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3 NAS SENDAS DE UM NOVO FAZER CIENTÍFICO

4.2 RUPTURAS E POSSIBILIDADES

A década de 60 foi um período, em particular na história brasileira, marcada por um intenso movimento social e político. Viviam-se movimentos de resistência e oposição à ditadura militar, que foram violentamente ceifados com o golpe militar de 1964. O Estado assumiu controle de forma repressiva dos mecanismos ideológicos, privou os cidadãos de participar e reivindicar.

Brêtas (1994, p.36) relata que o Ministro da Educação do Governo Castello Branco declarou “os estudantes deveriam estudar e os professores ensinar e não fazer política”, Freitag (1988) apud Bretãs (1994, p.36) salienta: “ a política educacional, ela mesma expressão da reordenação das formas de controle social e político, usará o sistema educacional reestruturado para assegurar esse controle. A educação estará novamente a serviço dos interesses econômicos que fizeram necessário a sua reformulação.”

Foi nessa época de repressão, que as alunas da Escola de Enfermagem Coração de Maria corajosamente experimentam se rebelar contra o rígido modelo disciplinar a que eram submetidas. Apresento abaixo um episódio registrado em ata e que retrata as medidas adotadas para controlar a indisciplina.

Ata da reunião do Conselho Técnico Administrativo, 14/10/1964 .[...] A Irmã [....] a presidente da sessão expôs problemas sobre a possibilidade da extinção do internato para o curso de Graduação em Enfermagem, temporariamente, devido a grande dificuldade de manter a disciplina e pelo descontentamento por parte de algumas alunas. O Monsenhor [...] não concorda com a idéia, pois nesse caso o Estado poderia prejudicar o recebimento da verba, pelo convênio que a Faculdade tem para com o Estado. [...] A presidente Profª Irmã [....] apresentou ainda o problema que está tendo na direção da escola. As alunas da 2ª série do Curso de Graduação em Enfermagem em relação aos estágios diminuem o quanto podem o horário estabelecido para os estágios. O Sr. Prof. Dr. [...] sugeriu que cada professor exigisse de sua matéria um trabalho que obrigue a aluna permanecer em estágio o máximo de tempo para melhor observar e dar cuidados aos pacientes em setores de aprendizagem conforme a disciplina lecionada, devendo sua aprovação da matéria em questão depender da nota do referido trabalho. Outro relatório deveria ser apresentado à Enfermeira Chefe que avaliaria dependentemente de sua freqüência e trabalhos prestados nesse setor para receber sua nota de estagio. A sugestão do Sr. Prof. Dr. [...] implicaria na diminuição de responsabilidade imposta pela diretora, o que faria com que a mesma não fosse tão desautorada em sua categoria.

Neste período, os alunos eram submetidos a uma rígida escala de trabalho no hospital, em regime de internato, tornando o aprendizado repetitivo e enfadonho. Era interesse da escola manter este sistema, pois recebia do Estado um subsídio para manter o internato. Conforme o registro da ata da reunião, foi sugerida a elaboração de um relatório de estágio como forma de controle das atividades diárias realizadas pelas alunas. Tais medidas são aplicadas até hoje. É importante assinalar que havia entre a escola e o serviço uma cumplicidade no controle das alunas no cumprimento das tarefas.

A idéia de redução de horas de estágio não era exclusiva da Escola de Enfermagem Coração de Maria, o mesmo problema era enfrentado por outras escolas:

Não se pode, todavia, reduzir o número de horas de estágio e manter o mesmo tipo de ensino tradicional. Torna-se necessária uma reformulação completa do mesmo, a fim de que as experiências oferecidas aos estudantes sejam realmente situações para ensino planejado, não havendo repetição desnecessária o estudante torna- se muito mais interessado em aprender e poderá encarar o estágio como um privilégio e não mais uma carga de trabalho da qual não pode desfazer. (Pinheiro,1969, p. 26).

É interessante destacar a proposta de Pinheiro (1969) para a reformulação do estágio, pois ela se refere ao “ensino planejado”, unindo a teoria e prática.

Desde 1949, os Cursos de Enfermagem do país vinham acrescentando e excluindo disciplinas aleatoriamente, com uma disparidade muito grande entre os diversos cursos do país, como comprovou Carvalho Amália e Carvalho Anayde (1969), numa análise da situação do corpo docente e escolas de enfermagem. Um dos dados destacados pelas autoras confere com os aplicados na Escola Coração de Maria, apontando a excessiva fragmentação do currículo em algumas matérias profissionais, como Enfermagem Médica e Enfermagem Cirúrgica; estas eram desmembradas em duas e cada uma desmembrada em 10 ou 12 matérias, como por exemplo: Fundamentos de Clínica Médica, Dermatologia, Tisiologia, Neurologia, Cardiologia, Reumatologia, Endocrinologia, Otorrinolaringologia, Pediatria, Oftalmologia, Urologia, Doenças Metabólicas, etc. Estas matérias eram ministradas por médicos que se intitulavam chefes de cadeira, o que nessa época era uma posição nobre na área de ensino.

