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273 RUCQUOI, op. cit., p. 218. 274 IVILLACAÑAS, op. cit., p. 321-323. 275 Ibid., p. 323-324

enquanto os primeiros a partir do século XII, balizados no direito romano, buscaram a centralização do poder, os ricos-homens almejavam a manutenção de seus costumes e privilégios. No caso aragonês os foros de Huesca, promulgados em 1247, afirmaram que o rei seria o legislador do reino, portanto, coubera a ele e aos seus oficiais o exercício da justiça. No entanto, estas transformações na legislação aragonesa foram combatidas pela alta nobreza, quando em 1264, parte dos ricos-homens se insurgira contra o conde-rei para que estes fossem julgados segundo os antigos costumes276. No ano seguinte, em 1265 nas Cortes de Ejea, estes exigiram que o juiz de Aragão, aquele que legislaria sobre as relações intra-nobiliárquicas e régio-nobiliárquicas, fosse um rico- homem277.

Ser nobre em Aragão era uma questão de sangue, de nascimento. Porém, o monarca poderia elevar seus homens de feitos ao grau nobiliárquico. Segundo o historiador Juan Utrilla Utrilla, em princípios do século XIII, durante o reinado de Pedro II, os nobres aragoneses transformaram as honores e tenencias outorgadas pelo conde-rei em senhorios feudais. Processo este que se agravara com o endividamento da Coroa e que gerara um aumento destes benefícios territoriais. Entretanto, com o enfraquecimento do sistema de honores e tenencias, os reis implementaram em Aragão as caballerías de honor que se constituíram enquanto um pagamento fixo destinado aos nobres por cavaleiro que servisse a hoste real278.

Nas palavras de Utrilla Utrilla, desdes os primeiros anos do reinado de Jaime I, percebera-se o embate entre duas concepções da Coroa – uma pautada pela nobreza, outra pela realeza279. Neste sentido, Sabaté afirmara que no decorrer do século XIII a evolução social do reino se dera através de um estamento nobiliárquico articulado por um modelo feudal de organização do espaço e do poder e, por outro lado, de uma elite urbana vinculada ao crescente e enriquecedor comércio mediterrânico280. Podemos inferir então que o Conquistador, aos lidar

276 Ibid., p. 387-389.

277 RUCQUOI, op. cit., p. 257.

278 UTRILLA UTRILLA, Juan F. La nobleza aragonesa y el estado en el siglo XIII: composición, jerarquización y comportamientos políticos. In: SARASA, Esteban (org.). La

sociedad en Aragón y Cataluña en el reinado de Jaime I (1213-1276). Zaragoza: Institución

Fernando El Católico, 2009. p. 199-218. p. 201-206. 279 Ibid., p. 207.

280 SABATÉ, Flocel. A Coroa de Aragão: identidade e especificidade política e social.

com as elites senhoriais e urbanas dos territórios de Aragão e Catalunha, procurara compor um elo entre estes três concepções – régia, nobiliárquica e citadina – de modo que beneficiasse seus projetos políticos, fator que corroborara seus enfrentamentos com a alta nobreza.

Definidas as peças, os movimentos e o tabuleiro deste jogo de poder, retomemos o nosso questionamento acerca da produção do Llibre dels Feyts: seria possível encontrarmos uma estrutura triádica interna, tal como aquela apontada por Spiegel, na narrativa dos feitos de Jaime I? Nos primeiros fólios do livro o monarca relembrara seus leitores e ouvintes o caos instaurado no reino após a morte de seu pai e das revoltas lideradas por seus nobres. E como alguém de seu estamento, isto é, um monarca, o conde-rei agira para reparar aqueles danos: ele lutara e submetera os territórios daqueles que se levantaram contra ele281.

Segundo Vianna, a oposição entre aqueles anos iniciais caóticos do governo de Jaime I, a escuridão, aos tempos áureos que se materializaram a partir da conquista da taifa de Maiorca, conformavam elementos simbólicos que fortaleceram a autoridade do rei282. Da quebra da promessa de Afonso II à reparação do casamento de Pedro II com Maria de Montpellier, da sublevação nobiliárquica à pacificação do reino, do caos e da má fama até a glória das conquistas de Maiorca e Valência, a ação régia se configurava enquanto uma ação que não apenas restaurava uma ordem anterior, mas instituíra uma ordem superior. Sigamos esta premissa no discurso interposto por Dom Guilherme de Sasala:

– Senhor, rogo que vós me escuteis. Deus quis que neste século estivessem reis e deu-lhes por ofício que eles tivesse direito àqueles que necessitassem, especialmente às viúvas e aos órfãos. E quando a condessa não tinha a quem recorrer, a não ser a nós, por duas razões ela veio diante vós: a primeira, porque a demanda que ela faz diz respeito à vossa terra; a segunda, porque vós sois a única pessoa no mundo que lhe pode dar conselho […] Agora, este é o derradeiro dia

281 JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. CLXIV, p. 209; JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. CLXIV, p. 249-250.

em que a condessa vos roga, exatamente como um senhor do qual se espera o bem e o direito, e que encontra em vós a justiça dessa maneira: que se Dom Guilherme de Cardona não vem preparado para fazer o direito, que vós façais contra Dom Guerau e contra seus bens, até que a condessa possa vir para cumprir o direito da demanda que lhe fez283.

