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A partir de discussões como as publicadas em um número da revista Estudos

Históricos dedicado exclusivamente a tratar da relação entre antropologia e arquivos1, percebe-se a divisão do problema em pelo menos duas dimensões fundamentais, que são também duas maneiras possíveis de se ler o título do volume - “Quando o campo é o arquivo”. A primeira destas dimensões situa-se num horizonte sobretudo epistemológico e pode ser sintetizada, creio, na indagação sobre qual o estatuto dos arquivos como fontes de dados para o trabalho antropológico ou, ainda, quais as implicações de se tomar fontes arquivísticas como discursos nativos. Este ponto assume um relevo especial e potencialmente controverso dado o caráter fundante do trabalho de campo malinowskiano para a disciplina2 e aponta diretamente para o tema das relações entre antropologia e história. A segunda dimensão tem um caráter mais imediatamente político – sem desconsiderar sua face epistemológica, da mesma forma que não se pode esquecer o lado político da primeira dimensão – e fica mais explícita com uma pequena inversão nos termos da sentença, que então ficaria assim: “quando o arquivo é um campo”. Tendo-se em mente o caráter concorrencial do campo, no sentido de Bourdieu3, descortina-se aí o tema da apropriação e da agência dos próprios “nativos” sobre os arquivos e tudo o mais que os “antropólogos” têm feito com os seus ditos4. Nenhuma das duas dimensões é um tema novo

1

Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 36, julho-dezembro de 2005.

2

Cf. Castro e Cunha (2005).

3

Cf. Ortiz (1983).

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na antropologia. A segunda parece ter se tornado mais sensível com a chamada crise “pós- moderna”, especialmente nos anos 1980, e desembocou tanto em contribuições críticas fundamentais quanto em posturas paralizantes e, no limite, negadoras da possibilidade mesma de qualquer antropologia, eventualmente tributárias da dificuldade de ultrapassar uma concepção reificada da distinção entre “nativo” e “antropólogo”, o discurso do segundo sendo então dissolvido diante da irrupção crítica, concorrencial, do primeiro. Desenvolvimentos teóricos mais produtivos têm focalizado a possibilidade mesma da construção do conhecimento antropológico como função da irredutibilidade entre pontos de vista distintos, “nativo” e “antropólogo” sendo tomados como termos de uma relação que os constitui5. Não será o caso aqui de desenvolver este ponto, mas apenas de retomar, partindo dele, o primeiro horizonte delineado mais acima – “quando o campo é o arquivo”. Parece-me que o caráter potencialmente controverso desta questão – relacionado ao aparente absurdo do que seria uma antropologia “sem nativos” ou, como se coloca mais freqüentemente “sem campo” – surge, em grande parte, como um falso problema, na medida em que se possa efetivamente compreender a antropologia sobretudo como uma postura epistemológica, mais do que sua naturalização como o encontro com o exótico “em carne e osso”. Se é inegável a centralidade do trabalho de campo “clássico” na constituição da antropologia, sendo fundamental o tipo de postura que se construiu através dele na história da disciplina, reduzir esta àquele é um estreitamento de horizontes injustificável6. Se com isto insisto num ponto que já tem sido bastante repisado, é apenas porque me

5

Cf. Viveiros de Castro (2002).

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Tenho aqui em mente sobretudo a distinção feita por Lévi-Strauss (2008 [1949]: 14) entre etnografia e etnologia. A primeira indica justamente o trabalho de campo como atividade de observação e análise; a segunda, designando precisamente o que se chama de antropologia na academia brasileira, aponta para o horizonte de reflexão mais amplo da disciplina, constituído pela elaboração teórica num quadro comparativo. Adiante me deterei por um momento no tema da relação entre antropologia e história a partir de Lévi-Strauss, mas o ponto é, desde já, que o passado não precisa estar excluído do quadro comparativo.