É nesse contexto mais ou menos cômodo, no que se refere à autonomia dos cursos, que chega o Parecer Nº 271, de 4 de dezembro 1962 do Conselho Federal de Educação, refreando a ampliação desordenada do currículo, fixando um Currículo Mínimo, com duração de três anos letivos. Esse currículo moldou-se à tendência da economia brasileira, direcionando-o à área curativa e incluindo a matéria de Administração e excluindo Ciências Sociais e Saúde Pública, possibilitando ao aluno uma complementação optativa de mais um ano na área de Saúde Pública ou Obstetrícia.

Tais medidas provocaram uma reação muito grande por parte das docentes de enfermagem, lideradas pela Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), com críticas à proposta do Currículo Mínimo.

Dentre os questionamentos, os que sobressaíram foram: exclusão de enfermagem de Saúde Pública do tronco de graduação, redução da carga horária do curso, falta de referência no currículo aos objetivos educacionais. A ABEn e mais 20 escolas de enfermagem assinaram um documento inquirindo o Conselho Federal de Educação quanto a providências de alteração.

Este Novo Currículo, apesar de reconhecer a Enfermagem como categoria superior, trouxe problemas como escreve Oliveira (1981, p 22) “O currículo proposto, viera de certa forma agravar a situação de uma carreira que ainda procurava afirmar- se para gozar dos privilégios assegurados às demais de nível superior.”

O que causou indignação às professoras de enfermagem foi a resposta dada pelo relator do Conselho Federal de Educação a respeito da reclamada inclusão da disciplina de Enfermagem e Saúde Pública, que assim escreveu “não consta no curso geral que prepara o enfermeiro para cuidar do doente, como auxiliar do

médico”. No item 3 do referido parecer, no tocante ao pedido de inclusão de disciplina de Ciências Sociais, o relator responde: “Tal matéria não consta, como obrigatória no Curso de Medicina, como exigi-la no de Enfermagem? Obrigatoriamente, foi incluída no Curso de Serviço Social.”

E mais adiante, no item 6, no qual é solicitada a substituição da frase: ”uma ou mais formam o conteúdo das cadeiras”, por: “uma ou mais disciplinas de enfermagem formam o conteúdo das cadeiras”. A justificativa do relator foi: “As disciplinas que no curso de medicina são chamadas básicas e desempenham papel importantíssimo, num curso de graduação de enfermagem, têm curta duração; são lecionadas por assistentes das Faculdades de Medicina, Farmácia, Odontologia, Filosofia ou por Enfermeiras, que recebem gratificação por aula dada, e não justifica que se constituam cadeiras pois acarretariam ônus enorme e desnecessário para a escola”.

Sobre este parecer, Oliveira (1981) escreveu:

Estavam assim colocados os objetivos educacionais da estrutura curricular proposta o que sem dúvida representava um retrocesso aos ideais que animavam a formação do enfermeiro no país. Este, segundo certamente imaginou o relator, já teria ido longe demais em suas aspirações profissionais e, portanto, era hora de trazê-lo de volta ao controle da medicina. (OLIVEIRA, 1981)

Na Escola de Enfermagem “Coração de Maria”, as mudanças foram postas por força da Lei, reduzindo-se as disciplinas e substituindo cadeiras por disciplina. Um movimento de ruptura dos laços de relações entre os docentes médicos e as docentes enfermeiras (a maioria freiras) foi desencadeado em 1965, em decorrência da perda de status instituído pela chefia de uma Cadeira ora substituída “simplesmente” por auxiliares de ensino.

O protesto contra as mudanças partiu de um professor médico, que ficou revoltado com a perda do título de “chefe da cadeira”. O fato foi registrado em ata da reunião da congregação do dia 9 de março de 1965, quando a senhora secretária escreveu:

O Sr. Prof. Dr. [...] fez as seguintes objeções:onde se lê disciplinas mencionar cadeiras e pediu ainda esclarecimentos sobre a situação dos senhores médicos professores da Escola de Enfermagem Coração de Maria. Quem continua sendo encarregado responsável da cadeira? A enfermeira ou o médico? Os médicos seriam convidados para proferir apenas algumas aulas, ou palestras ou conferências? Nesse caso, como professores convidados não poderão fazer parte da Congregação. O Sr. Prof. [...] tomando a palavra, propôs que os Senhores médicos, Professores da Escola de Enfermagem “Coração de Maria” continuassem sendo responsáveis pelas suas cadeiras, até que sejam providas de acordo com a lei vigente. O Sr. Prof. Dr.[...], tomando a palavra pediu que fosse mencionada sua abstenção de voto à modificação da ata anterior. A ata anterior foi então aprovada com as ressalvas mencionadas, ficou decidido que os senhores médicos, Professores da Escola de Enfermagem “Coração de Maria” continuariam sendo encarregados responsáveis de suas cadeiras.

