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289 JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. XXV, p. 56-59; JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. XXV, p. 90-92.

290 ”així com si hom los hagués ferits endret del cor ”. Ibid., cap. CCLXXXI, p. 296- 297; Ibid., cap. CCLXXXI, p. 338.

291 ”car en el món no ha tan sobrer poble con són los cavallers ”. Ibid., cap. CCXXXVII, p. 268; Ibid., cap. CCXXXVII, p. 309.

por deturpar uma hierarquia social na qual o monarca se projetava como um ordenador designado por Deus. Conforme Utrilla Utrilla, quando o Conquistador em 1239 dotara a antiga taifa de Valência de um estatuto próprio, isto é, não incorporara seus territórios a Aragão, mas os transformara em um reino apartado, ele frustrara seus nobres que desejavam aquelas rendas. Com o passar dos anos, o declínio das operações bélicas aragonesas e o desmonte de um sistema político- militar pautado na outorga de terras e no pagamento das caballerías de honor, os conflitos entre nobreza e realeza se acentuaram. De tal modo que, na Assembleia de Zaragoza em 1264, os ricos-homens aragoneses solicitaram ao conde-rei que este não nomeasse mais nobres e que as honores passassem a compor um benefício hereditário292.

Jaime I, como vimos, buscara tecer uma imagem do rei acima de todos os estamentos da Coroa. Ao narrar os anos finais de seu reinado, ele legara uma das passagens mais emblemáticas do Llibre dels Feyts, seus conselhos ao rei Afonso X de Castela. Divididos em sete conselhos concedidos em sete dias durante as festividades do Natal, o patriarca dos monarcas ibérico-cristãos afirmara que:

O terceiro conselho foi que conservasse toda a sua gente, pois a gente está sob o rei que Deus lhe confiou se este sabe conservar sua gratidão e satisfação. O quarto conselho foi que, se tivesse que conservar alguém e não pudesse manter a todos, mantivesse dois grupos: a Igreja, e os pobres e as cidades da terra, pois esses são gentes que Deus ama mais que os cavaleiros, já que os cavaleiros se erguem contra sua senhoria mais rapidamente que todos os outros. Caso todos pudessem ser conservados, bom seria; caso contrário, que mantivesse aqueles dois, porque com aqueles os outros poderiam ser destruídos.293

292 UTRILLA UTRILLA, p. 209-210.

293 “La tercer consell fo que retingués tota sa gent, car gent estava a tot rei que la gent que Déus li ha comanada sàpia retener a grat e a plaer d’ells. Lo quart consell fo que si a retener n’havia negú, que en retingués dues partides, si tots no els podia retener, ço és, l’Església e els pobres e les ciutats de la terra, car aquells són gent que Déus ama més que no fa los cavallers, car los cavallers se lleven pus tost contra senyoria que els altres; e, si tots los podia retenerm que bon seria, e, si no, que aquests dos retingués, car ab aquests destruiria los altres”. JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. CDXCVIII, p. 440; JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. CDXCVIII, p. 483.

Nas palavras do historiador Jacques Le Goff, o emprego de um determinado vocabulário compreendera uma maneira de pensar o mundo, mas também de instrumentalizá-lo à ação294. Jaime I, ao aconselhar o rei castelhano, dividira as gentes da Coroa em três partidas: 1) a Església; 2) os pobres e as ciutats de la terra; 3) os cavallers. Acima de todas elas, em um papel outorgado por Deus, estivera o rei que deveria proteger toda a sua gente. A divisão realizada pelo conde-rei de Aragão e Catalunha se remetera a uma série de outras categorizações sociais presentes na Cristandade Latina medieval e elaboradas no decorrer daqueles séculos. Assim, conforme as observações de Le Goff acerca da produção franciscana do século XIII, sobrepuseram-se esquematizações múltiplas, hierarquizadas, bipartidas e tripartidas da sociedade cristã295.

