• Nenhum resultado encontrado

rural estivera afastado de um poder público central. Por sua vez, nestas sociedades mediterrânicas a urbanidade se constituíra como um espaço importante nas relações sociais de produção onde os reis mantiveram seu caráter ordenador da sociedade. Nesta percepção organicista, baseada nas leituras dos antigos, todas as “ordens” – nobres que servem a Deus, bispos e cidadãos que combatem – devem agir em conjunto com o monarca na composição de um bom governo300.

A divisão social presente no Llibre dels Feyts fora composta por uma série de sobreposições advindas de tempos e espaços distintos traduzidos aos anseios e percepções de Jaime I. O esquema tripartido se somara a uma percepção mais múltipla da realidade aragonesa e catalã ao mesmo tempo que delegara um papel superior aos monarcas. Talvez a escolha pelas três partidas se aproximasse por uma convenção literária cristã balizada nesta divisão que, contudo, não fora capaz de presentificar as relações sociais daqueles espaços.

A Igreja, os pobres e as cidades da terra e, por fim, os cavaleiros. O rei deveria proteger todos eles, porém, caso não pudesse cumprir esta missão delegada por Deus, que escolhesse os dois primeiros. Os cavaleiros, afinal, eram a gente mais soberba e poderiam corromper todo o ordenamento social. Nesta breve ponderação, o monarca não procurava findar a guerra em serviço de Deus e a expansão de seu reino – sua hoste poderia ser convocada entre os pobres, os bispos e os cidadãos. O pesar de Jaime I não se encontrava em uma função guerreira, a considerar que ele próprio valorizava a ação bélica, mas sim em sua nobreza que em variados momentos se colocara contra seus projetos políticos. Todos os membros deveriam seguir os desígnios do monarca. Sobre este ponto tomemos como exemplo a seguinte passagem de sua narrativa:

E que por nada desse mundo, nem em batalha, nem em outro lugar, saíssem das fileiras sem o nosso consentimento, e, acima de tudo, que se precavessem de não haver discórdias entre si nem com os outros; a discórdia é a pior coisa que há e que pode haver em uma hoste de rei ou de senhor, porque a aventura coloca toda a hoste entre morrer ou se perder, e depois vêm os inimigos e podem

saquear toda a hoste, isto é, àqueles que ainda estejam vivos301.

Apesar de dirigido às operações militares do reino, o conselho do Conquistador se estendera ao mundo das relações políticas. A discórdia poderia corromper a hoste, mas também todo o reino. Quando na década de 1220 os nobres de Aragão e Catalunha confrontaram o monarca, estes lançaram o reino à aventura, o que poderia levar ao seu fim. Fora a ação do rei enquanto restauradora que impusera a ordem no reino. A ação régia se contrapusera a discórdia.

Conforme Sabaté, os condes-reis de Aragão e Catalunha buscaram no decorrer dos séculos XII e XIII ampliar a gestão de seus rendimentos e do exercício jurisdicional, bem como convocaram um discurso que elevara sua função. Para o autor, os reis ao buscarem galgar o topo da pirâmide social, retomaram os argumentos romanistas, principalmente a partir de Bolonha, de um direito natural no qual coubera ao príncipe guiar a sociedade302.

A ideia de natureza no medievo, suportada em textos da Antiguidade readaptados aos contextos da época, surgira como uma figuração do macrocosmo, o universo. A natureza, neste sentido, fora percebida através de uma relação analógica entre ela, o corpo e a sociedade, na qual o macrocosmo compreendera o microcosmo – o corpo – e o microcosmo compreendera o macrocosmo. A sociedade, como uma extensão desta relação entre o micro e o macro, mostrara-se através de uma metáfora corporal na qual cada membro – a cabeça, os braços, as pernas – formara a fisionomia do reino. Absorvida ao mundo laico dos príncipes e reis, a natureza assumira na Cristandade Latina entre os séculos XIII e XIV a corporalidade de uma ordem perfeita e harmônica que hierarquizara o universo303.

O vocábulo natura em médio catalão abarcara, em seus múltiplos significados, os sentidos de um lugar de nascimento, da pertença a uma linhagem, da essência de um ser, de uma relação e da

301 “E que per re del món negú, ni en batalla ni en altre lloc, no desrengàs menys de nostre manament. E sobretot que es guardassen que no haguessen baralla entre si ni ab altres, car baralla es la pejor cosa que sia en pot ésser en host de rei en de senyor; car a aventura met hom tota la host de morir o de perdre, e puis vénen los enemics e poden barrejar tota la host, aquells qui romases hi serien vivus”. JAUME I DE ARAGÃO., op. cit., cap. CDXV, p. 389; JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. CDXV, p. 429.

