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3.4 TEMAS EM OPOSIÇÃO

3.4.1 Salvar a Democracia vs Perder a Democracia

Na oposição estabelecida nos discursos sobre democracia (perder vs. salvar), há contida uma linha de pensamento que impõe ao governo João Goulart o querer práticas não desejadas pelo povo para a adoção de um “sistema comunista”, contrário aos anseios democráticos do País. Com isso, na construção discursiva, democracia e capitalismo se confundem e, por consequência, nela também se mesclam ditadura e comunismo.

No discurso, está implícita a ideia de que há “[...] um confronto ideológico que se trava no mundo entre democracia e comunismo” (FIORIN, 1988, p. 110). Em 1960, o mundo estava realmente dividido em duas filosofias: a representada pela União Soviética, de modelo econômico comunista, e a representada pelos Estados Unidos, de modelo capitalista (ideologicamente democrático). Portanto, compreendiam-se dois blocos: o comunista e o capitalista, construídos, nos discursos analisados, como comunismo vs. democracia.

Segundo Fiorin (1988, p. 110):

Três considerações iniciais devem ser feitas em torno da oposição que subjaz a todo o discurso “revolucionário”: democracia vs. comunismo:

a) Essa oposição é uma falácia semântica,ou seja, é uma oposição impossível de ser feita sem violentar o conteúdo dos lexemas, pois, como nos ensina Greimas, para que dois termos possam ser apreendidos conjuntamente, isto é, para estabelecer uma oposição, é preciso que eles tenham algo em comum e algo diferente. A oposição /democracia/ vs. / capitalismo/ não pode ser estabelecida porque, embora esses lexemas apresentem diferenças, não revelam nenhuma semelhança que possa servir de base a essa oposição, uma vez que “comunismo” corresponde à infra-estrutura econômica, enquanto democracia está relacionada ao nível jurídico-político da superestrutura. O antônimo de comunismo é capitalismo; o de democracia é ditadura.

b) Assimilar o capitalismo à democracia é abrir caminho para negar que a miséria, o desemprego, etc. sejam frutos desse sistema econômico e, além disso, é pregar a manutenção do status quo em nome de um ideal abstrato de liberdade que só serve a um homem abstratamente considerado.

c) A ideia de que a contradição fundamental do mundo contemporâneo não é entre “capital” e trabalho, mas entre comunismo e democracia, tem a função de, mascarando a luta de classes, enfraquecer as contradições internas do capitalismo, unindo a todos em torno da pátria ameaçada.

Com essas considerações sobre as distorções semânticas produzidas no discurso militar, é preciso trazer algumas noções básicas sobre democracia para entender se, de fato, o que as Forças Armadas pretendiam era mesmo afastar o comunismo e defender o regime democrático que, segundo esses discursos, corria perigo. No dizer de Afonso da Silva (2016, p. 127-8), democracia “[…] é conceito histórico. Não sendo por si um valor-fim, mas meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem […]”. Para o autor, democracia é um "[…] processo de afirmação do povo”.

Não se verifica no governo militar, no período analisado, essa afirmação do povo, que, como mostrado, foi perdendo direitos e garantias ao longo das publicações dos Atos Institucionais. Assim, o processo instaurado não seguia em direção à democracia, apesar de estar modalizado nos discursos o querer transformar o País em sujeito de estado democrático. Portanto, mantinha-se o reconhecimento do valor-meio atribuído à democracia como processo para obter valores fundamentais do povo apenas na linguagem.

No governo militar, o que se viu foi a adoção de pressupostos elitistas para a construção de um processo supostamente democrático. Reconheceu Afonso da Silva (2016, p. 128-9):

Apesar disso, nota Bacharach que ‘no pensamento político contemporâneo, há uma forte tendência (talvez predominante) a incorporar à teoria democrática os princípios fundamentais da teoria elitista’ que ele denomina ‘elitismo democrático’, que é fora de dúvida uma expressão contraditória. É a doutrina do Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, para quem a ‘democracia que é possível na realidade consiste no governo por uma minoria democrática, ou seja, por uma elite formada conforme a tendência democrática, renovada de acordo com o princípio democrático, imbuída do espírito democrático, voltada para o interesse popular: o bem comum’. Esta foi também a doutrina da segurança nacional que fundamentou o constitucionalismo do regime militar que a atual Constituição suplantou. Segundo ela, compete às elites a tarefa de promover o bem comum, ‘mediante um processo de interação com a massa. Auscultando o povo, as elites nacionais identificam seus anseios e aspirações. Possuindo um maior conhecimento da realidade histórico-cultural e dos dados conjunturais, elas têm uma visão mais elaborada dos autênticos interesses nacionais. Cabe- lhes, assim, interpretar os anseios e aspirações, difusos no meio ambiente, harmonizando-os com os verdadeiros interesses da Nação e com o Bem

Comum, apresentando-os, de volta, ao povo que, desse modo sensibilizado, poderá entender e adotar os padrões que lhe são propostos’.

[…]

Coerente com sua essência antidemocrática, o elitismo assenta-se em sua inerente desconfiança do povo, que reputa intrinsicamente incompetente.

O valor democrático inserido nos discursos é, portanto, o desse contraditório que se estabelece como elitismo democrático, em que anseios do povo são identificados pela classe dominante, ou seja, é, na verdade, um valor antidemocrático. O querer do povo é definido pela elite que interpreta e impõe o saber sobre o que é melhor para a nação.

Convém ressaltar que democracia, conforme Afonso da Silva (2016, p. 128), citando a concepção de Lincoln, "[…] governo do povo, pelo povo e para o povo, […], é um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo”. Não foi, portanto, o que se observou na prática de governo, apesar de a democracia ter sido inserida no discurso do governo militar como valor a ser alcançado/restaurado, já que teria sido desconsiderada pelo governo João Goulart.

Assim, a identificação das Forças Armadas com o poder apontava para um sistema político ditatorial, em que o centro do poder é o próprio governo. Democracia, no discurso, não corresponde ao sentido de regime político, mas significa a manutenção de um sistema econômico capitalista. Quando se diz, no discurso, que a democracia é o objetivo a ser alcançado, é preciso compreender esse sentido contraditório dado ao termo de democracia elitista e, mais do que isso, o interesse principal na manutenção do sistema econômico capitalista.

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