De acordo com Rucquoi, a esquematização trifuncional não encontrara eco na Península Ibérica medieval. Nela os guerreiros que combateram os muçulmanos em suas fronteiras ao sul, poderiam ter acesso direto a Deus através de uma noção sacralizadora da guerra, ponto ao qual retornaremos adiante. O clero, igualmente, não fora capaz de assumir um papel preponderante nos reinos ibérico-cristãos assim como fora nos territórios nortenhos. Mesmo com a incursão das ondas monásticas, a sociedade de três ordens não tivera um grande efeito na imaginação hispânica296.

No entanto, a sociedade imaginada por Jaime em suas memórias se referira a um esquema tripartido que se estendera para além do século XIII e dos territórios de Aragão e Catalunha. Oratores, bellatores e laboratores. Uma sociedade dividida em três funções. Entre fins do século X e princípios do século XI, sob as mãos de autores do mundo franco, esta esquematização tripartida imaginara um mundo no qual cada grupo cumpriria uma função – o orar, o combater e o trabalhar – de acordo com a hierarquia divina. Um século depois, João de Salisbury (1115/20-1180) e outros intelectuais do mundo cristão, contrapuseram-se aos membros das gerações anteriores, como Adalbéron de Laon e Gerardo de Cambrai, ao disporem o monarca acima destas três ordens como um ordenador da sociedade297.

294 LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 125. 295 Ibid., p. 146-148.

296 RUCQUOI, op. cit., p. 245. 297 DUBY, op. cit., p. 301-302.

Uma das novidades que o monarca impusera a este esquema tripartido foram os habitantes das cidades da terra. Ao contrário dos clérigos francos dos séculos X e XI, a sociedade encontrada por Jaime I tivera como um de seus alicerces as elites urbanas que se desenvolveram ao redor de centros como Barcelona, Valência e Maiorca. Os laboratores não eram mais somente aqueles trabalhadores do campo: como uma única ordem se bifurcavam em duas categorias, os pobres e os cidadãos.

A tripartição presente no Llibre dels Feyts não se caracterizava por suas funções, mas por suas partidas. Se Adalberón de Laon imputara aos bellatores a função de combater, na narrativa dos feitos de Jaime I os cavallers não compunham uma partida monopolizadora do ofício militar. Bispos, exércitos municipais, almogávares constituíram junto aos nobres as hostes de Aragão e Catalunha que serviram o monarca em suas empresas. De modo similar, a Igreja não se constituíra como uma partida voltada exclusivamente à relação com o divino. Então, como fora formulada esta divisão?

Podemos aqui retomar em partes a hipótese de Rucquoi, que apontara para estas sociedades ibéricas medievais uma esquematização bipartida da sociedade entre aqueles que guerreiam e aqueles que não. O próprio exercício militar contra os muçulmanos garantira aos cristãos combatentes seu serviço divino298. Os cavallers dos quais Jaime falara não foram os combatentes – afinal estes poderiam ser recrutados nos mais variados segmentos sociais. Os cavaleiros eram a nobreza, a mesma nobreza que no decorrer de seu reinado confrontara os projetos políticos do Conquistador. As funções em si não caracterizavam a divisão social, o que no instiga a ponderar: por que a tripartição?

Na conjunção destes esquemas se somara outro: aquele que garantira a primazia do rei enquanto ordenador de todas as gentes. Nas Siete Partidas, obra legislativa composta por Afonso X de Castela, o rei surgira como a cabeça, a alma e o coração do reino. A concepção organicista da sociedade no texto afonsino outorgara ao rei um espaço central e centralizador do corpo social composto pelo povo, pelos ricos- homens, pelos bispos e por todos aqueles que viviam no reino299.

Conforme Rucquoi, a divisão trifuncional tal como fora pensada por autores como Adalberón de Laon, Haymon d’Auxerre e Gerardo de Cambrai fora elaborada em uma sociedade na qual o mundo