302 SABATÉ, op. cit., p. 60. 303 SILVEIRA, op. cit., p. 152-157.

criação divina304. No Llibre dels Feyts o conceito de natureza assumira ao menos três faces: um local de nascimento; a ideia de ordem; as bases de uma relação senhorial. Sigamos estes caminhos.

Quando expulsara os sarracenos de Valência, o conde-rei lembrara que os retiraria de sua natura – os afastaria do lugar ao qual pertenciam e no qual forjaram suas relações de senhorio e parentesco305. Em outro momento, Jaime I afirmara que um dos motivos que levaram a morte de seu pai fora que os membros da hoste agiram contra a natureza das armas, isto é, cada um agira de acordo com sua vontade306. O caráter natural da ação guerreira que se opusera a discórdia figurara uma percepção ordenadora – os feitos bélicos possuíram uma natureza, um caminho certo de como aqueles combates deveriam seguir. A nature d’armes era uma emanação da condição divina da ação guerreira. Em um discurso diante de seus vassalos, o monarca proclamara que:

– Barões, cremos que sabeis e deveis saber que nós somos de longo tempo vosso senhor natural; que conosco Aragão teve quatorze reis, e quanto mais distante é a natureza entre nós e vós, mais aproximação deve existir, pois ao se estender o parentesco, por essa extensão a natureza se estreita. Nunca lhes fizemos mal, nem falamos mal, pelo contrário, temos em nosso coração a intenção de amá-los e honrá-los, e lhes faremos ter todos os bons costumes que temos tidos de nossa linhagem, e lhes daremos ainda melhores, se não tiveres aqueles que são bons307.

De acordo com Vianna, a naturalidade do senhorio e a sacralidade divina de Jaime I serviram a própria legitimidade do

304 ALCOVER, A. M.; MOLL, F.B., op. cit.

305 JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. CCCLXVIII, p. 355; JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. CCCLXVIII, p. 394.

306 Ibid., cap. IX, p. 35; Ibid., cap. IX, p. 60.

307 ”– Barons, bé creem que sabets e devets saber que nós som vostre senyor natural, e de llonc temps; que catorze reis ab nós ha hauts en Aragó, e on pus lluny és la naturalea entre nós e vós, més acostament hi deu haver, que parentesc s’allonga, e naturalea per llonguea s’estreny. E anc no us fem mal ni el vos dixem, ans vos havem en cor d’amar e d’honrar, e totes bones costumes que hajats haudes de nostre llinatge, que les vos farem tenir e nós qui us darem de millors, si no n’havets d’aquelles que fossen bones”. Ibid., cap. XXXI, p. 68; Ibid., cap. XXXI, p. 101-102.

monarca308. A relação natural estabelecida entre o senhor e seus vassalos se alongava para além dos próprios indivíduos, ao se estender através de uma percepção genealógica que vinculara os pactos firmados entre seus antepassados ao tempo presente. A natureza era a ordenação divina das coisas – uma essência que corrompida se colocava contra os desígnios de Deus. A natura, para além desta concepção hierárquica e ordenadora, significara uma relação entre o rei natural e os seus naturais.

Para Gabrielle Spiegel, a produção historiográfica de Suger tivera como corolário entre os séculos XII e XIII uma concepção hierárquica pseudo-dionisiana pautada em uma ordenação do menor ao maior, da criação ao criador e de uma exemplaridade do mundo celeste ao terrestre. De modo que a estrutura triádica da ação tivera como função restaurar esta ordem divina309. No Llibre dels Feyts a ação régia, sacralizada e outorgada por Deus, ganhara as faces de uma restauração da ordem natural, função retomada do direito de Bolonha.

Na medicina medieval o corpo humano fora entendido como um microcosmo, uma reverberação da natureza harmônica entre os quatro elementos componentes do universo. A doença, nesta perspectiva, fora um desequilíbrio destes elementos, os humores corporais. Ao médico coubera através da própria natureza restaurar a ordem anterior310. Em uma relação analógica, o rei tivera como função restaurar o equilíbrio dos humores sociais. Assim, Jaime I aconselhara seu genro e rei de Castela Afonso X a manter as três partidas da sociedade em harmonia, e, caso fosse necessário, ele deveria proteger a Igreja, os pobres e as cidades da terra, pois os cavaleiros seriam os primeiros a quebrar a ordem natural, o senhorio do monarca sobre eles.

Contudo, o Llibre dels Feyts, composto sobre esta estrutura triádica da ação, possuíra uma diferença crucial aos textos analisados por Spiegel. Enquanto Suger narrara os feitos dos reis franceses e os interpretara sob esta concepção hierárquica e restauradora, fora o próprio monarca Jaime I de Aragão autor de seus feitos e de suas memórias.