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1.3 Histórico da eqüidade na arbitragem

1.3.2 roma

Em Roma, a eqüidade teve um papel importante na própria criação do direito. O ius

honorarium foi elaborado com base em decisões eqüitativas dos pretores, no momento em que

91 rOeBuck, Derek. Ancient Greek arbitration, cit., p. 178.

92 daLLOz, M.D. Repertoire... cit., p. 367. A opinião aqui mencionada é atribuída a Samuel Petit. 93 rOeBuck, Derek. Ancient Greek arbitration, cit., p. 358.

a legislação antiga (especialmente a legis actiones) não mais correspondia às necessidades da vida quotidiana.

Conforme Sohm, o ius civile era o direito que se aplicava aos cidadãos,94 ao passo que o ius gentium era comum a todos os homens, existente entre todos os povos em razão da natureza das coisas e graças ao sentimento do eqüitativo que todos têm (jus gentium, quod apud

omnes gentes peraeque custoditur).95 Segundo aquele autor, três forças contribuíram para essa formação de um direito eqüitativo: o edito do pretor, a ciência jurídica e a legislação imperial.

os pretores possuíam autoridade jurisdicional acompanhada de uma faculdade de re- solver conflitos, de modo soberano e discricionário (imperium). Ao contrário do juiz atual, um funcionário estatal, o pretor era um soberano, um magistrado supremo no que dizia respeito à aplicação da justiça.96

Os éditos dos pretores eram disposições tornadas públicas para fazerem conhecer os preceitos e normas a que pretendiam ater-se no exercício de sua magistratura (especialmente fórmulas para ações). Os éditos seriam renovados a cada pretor, anualmente. Entretanto, com o tempo e a sofisticação dos éditos, boa parte passou a ser repetida pelo pretor posterior, apenas com algumas modificações ou acréscimos.

tendo em vista os poderes praticamente ilimitados do pretor, os éditos tornaram-se formas de elaboração do direito. Não obstante o pretor não pudesse editar leis, podia dar e recusar ações.97 Tendo em vista a lógica do direito romano, de tipicidade das ações, retirar ou conceder uma ação tinha efeito próximo de conceder ou retirar um direito. Portanto, houve uma evolução do direito romano, com criação de novos direitos e figuras jurídicas, com base eqüita- tiva, a partir da obra dos pretores.

Assim, a atuação em eqüidade das jurisdições estatais não apenas ocorria, como foi também um motor do desenvolvimento do direito positivo. Em roma, pode-se dizer que a eqüi- dade era considerada parte do direito.

94 Neste caso, o termo civile refere-se aos cidadãos e não ao conceito atual de direito civil.

95 sOhM, Rudolf. Historia e instituciones del derecho privado romano. Madrid: La España Moderna, 1898(?). p. 102.

96 Idem, ibidem, p. 107. 97 Idem, p. 112.

Segundo Bonfante,98 os termos romanos para a contraposição entre direito positivo e justiça são ius e aequitas ou bonum et aequum. A aequitas romana não seria exatamente o equivalente atual de eqüidade, que teria um sentido mais estrito. As definições de Cícero (quae

paribus in causis paria iura desiderat, que adapta pari iuri os superiores e os inferiores) seriam

definições da própria justiça. Quando dizia que o direito civil era a aequitas constituta ad res

suas obtinendas ou quando a lei era tida como fons aequitatis e fundamentum libertatis, coloca-

va a eqüidade como justiça. Também a eqüidade era usada como justiça nas legendas das moe- das imperiais (Aequitas Antonini, Aequitas Severi). Já os termos iustitia e iustus não exprimiam o que se entende hoje por justiça e justo. Exprimiam antes qualidades derivadas de ius. Assim, devem ser traduzidas como legal, jurídico, legítimo.

A possibilidade de os árbitros julgarem apenas com recurso a eqüidade, sem aplicação do direito, parece ser admita pela maioria dos autores.99 Isso tanto na decisão do bonus vir como na arbitragem ex compromisso.

no caso da arbitragem por bonus vir, como já mencionado, tratava-se de um proce- dimento inteiramente privado, sujeito inteiramente à vontade das partes que a instituíam. Não havia nenhum grau de ingerência estatal na condução da arbitragem, tampouco na execução da decisão. Como apontado por Roebuck,100 tratava-se de uma versão de mediação-arbitragem informal, encontrada em diversas outras sociedades, com a diferença de que os romanos atribu- íram-lhe nome. Dado o seu caráter de extrema informalidade, não se pode falar em obrigação de aplicação de qualquer lei.

de qualquer modo, a arbitragem do bonus vir estava ligada à idéia de boa-fé, de fides, que permeava o ideal romano de direito, relacionada com justiça e eqüidade. O bonus vir, em- bora não tivesse sua decisão sujeita à revisão por parte do pretor ou de qualquer iudex, deveria atuar em boa-fé, como um bom cidadão. Como tal, esperava-se um homem que agisse com sen- so de justiça, mas que também respeitasse, como todos os demais, as leis de Roma. Conforme autores como Horácio, esperava-se que o bonus vir observasse as leis, mas que estas estariam mais bem servidas se ele exercitasse sua discrição eqüitativa ao aplicá-las.101 Em todo caso, mesmo com uma possível penalidade por não agir de acordo com a boa-fé,102 o bonus vir estava liberado para uma decisão baseada em seu senso de justiça.