parece ainda valer a pena remarcar que a colocação “Mas o pesquisador ‘x’ não fez campo” pode ser perfeitamente pertinente como denúncia de uma eventual inadequação entre objetivos e métodos, mas dificilmente pode ter consistência enquanto critério de negação

tout court da “validade antropológica” de uma pesquisa. Se os nativos que habitam as

“aldeias-arquivos” são informantes dos quais se pode dizer que “bons ou maus (...) são completamente avessos às nossas súplicas, e nem nossos ‘belos olhos’, nem nossas ‘miçangas’ têm o poder de seduzi-los”, se “rebeldes, eles não se prestam a fazer nada além do que já fizeram, e da maneira como lhes foi possível fazer”7, resta a possibilidade de tentar fazer-lhes as perguntas certas.

Então, tendo sido o campo deste trabalho baseado em viagens a Trobriands8 de papel, é necessária alguma consideração sobre a natureza de sua topografia, antes de voltar ao tema da relação entre antropologia e história.

Uma página de jornal não é um campo inerte que serviria simplesmente como suporte de um conteúdo a ser comunicado. Neste sentido, Braga (2002: 327), inspirando-se em reflexões de Maurice Mouillaud, destaca que, numa perspectiva topográfica, desenha-se na superfície do jornal um campo de forças, dado que “as regiões da página não são apenas justapostas, mas podem ser apreendidas por relações polêmicas”9. Nas reflexões do próprio Mouillaud sobre este tema, tomam relevo dois pontos principais. Por um lado, a disposição gráfica do jornal – o que ele chama seu “dispositivo” (Mouillaud, 2002)10 – não é

7

Carrara apud Becker (2008: 18).

8

A referência aqui são as ilhas Trobriand, palco do trabalho de campo a partir do qual Malinowski (1964 [1922]) escreveu seu clássico Argonautas do Pacífico Ocidental.

9

Mouillaud apud Braga (op. cit.), grifo no original.

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Na verdade, a noção de dispositivo usada por Mouillaud parece ser mais ampla. O dispositivo da língua escrita, por exemplo, inclui o fato de ela poder ser realizada através de um teclado ou pela mão deslizando sobre o papel. “Descrevemos os dispositivos como sendo matrizes (muito mais do que suportes) em que se vinham inscrever os textos. Neste sentido, o dispositivo (livro, jornal, canção, disco, filme, etc...) existe antes do texto, ele o precede, comanda sua duração (a duração de uma canção ou de um filme é um a priori de sua

indiferente ao seu conteúdo – o sentido – e vice-versa. O modo jornalístico de enquadramento dos fatos, com seu dispositivo impresso, tem uma importância fundamental no processo mesmo de construção da realidade social, destacadamente nas primeiras décadas do século XX11. Neste sentido, afirma Mouillaud:

“O jornal pertence à rede de informações que começou a tecer-se em torno de nosso globo no século passado e que o envolve em um fluxo imaterial que está em perpétua modificação (Le trafic des nouvelles, segundo Palmer e Boy-Barret). Uma rede que não impõe ao mundo apenas uma interpretação hegemônica dos acontecimentos, mas a própria forma do acontecimento” (Mouillaud, 2002: 32).

Para este autor, a “colocação em fatos” é uma forma de hegemonia mais invisível e mais radical do que a própria interpretação dos fatos. Há, na produção da informação, um caráter imperativo: neste sentido, o que é visto não é apenas o que pode, mas o que deve sê- lo. Por outro lado, e de forma relacionada a este primeiro ponto, no mesmo movimento de criação da notícia existe a criação de uma região de sombra, definida por um “não poder ver ou saber”, ou um “dever não ver ou saber”, de modo que “parece-nos que toda e qualquer informação engendra o desconhecido, no mesmo movimento pelo qual informa” (Mouillaud, 2002a: 39).

