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5. FASE 1: ANÁLISE DO CONTEXTO SOCIOHISTÓRICO

5.2 Uma breve história do Caribe: um povo dividido pela veia, pelo escravismo e colonialismo.

5.2.2 A Revolução do Hait

Quem olha hoje para o Haiti, miserável, degradado, dificilmente poderá pensar que o país foi o cenário da ''única revolta de escravos bem-sucedida da História''. No momento da Revolução Francesa, em 1789, a colônia francesa das Índias Ocidentais de Santo Domingo representava dois terços do comércio exterior da Franca e era o maior mercado individual para o tráfico negreiro europeu. Era a maior colônia do mundo, o orgulho da França e a inveja de todas as outras nações imperialistas. Sua estrutura era sustentada pelo trabalho de meio milhão de escravos. (SADER, 2003)

O ambiente de mudanças do século XVIII, iniciado pela Revolução Francesa possibilitou a inspiração de diversos movimentos que lutavam pelo fim da exploração colonial nas Américas. As propostas de igualdade e liberdade do ideário iluminista ecoaram como uma esperança de transformação do ambiente colonial responsável por subordinar milhares de

sujeitos que, por sua condição étnica e religiosa, eram utilizados como mão-de-obra sistematicamente explorada nas plantações e minas do continente americano.

Considerada um dos acontecimentos mais decisivos e marcantes da história mundial, sem conhecer a Revolução Haitiana, não é possível entender quase nada sobre a História das Américas no século XIX. Aliás, não é possível entender nem mesmo a Revolução Francesa e as fraturas internas do projeto liberal-iluminista. Tudo o que se tentou e (mais importante) se deixou de tentar politicamente nas Américas foi em função da Revolução Haitiana. Em cada discussão, em cada conversa, em cada debate no Plenário, depois de muito hesitar, alguém sempre mencionava o grande bicho-papão: "Mas... e o Haiti?" A simples existência da revolução haitiana mudou tudo no curso da história política e econômica das Américas. Durante as guerras de independência latino-americanas, e durante os posteriores debates abolicionistas, o Haiti era a grande sombra que rondava as cabeças dos plantadores de açúcar europeus e a luta se apresentava como uma possibilidade transformadora da realidade existente.

Essa possibilidade transformadora aconteceu na região do Caribe, onde uma população de escravos conseguiu tomar o controle das instituições locais. Na região de São Domingos, tradicional espaço de colonização francesa, desenvolviam-se diversas monoculturas, principalmente de açúcar, que garantiam expressivas rendas à Coroa Francesa. Para o acúmulo dessas riquezas, os colonizadores franceses utilizaram uma grande população de escravos africanos.

A revolução mais espetacular de escravos que se conhece foi, então, a que se deu no Haiti na década de 1790. Mais de meio milhão de escravos e outros que se opunham à escravidão participaram desse movimento. A marronagem, termo francês usado para os escravos fugidos, levou à formação de várias comunidades de escravos escondidas nas montanhas. No entanto, as revoltas ocasionais desses grupos tornam-se menores se comparadas à violência sem precedentes que assolou a ilha por ocasião da revolta dos escravos em 1791.

Outro ingrediente explosivo acrescentado na década anterior a 1790 foi a venda de dezenas de milhares de prisioneiros de guerras civis no Congo para os plantadores em São Domingo. Muitos deles eram soldados combatentes que preferiam enfrentar a morte a sofrer as humilhações do escravismo. Ressentidos, orgulhosos e facilmente mobilizados por seus antigos oficiais, esses escravos derrotariam com facilidade os soldados europeus enviados para subjugá-los durante as décadas de 1790 e 1800. Esse processo ocorreu em muitos lugares do mundo, mas somente em São Domingo os escravos foram totalmente vitoriosos.

A revolta dos escravos ocorreu numa época de conflito entre os colonos franceses e a assembléia francesa em Paris. Dois anos antes, a Revolução Francesa eclodiu, induzindo a luta entre os plantadores da elite e os mulatos livres emergentes, muitos dos quais eram gerentes ou até mesmo proprietários de plantação de açúcar. Os mulatos livres exigiam a igualdade com os brancos, que não estavam dispostos a dividir lucros, poder e status. Com o passar do tempo e a luta intensificada, os líderes e os escravos aumentaram suas exigências sobre os plantadores. Depois de dois anos de uma luta intermitente entre os dois grupos, os escravos perceberam que eles poderiam tirar vantagem dessa desunião para ganhar a liberdade.

O primeiro líder dos escravos foi Boukman, um escravo originário da Jamaica, exaltado por iniciar e organizar o levante que conduziu à revolução. No entanto, o grupo de Boukman foi atacado e ele morreu durante o confronto. Toussaint L’Overture, que já havia se juntado ao grupo, emerge como a grande liderança desse movimento. Toussaint era um escravo forro, com uma enorme capacidade de liderança e vasto conhecimento das teorias humanistas de Mirabeau e Comdorcet que brigavam pelo término do escravismo e do tráfico de escravos. C.L. R. James36, autor de um dos principais estudos sobre a revolução haitiana, diz que ''entre 1789 e 1815, com a única exceção do próprio Bonaparte, nenhuma outra figura isoladamente foi, no cenário da História, tão bem-dotada quanto esse negro, que havia sido escravo até os 45 anos de idade''. Mas, como diz James, ''não foi Toussaint que fez a revolução, foi a revolução que fez Toussaint''.

Mesmo com o assassinato de Toussaint L'Ouverture pelos franceses - que haviam substituído os decadentes espanhóis como colonizadores da ilha - a revolução triunfou e fez realidade, contra a França, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. A abolição da escravidão, não contemplada pelos revolucionários de 1789, foi conquistada pelos ''jacobinos negros'' do Haiti.

Sua derrota e o massacre posteriores deram lugar ao quadro de miséria e abandono em que voltou a viver o Haiti e que persiste até hoje - é considerado o país mais pobre das Américas. Tivessem triunfado plenamente os ideais de Toussaint L'Ouverture, outro seria o destino do Haiti. Mas, mesmo assim, sua façanha histórica confirma a capacidade dos negros de afirmar sua cidadania e ser dono dos seus próprios destinos.

36 A biografia de C.L.R. James encontra-se nos anexos deste trabalho.

“Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a Revolução de São Domingo” São Paulo: Boitempo Editorial, 2000