98 BOnFante, Pietro. Diritto romano. Milano: Giuffrè, 1976. p. 91 e ss.

99 Entre outros: decLareuiL, Joseph. Du Compromis... cit., p. 103, Também Dalloz (Repertoire... cit., p. 368), que menciona a existência em Roma de vários tipos de árbitros, inclusive o equivalente ao amiable compositeur

francês. punzi, Carmine. Disegno sistematico dell’arbitrato. Padova: Cedam, 2000. p. 6 e ss.

100 rOeBuck, Derek; de FuMichOn, Bruno L. Roman arbitration, cit., p. 46. 101 Idem, ibidem, p. 57.

no caso da arbitragem ex compromisso, a liberdade de procedimento era uma das mais notáveis características. Especialmente em oposição ao processo formalista então em vigor. A famosa passagem de Cícero em Pro Roscio Comoedo, embora fosse um arrazoado para um caso, deixa clara a diferença entre arbitragem e procedimento judicial:

vai-se a juízo com a expectativa de receber ou a soma toda ou nada; vai-se a arbitragem com a expectativa nem de receber nada, nem de receber tudo que se pediu [...] o que é o juízo (ou a fórmula): direto, áspero, simples. [...] O que é a arbitragem? Suave, moderada: deve-se dar o que é mais justo e moderado.103

Neste famoso texto, Cícero descreve a diferença entre uma cobrança de dívidas em sede de arbitragem e em sede de ação civil.

Nesta passagem, há uma diferenciação de direito material e processual104 entre proce- dimento “judicial” e arbitragem, bem como uma espécie de diferença de “atitude” ou postura entre eles. Na arbitragem, atenua-se o rigor da lei e busca-se alguma espécie de composição entre as posições antagônicas. Assim, parece resultar clara a possibilidade de decisão por eqüi- dade, com base nos critérios de justiça do julgador, em detrimento do direito estrito.

também é famosa passagem de Sêneca, bastante citada por autores que postulam a existência de decisão por eqüidade em sede de arbitragem:

meliorem esse conditionem causae bonae si ad judicem quam ad arbitrum mit- tatur; quia illum formula includit, et certos quos non excedat terminos ponit: at hujus libera nullis adstricta vinculis religio, et detrahere aliquid potest, et adjicere et sententiam suam non prout lex, vel justitia suadet, sed prout huma- nitas, aut misericórdia impellit et regit (Sêneca, de benef., III).105

103 “Pecunia tibi debebatur certa, quae nunc petitur per iudicem, in qua legitimae partis sponsio facta est. Hic tu si amplius HS. nummo petisti, quam tibi debitum est, causam perdidisti, propterea quod aliud est iudicium, aliud est arbitrium. Iudicium est pecuniae certae, arbitrium incertae; ad iudicium hoc modo venimus, ut totam litem aut obtineamus aut amittamus; ad arbitrium hoc animo adimus, ut neque nihil neque tantum, quantum postulavimus, consequamur. Ei rei ipsa verba formulae testimonio sunt. Quid est in iudicio? Derectum, aspe- rum, simplex: SI PARET HS. ICCC DARI --. Hic nisi planum facit HS. ICCC ad libellam sibi deberi, causam perdit. Quid est in arbitrio? Mite, moderatum: QUANTUM AEQUIUS ET MELIUS SIT DARI.” Disponí- vel em: <http://www.uah.edu/student_life/organizations/SAL/texts/latin/classical/cicero/procomoedo1.html> (sítio de internet da Universidade do Alabama). Acesso em: 17 mar. 2008. Tradução livre inglesa de Derek Roebuck e outro (Roman arbitration, cit., p. 161).

104 Embora de um modo geral essa diferenciação não seja tão nítida no direito romano como nos dias atuais. Ainda que a obra de Oskar von Bülow, o pioneiro da postulação da autonomia da relação processual, seja inspirada no processo bifásico romano, a distinção marcada da relação processual tal como hoje se conhece é obra do pensamento jurídico dos séculos XIX e XX.

Além disso, a possibilidade de pessoas não habituadas ao uso do direito poderem fun- cionar como árbitros, sem o limite da fórmula, mas apenas do compromisso das partes, demons- tra uma maior flexibilidade no tocante ao direito estrito. Tal fato aliado, à impossibilidade de recurso, serve como índice de uma maior liberdade.

De qualquer modo, parece haver poucas dúvidas sobre a possibilidade de decisão sem recurso ao direito estrito na arbitragem em roma. ou seja, arbitragem em que se observava a consciência de justo dos árbitros, tanto na arbitragem por bonus vir quanto na arbitragem ex

compromisso. no que diz respeito ao iudex, este também gozava de ampla liberdade de julga-

mento. Todavia, conceituá-lo como um árbitro ainda não é questão pacífica. Ao menos, não como árbitro privado.

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