Com estas referências em mente, penso que se poderia considerar a existência de uma homologia entre o modo de enquadramento dos textos e anúncios sobre os Oito produção) e a extensão (um romance se inscreve entre um número mínimo e máximo de páginas que,

evidentemente, variaram ao longo da história)” (Mouillaud, op. cit.: 33). A direção oposta também é verdadeira, como nota o autor: “Em outro sentido, o texto precede o dispositivo”. Enfim, sintetizando: “Se o texto e o dispositivo são, por sua vez, o gerador um do outro, sua relação é uma relação dinâmica” (: 34). Mouillaud não cita, nos textos consultados, o filósofo francês, mas o sentido que dá à noção de dispositivo parece-me compatível com aquela que o termo assume na obra de Foucault, onde se refere “al conjunto de todas aquellas instancias extra-discursivas que emergen a partir de um cierto régimen de concomitancia y proximidad con el discurso que las condiciona y de las cuales depende su funcionamento” (Albano, 2007: 83). Sobre o significado da noção de dispositivo em Foucault, conforme também Deleuze (1990) (tradução de Wanderson Flor do Nascimento, consultada em http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/art14.html

(02/10/2009).

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Batutas nos jornais e o modo de inserção do próprio grupo no dispositivo das cidades. Assim, se jamais saberemos pelos jornais, por exemplo, em que lugares os músicos se hospedaram, quanto ganharam e o que faziam numa cidade como Buenos Aires enquanto não estavam tocando – estas e outras perguntas que se possam acrescentar definem uma “região de sombra” dada pela natureza das fontes – podemos – como o fizemos nos capítulos precedentes – ter uma idéia da importância relativa que assumiram nos diferentes contextos artísticos (na parte destes contextos que figura nos dispositivos jornalísticos, é claro), conhecer algumas das categorias em termos das quais foram “interpretados” naqueles diferentes contextos (o que, muitas vezes, nos deu mais notícia de certas representações sobre coisas como o Brasil do que exatamente dos Batutas), saber que trabalharam em locais de peso diferente no “mapa moral” (mencione-se o contraste entre o teatro Empire, na região central, e o Cosmopolita, na região do porto)12 de Buenos Aires e conhecer algumas de suas estratégias de atuação artística. Assim – para arriscar uma imagem que talvez não seja de todo infeliz –, como se o jornal fosse uma partitura da cidade – precária, como toda partitura –, da qual podemos nos servir na ausência de uma “gravação original”, nunca saberemos, por exemplo, como era o timbre, mas podemos ter uma idéia das melodias e das vozes que ali se cruzavam. A importância do mundo do espetáculo em Buenos Aires tem um correlato nas duas páginas inteiras que o tema ocupava em alguns dos periódicos mais importantes. Neste espaço, os Oito Batutas nem passaram desapercebidos e nem causaram um furor extraordinário. Ocuparam, sem extrapolá-lo, o lugar de uma atração de variedades que comprovadamente agradou boa parte do público, tendo gerado também reações negativas aqui e ali, como acontecia com centenas de outras

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atrações de vários lugares do mundo naquele mesmo espaço13. O relevo que tomaram no espaço jornalístico do sul do Brasil em 192714 foi consideravelmente maior, o que se compreende diante do fato de serem estes cenários artísticos e urbanos muito menores e menos abastecidos de “novidades”. De novo com relação à Argentina, vale lembrar o fato, discutido no Capítulo 1, de que os Oito Batutas em momento algum ocuparam uma primeira página, como o fez Josué de Barros em Chivilcoy, sendo neste sentido que não extrapolaram o lugar que lhes cabia como uma atração de variedades. Como temos visto, em várias referências aos Oito Batutas se fez menção aos termos jazz ou jazz-band, enquadrando-os num horizonte de sentido que, apesar de sempre associado à música, freqüentemente extrapolava as seções “exclusivamente” musicais para ingressar – como metáfora? – em considerações mais gerais sobre temas como a política ou as condições da vida contemporânea, freqüentemente com um caráter humorístico. Eram freqüentes as charges envolvendo o jazz15. Por certo, isso acontece, naquele momento, em boa parte do “mundo ocidental” – o jazz é um dos assuntos do dia16.