Os reis deveriam dar o direito aos homens – uma função outorgada aos príncipes pelo próprio Senhor. Nesta passagem do Llibre dels Feyts o conde-rei deixara clara sua função legisladora. Como vimos anteriormente, nos foros de Huesca de 1247, Jaime I fora proclamado como legislador do reino. A justiça régia se instaurara nesta estrutura triádica da ação justamente por significar a atribuição do rei perante seus vassalos, a reparação de um dano materializado na restituição do direito da condessa. Importa destacar que, a presença desta estrutura triádica não fora simplesmente um ardil narrativo do Conquistador. De acordo com a historiadora Adeline Rucquoi, o poder dos reis ibéricos se fundara no campo do direito e, especificamente, do direito definido pelos juristas de Bolonha no decorrer do século XII, o ius naturalis284.

Nas memórias de Jaime, Dom Guilherme de Cardona acusara Dom Guilherme de Sasala justamente de usar esta doutrina jurídica bolonhesa contra o conde. O emprego destas formulações definira a posição do rei nas bases de um direito natural e divino – fora Deus que fizera o rei cumprir o direito no mundo terreno. Neste sentido, a estrutura triádica presente no Llibre dels Feyts, mais do que uma conformação interna da narrativa, configurava-se como uma função régia, exercida por Jaime I durante seu reinado e que, anos mais tarde,

283 “– Senyor, prec-vos que vós que em façats escoltar. Déus volc que en est segle fossen reis e donà’ls-hi per aquest ofici que tinguessen dretura a aquells que mester la haurien, e especialment a vídues e a òrfens. E, quan la comtessa no havia a qui recórrer posqués, sinó a nós, per dues raons és venguda denant vós: la una, cor aquella demanda que ella fa és en vostra terra; la segona, cor vós li podets dar consell e no neguna altra persona del món […] ara aquest és lo darrer dia: on vos prega la comtessa, així con senyor de qui espera bé e dretura, que trop dretura en vós en esta manera: que, si En Guillem de Cardona no és vengut aparellat de fer dret, que vós que enantets contra En Guerau e contra los seus béns, sí que ella comtessa pusca venir a compliment de dret de la demanda que li fa”. JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. XXXVI, p. 78; JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. XXXVI, p. 113-114.

284 RUCQUOI, Adeline. Entre la espada, el arado y la patena: las tres órdenes en la España medieval. Dimensões, Vitória, v. 33, p. 10-35, 2014. p. 19.

fora comemorada em seu monumento. A inter-relação entre a desordem, a restauração e a ordem fora estruturante da narrativa de seus feitos, mas também de seus feitos, ponto ao qual retornaremos adiante.

Para Gabrielle Spiegel, ao analisar a historiografia régia elaborada por Suger, a estrutura triádica promovera a ideia de que qualquer ato perpetrado contra o rei deveria ser vingado. O dano deveria ser restaurado. Um mal feito ao monarca significara um distúrbio na ordem natural e na hierarquia das coisas e, portanto, deveria ser reparado285. Em seus últimos dias, Jaime I enfrentara uma revolta dos sarracenos de Valência, algo que se repetira outras vezes em sua vida. Contudo, este reconhecera sua fraqueza corporal e convocara seu filho e herdeiro, o infante Dom Pedro, para aconselhá-lo a expulsar os sarracenos de Valência “porque eram todos traidores e tinham mostrado isso muitas vezes”286

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O conde-rei compreendera a proximidade da morte e sua impossibilidade física de reparar aquele dano, assim, delegara ao seu sucessor os conselhos necessários à vingança régia. A necessidade do ato de reparação estendera genealogicamente a ação – o mal causado a Jaime I seria vingado por seu filho, o futuro rei Pedro III. O “vingar-se”, neste sentido, fora uma fórmula de ação desta estrutura triádica pautada na restauração de um dano pretérito. Quando aqueles sarracenos se levantaram pela primeira vez contra o Conquistador em 1244, este declarara que:

– E agora, para a nossa afronta, nos pesa muito o fato de eles estarem em nossa terra e terem acolhido tão pouco o nosso amor e a nossa senhoria. Vós deveis tomar parte do nosso pesar, pois assim como tomaram parte de nosso bem, deveis tomar parte do nosso dano e da nossa afronta. Por isso, vos peço e vos ordeno, pela senhoria que eu tenho sobre vós, que sintais e me ajudeis a vingar-me, pois nossa intenção é fazê-los pagar caro. Isso parece obra de Nosso Senhor, que deseja que Seu sacrifício seja celebrado por todo o reino de Valência, e julga que eu deva quebrar os

285 SPIEGEL, op. cit., p. 169-170.

286 ”per ço con eren tots traidors e havien-nos-ho donat a conèixer moltes vegades”. JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. DLXIV, p. 478-479; JAUME I DE ARAGÃO, op. cit., cap. DLXIV, p. 526.

