contagem dos versos. Conforme se verifica no Anexo 6, caso o leitor acompanhe a numeração dos versos, poderá considerar ter sido esta o resultado de uma falha: não o é. Trata-se de manter a contagem dos versos originais, ao invés de a adaptar às mudanças que o processo de passagem de um idioma para outro naturalmente acarreta. Simultaneamente, é outro detalhe a ser tido em conta pelo revisor: nem sempre a contagem se encontra, de facto, correcta, necessitando da intervenção da revisão, como exemplificado no Anexo 7.

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