A Congregação da Escola de Enfermagem Coração de Maria vinha, havia algum tempo, reformulando seu Regimento (Projeto Pedagógico do Curso), como relatado anteriormente; no início de cada ano letivo colocavam-se e retiravam-se disciplinas conforme avaliação interna do curso feita ao final do ano letivo anterior.

Assim, enquanto o Parecer 271/62, que provocou grande polêmica no âmbito da Enfermagem Nacional, os professores do Curso de Enfermagem Coração de

Maria tomaram conhecimento dele numa reunião extraordinária que foi convocada a pedido de um dos professores médicos para melhor esclarecimento de tais medidas.

[...] O Sr. Presidente retomando a palavra esclareceu que o Regimento Interno apontado pelo Sr. Prof. Dr.[...] entraria em vigor a partir do ano letivo de 1965 apenas no que coubesse entrar em vigor. O Sr. Prof. Dr.[...], aceitou a explicação, mas não se conformou com a mesma. . Disse ainda que folheando o Regimento notou que algumas cadeiras tinham sido excluídas que o Regimento não era a cópia fiel do que tinha sido estudada com o Srs. Professores em reunião de Congregação. Disse que essa exclusão de cadeiras sem o conhecimento dos Srs. Professores feria qualquer princípio e leis, sendo isso tomado como um abuso de autoridade de quem o fez. [...] A Irmã Diretora da Escola de Enfermagem, tomando a palavra explicou que já haviam sido tomadas as providências para a devolução do mesmo. [...] Novamente Sr. Prof. Dr. [...], pedindo a palavra, [...] disse ainda que sentia ofendido em sua dignidade não de homem, mas de médico, tratando-os como Auxiliares de Ensino, sendo subordinados às Enfermeiras. É de opinião que a Escola seja dirigida exclusivamente por Enfermeiras desde que tenha pessoal suficiente para o mesmo. Em seguida pediu sua demissão da escola, desde que a Srª Profª Irmã [...] continuasse como Diretora. Cumprimentou os colegas e retirou-se da reunião. [...] O Sr. Prof. Dr. [...] dirigindo-se ao Presidente disse que gostaria ouvir da Irmã Diretora no que ela se baseou para fazer as modificações no Regimento a Srª Diretora Profª Irmã [...], respondeu que havia recebido um ofício do Ministério da Educação e Cultura de que deveria enviar com urgência o Regimento Interno deste Estabelecimento de Ensino. Esclareceu que não houvera intenção ao tomar tais decisões, foi apenas uma irreflexão de sua parte, sem pensar que tais decisões trouxessem conseqüências tão graves. (Ata reunião extraordinária 14-09- 1965 p.34, grifo nosso)

Nesse cenário bastante conturbado, as capacidades humanas, na aplicação da lei, foram lesadas pelos padrões de linguagem, quando apropriadas pelos indivíduos, no contexto da estrutura social; a racionalidade da lei colocou em evidência a regulação das condutas humanas e reforçou outras.

Dito de outra maneira, o simples fato de trocar a palavra cadeira por disciplina colocou em xeque a hegemonia do médico que se “sentiu ofendido em sua dignidade, não de homem, mas de médico, tratando-os como Auxiliares de Ensino, sendo subordinados às Enfermeiras”; por outro lado, os enfermeiros sentiram que a aplicação da lei seria um retrocesso embora fosse reconhecida como carreira superior, visto que no entendimento do relator do Parecer 271/62, “o curso prepara o enfermeiro para cuidar do doente, como auxiliar do médico”.

Em meio a toda movimentação, ecoa a voz da estudante de enfermagem que se rebela contra a sobrecarga de trabalho durante os estágios que, como foi registrado, servia para substituir a precariedade da mão de obra no hospital. Outra reivindicação das alunas da Escola de Enfermagem Coração de Maria foi registrada na Ata da reunião extraordinária da Congregação da Escola de Enfermagem “Coração de Maria” no ano letivo de 1965 – 16/11/1965

“Reivindicação das alunas do 3º ano de graduação “foi o pedido de troca do véu pela touca. Esse item foi discutido pelas Enfermeiras presentes, e devido suas vantagens apresentadas todos concordaram com a troca. Ficou estabelecido que as alunas do Curso de Graduação usariam touca e as alunas do Curso de Auxiliares de Enfermagem usariam o véu”. 1965:39

Diante do exposto, a subjetividade social, nesse período, foi tecida pelo conteúdo simbólico da linguagem e elementos de sentido na relação com o outro,

como a confirmação do status através de títulos (doutor fulano, chefe da cadeira) e símbolos (como a touca da enfermeira).

Reforma universitária Redução da procura do curso Professores despreparados

P

R

O

C

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S

O

ESTRUTURA

MODELO

PERFIL

MERCADO

• Fragmentada

Redução de carga horária

Extinção das Cadeiras • Prioriza hospital • Biológico • Tecnicista • Centrado no professor • Corpo docente médicos • Aluno consumidor de informações • Forte conotação religiosa • Enfermeira de Cabeceira • Liderança • Administração

4.3 A Reforma Universitária e a Escola de Enfermagem Coração de

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