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O movimento que depôs o presidente João Goulart é nomeado pelo enunciador de “a revolução”. Como é possível notar, o tema está bastante presente nos textos, em primeiro lugar, pela tentativa de explicação do seu significado: “A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse da Nação” (COSTA E SILVA; CORREIA DE MELLO; GRÜNEWALD, 1964, p. 93). Em segundo lugar, pela definição de sua extensão de poder: “[...] a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte” (COSTA E SILVA; CORREIA DE MELLO; GRÜNEWALD, 1964, p. 93).

O uso do termo “revolução”, no entanto, foi esvaziado semanticamente. Fiorin (1988, p. 60) mostrou que o uso lexical dos discursos militares do mesmo período analisado neste trabalho indicava uma contrarrevolução: “[…] nada há, pois, no vocabulário do poder que indique uma “revolução”. Pelo contrário, seu léxico mostra que a “revolução” não passou de uma “contra-revolução” [sic], pois o movimento de março visou à manutenção de uma ordem implantada, que segundo a visão dos dominantes estava prestes a ser rompida” .

Prossegue o autor:

Ao usurpar o poder, os contra-revolucionários [sic] apossaram-se de um termo usado pelos seus inimigos. O movimento designa-se com o termo “revolução”. Para Roland Barthes, a “linguagem”, é uma “fala roubada e restituída”. No entanto, “a fala que se restitui não é exatamente aquela que foi roubada: trazida de volta não foi colocada no mesmo lugar. É esse breve roubo, esse momento furtivo de falsificação, que constitui o aspecto enregelado da fala mítica". O que se fez com o lexema “revolução” foi esvaziá-lo semanticamente, empregando-o para nomear uma contra- revolução [sic]. Assim começa a ser construída a retórica do poder” (FIORIN, 1988, p. 61).

Ocorre, porém, que o uso reiterado do termo “revolução” empregado no lugar de contrarrevolução podia persuadir os enunciatários de que os meios utilizados para a derrubada do governo anterior, embora não previstos em lei, eram legítimos. Especialmente porque a

revolução não segue normas, ao contrário, é movimento que “[…] pressupõe a criação de uma nova sociedade e a direção política de uma classe revolucionária” (MARX, 1976, p. 164-6 apud FIORIN, 1988, p. 61). Desse modo é que a tomada do poder ilegalmente, no discurso, torna-se “revolução” e não golpe.

Fernandes (1984, p. 7) reconhece também a confusão no emprego da palavra revolução “[…] quando se fala de ‘revolução institucional’, com referência ao golpe de Estado de 1964. É patente que aí se pretendia acobertar o que ocorreu de fato, o uso da violência militar para impedir a continuidade da revolução democrática (a palavra correta seria contra-revolução […])”. Prossegue o autor, esclarecendo que, no Brasil, houve uma tutela terminológica burguesa:

O marco de 1964 (completado pelo apogeu a que chegou o golpe em 1968 – 1969) ilustra muito bem a natureza da batalha que as classes trabalhadoras precisam travar no Brasil. Elas precisavam libertar-se da tutela terminológica da burguesia (isto é, das relações de dominação que se definem, na área da cultura, como se fossem parte do ar que respiramos ou “simples palavras”). Ora, em uma sociedade de classes da periferia do mundo capitalista e de nossa época não existem “simples palavras”. A revolução constitui uma realidade histórica; a contra-revolução [sic] é sempre o seu contrário (não apenas a revolução pelo avesso: é aquilo que impede ou adultera a revolução). Se a massa dos trabalhadores quiser desempenhar tarefas práticas específicas e criadoras, ela tem de se apossar primeiro de certas palavras-chave (que não podem ser compartilhadas com outras classes, que não estão empenhadas ou que não podem realizar aquelas tarefas sem se destruírem ou sem se prejudicarem irremediavelmente). Em seguida, deve calibrá-las cuidadosamente, porque o sentido daquelas palavras terá de confundir-se, inexoravelmente, com o sentido das ações coletivas envolvidas pelas mencionadas tarefas históricas (FERNANDES, 1984, p. 9-10).

A suposta revolução das Forças Armadas, conforme os discursos analisados, procura devolver ao povo os valores tidos como formadores da nação: tranquilidade para recuperação

econômica, financeira, política e moral, no padrão burguês. Ou seja, ao querer retornar ao

modelo de governo anterior ao de João Goulart, pretendia, de fato, promover um retrocesso para que, com isso, os ideais capitalistas da burguesia fossem mantidos. Para tanto, combatia “comunistas” e “bolchevistas”, alegando que devolveria ao País a democracia.

No entanto, com a confusão terminológica sobre a significação do movimento (revolucionário no discurso examinado, e contrarrevolucionário no discurso da ação), ficava mais difícil para a nação compreender o que estava acontecendo naquele período. Nesse sentido, esclarece Fernandes (1984, p. 8-9):

É que o uso das palavras traduz relações de poder e relações de dominação. Se um golpe de Estado é descrito como “revolução”, isso não acontece por acaso. Em primeiro lugar, há uma intenção: a de simular que a revolução democrática não teria sido interrompida. Portanto, os agentes do golpe de Estado estariam servindo à Nação como um todo (e não privando a Nação de uma ordem política com fins estritamente egoísticos e antinacionais). Em segundo lugar, há uma intimidação: uma revolução dita suas leis, os seus limites e o que ela extingue e não tolera (em suma, o golpe de Estado criou uma ordem ilegítima que se inculcava redentora; mas, na realidade, o “império da lei” abolia o direito e implantava a “força das baionetas”: não há mais aparências de anarquia, porque a própria sociedade deixava de secretar suas energias democráticas). No conjunto, o golpe de estado extraía sua vitalidade e sua autojustificação de argumentos que nada tinham a ver com o “consentimento” ou com “as necessidades” da Nação como um todo. Ele se voltava contra ela porque uma parte da Nação precisava anular e submeter a outra à sua vontade e discrição pela força bruta (ainda que mediada por certas instituições). Nessa conjuntura, confundir os espíritos quanto ao significado de determinadas palavras-chave vinha a ser fundamental. É por aí que começa a inversão das relações normais da dominação. Fica mais difícil para o dominado entender o que está acontecendo e mais fácil defender os abusos e as violações cometidas pelos donos do poder. (1984, p. 8-9).

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