pactos que fiz com eles. Como eles me dão motivos para me vingar, pois os retive em minha terra, não os expulsei de suas casas, nem lhes fiz mal para que pudessem viver ricamente conosco e com nossa linhagem, saibais que, com a vontade de Deus, eu o farei pagar caro e duramente, ainda que tomem a minha terra e aquela em que eu os povoei! Eu tenho agora uma grande razão para povoá-la de cristãos!287

Liderados pelo sarraceno Al-Azraq que confrontara Jaime I nas três revoltas de Valência, nos anos de 1244, 1247 e 1276, estes traidores causaram um dano e uma afronta ao monarca que incitara a vingança do rei. Uma vingança que, como salientamos, fora boa e sacralizada, pois fora destinada ao Senhor. O reino de Valência, submetido pelo conquistador e povoado por sarracenos, estivera ordenado pelas vontades do conde-rei. Contudo, ao se insurgirem, Al-Azraq e os valencianos causaram um dano a uma hierarquia pretérita firmada nos acordos que permitiram a rendição da antiga taifa. Por fim, ao executar sua vingança sagrada, o rei rompera com o caos e instaurara uma ordem superior aquela estabelecida anteriormente ao povoar a terra de cristãos e expulsar os muçulmanos.

Se ao monarca coubera uma ação restauradora, quem foram estes agentes que perturbaram a harmonia do universo? A relação entre ordem e desordem fora crucial ao estabelecimento de uma estrutura triádica da ação, mas também de uma polarização entre os modelos de condutas socialmente hierarquizados. A presença das populações muçulmanas no Llibre dels Feyts, por exemplo, fora percebida através de uma positivação daqueles que aceitaram a submissão cristã e de uma

287 ”– E ara, per honta de nós, estant en la nostra terra, ells hagen presada tan poc la nostra amor e la nostra senyoria, pesa’ns molt. E del nostre pesar devets vós haver part, que així con hauríets part del nostre bé, així devets haver part del nostre dan e de la nostra honta. Per què us prec e us man, per la senyoria que jo he sobre vós, que us pes e que m’ho aidets a venjar, car nostre cor és que els ho carvenam. E sembla obra de nostre Senyor, car vol que el seu sacrifici sia pert tot lo regne de València, e guarda a mi que jo no els trenc les covinences que he ab ells; que pus ells me donen raó que vinga sobre ells, jo retenent d’ells en ma terra e no gitant-los de llurs albergs ni faent-los mal perquè no poguessen viure ricament ab nós e ab nostre llinatge, sapiats que ab la voluntat de Déu que els ho carvendrem règeu e fort. E sobre açò, encara, que em tolguen ma terra ni aquella en què jo els havia poblats! E gran raó n’he jo, de poblar-la de cristians!”. Ibid., cap. CCCLXIV, p. 351-352; Ibid., cap. CCCLXIV, p. 392.

desvalorização daqueles que confrontaram e se rebelaram contra o rei288. Os sarracenos, contudo, não foram os únicos a traí-lo.

Ao comemorar os primeiros anos de seu reinado, Jaime I relembrara que os nobres de Aragão, pelas honras que tinham por ele, deveriam servi-lo. Porém, as grandes famílias de Aragão não foram ao seu encontro, somente os ricos-homens Dom Blasco de Alagón, Dom Artal de Luna e Dom Ato de Foces. Com a infidelidade de seus vassalos, que não cumpriram sua função, o desgaste causado fizera com que as provisões da hoste real se extinguissem. Ao lhe restar poucas alternativas, o conde-rei pactuara com Abu Seid, senhor de Valência, uma trégua em troca de parte de suas rendas.

Firmado aquele pacto, ao retornar Jaime I encontrara Dom Pedro Ahonés com cerca de cinquenta cavaleiros. De acordo com as palavras do monarca, ao não servir as honras que tinha por ele e ainda almejar uma incursão na terra dos mouros, o nobre o traíra. Com o intuito de deliberar sobre aquela situação, o jovem rei reunira seus ricos- homens, a incluir Dom Pedro que viera “vestido com seu perponte, sua espada cingida e um batut de malha de ferro na cabeça”. Em contraponto ao vassalo desarmado que prestara homenagens ao senhor, Ahonés se apresentara utilizando suas armas, como se estivesse prestes a romper o contrato feudo-vassálico entre ele e Jaime. O Conquistador lembrara ao rico-homem que por sua falta, os seus comeram as provisões do acampamento e abandonaram aquele empreendimento289.

A postura de Dom Pedro, como um nobre que antagonizara os projetos de Jaime I, não fora uma exceção. Ao reunir nobres e bispos para informá-los da anexação de Valência que fora rendida ao próprio rei, os ricos-homens de Aragão não agradeceram a Deus e ouviram aqueles feitos como “se alguém os ferisse exatamente no coração” enquanto os bispos se alegravam290. Nas palavras do monarca acerca de sua nobreza: “no mundo não há gente com tanta soberba quanto os cavaleiros”291

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Aqueles nobres soberbos e, portanto, pecadores do orgulho, poderiam levar à ruína as ambições de Jaime I – suas ações acabavam