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No Discovery um mostrengo assustado. A série americana já vem com risadas.

No Cartoon um desenho que vi quando era criança. No teto uma lâmpada desatarraxada.

No sofá minha roupa de ontem. Na estante ainda tem livro pra ler.

O jornal repete o atentado de um mundo que eu mesmo fiz (p.15)1.

O modo de estruturação narrativa é aliado à falta de referências espaço- temporais. Poucas ações deixam entrever o que o autor esteja informando a respeito da época ou chamando a atenção do leitor para traços da sociedade em       

que se passa a narrativa. Essa função é principalmente exercida por elementos ocultos que agem como princípios constitutivos da obra.

Com efeito, não é a representação dos dados concretos particulares que produz na ficção o senso da realidade; mas sim a sugestão de uma certa generalidade, que olha para os dois lados e dá consistência tanto aos dados particulares do real quanto aos dados particulares do mundo fictício (CANDIDO, 2010a, p.39). Não há descrição de costumes e contextualização histórica. O que há de documento é parte constitutiva das ações. Essa falta de referências espaço- temporais, no entanto, é até certo ponto suprida pelo tema e estrutura narrativa da obra. Elementos básicos da história expressam sua localização. O fato de o protagonista ser um dono de loja de usados que negocia objetos constantemente e a existência de uma personagem que é viciada em drogas nos alerta sobre sua proximidade com o nosso tempo, assim como camadas ocultas da narrativa que servem como modo de condução do leitor também propiciam a experiência contemporânea.

Segundo Susana Scramim (2007), a noção de literatura do presente, para além da ideia do contemporâneo, está ligada ao risco inclusive de se produzir algo que não seja literatura ou que a coloque em um lugar outro, o de passagem entre discursos, mas que produza a possibilidade de conhecimento e da experiência: o problema, questiona a pesquisadora, “é como fazer experiência poética e ao mesmo tempo produzir conhecimento se nosso presente está saturado de memória” (p.16).

A literatura de Lourenço Mutarelli não possui passado, não se refere a memórias, não mobiliza referências precisas. Sua obra se opõe ao historicismo. O protagonista de O Cheiro do Ralo não tem nem mesmo nome.

No livro em questão, os elementos da história (loja de objetos antigos, lanchonete, personagens que circulam sem se conhecerem, a viciada, entre outros tipos que apresentam “males” de nosso tempo), assim como os diálogos e períodos curtos, pontuação que entrecorta o fluxo de leitura, a repetição de

palavras, termos, sons – aliterações – e rimas criam um ritmo frenético que se remete à experiência dos sujeitos nos grandes centros urbanos. Mesmo sem localizar os acontecimentos, o autor suscita uma possibilidade de leitura condizente com a experiência cosmopolita. O livro - que Valêncio Xavier, em seu prefácio, classifica como “neo-realismo citadino” - segue o compasso de uma grande cidade.

De acordo com Anatol Rosenfeld (2009, in CANDIDO et al), “a criação de um rigoroso mundo imaginário, de personagens ‘vivas’ e situações ‘ verdadeiras’, já em si de alto valor estético, exigem em geral a mobilização de todos os recursos da língua” e outros elementos da composição literária, tanto no plano horizontal quanto no vertical (das diferentes camadas de leitura e panos de fundo que se intercalam durante a obra).

Assim, o leitor cria representações a partir da interação de seu repertório consolidado e do que lhe é fornecido pela obra por meio de suas imagens poéticas. No entanto, nem todos os elementos necessários à construção de sentido da narrativa estão explícitos. Pelo contrário, é exatamente a sua falta, o “espaço vazio” que propõe a necessidade de preenchimento pelo sujeito.

É dessa forma que se constitui o cenário, pano de fundo para a leitura. Muitos objetos, ruas, asfalto, construções, tudo empilhado sem haver espaços imagéticos vazios, por mais paradoxal que isso possa parecer, já que não há, justamente, descrição espacial na obra literária em questão.

No romance, também não há quantificação de valores nem indicações precisas sobre a localização onde se passa a história, época de seu acontecimento ou sua duração. O personagem principal transita entre sua loja, a lanchonete em que come para ver a “bunda” e sua casa, onde passa a maior parte do tempo mudando o canal da TV a cabo ou lendo livros, cujas referências variam dentro da literatura nacional (Valêncio Xavier, Ferréz) e estrangeira (James Ellroy, Paul Auster), além de Freud.

As únicas referências de espaço citadas em todo o livro são o “centro” e a rua “Conselheiro Crispiniano” (região de São Paulo onde se encontram muitas lojas de antiguidades, principalmente do ramo de fotografia).

O espaço em que se passa a narrativa é, portanto, restrito, situando-se apenas entre os locais citados pelo narrador. Ao mesmo tempo em que a velocidade da escrita é estonteante, o leitor acompanha o protagonista por um curto trajeto, é localizado em poucos ambientes, que se tornam sufocantes não apenas pela sua quantidade, mas, principalmente, pelo clima criado pela obra – que envolve todos os seus elementos de constituição.

Para Wolfgang Iser (1999), a leitura acontece pela relação entre livro e leitor, entre os quais existe uma diferença de nível. A obra dispõe seus elementos de forma a criar espaços vazios e lugares indeterminados, os quais têm de ser preenchidos, criados, pelo leitor. A narrativa não contem em si todos os elementos para sua compreensão. O sentido é construído apenas na interação com o sujeito. Para Iser, a concretização diz respeito ao fato de os aspectos apresentados pelo texto serem atualizados durante a leitura. Ou seja, ele não aponta para uma relação recíproca, mas para uma diferença de nível de texto e leitor. Os elementos não estão “dados” no objeto de arte, são atualizados, interpretados, ressignificados pelo leitor (p.111).

Assim, o sentido da obra é criado de acordo com o repertório dos sujeitos envolvidos na leitura na relação com a imagem poética criada pelo artista.

A configuração cíclica de O Cheiro do Ralo se dá também pela repetição das ações. Grande parte das cenas se inicia com “ele entra” ou “ela entra”.

Dessa forma, o texto de Lourenço Mutarelli influencia não apenas o ritmo de leitura, mas a experiência do leitor em relação à construção do pano de fundo em que se passa a história (cenário, contexto) e, principalmente, no caso, à personalidade desse protagonista, cujo pensamento acelerado e perverso se torna “vertiginoso”, como ele próprio descreve no livro:

Paul Auster me deixa confuso. Ele escreve no ritmo que eu penso. Vertiginoso. Todos aqueles Sr. White, Sr. Green. Como no jogo do tabuleiro.

Sr. White com a faca, na biblioteca. ‘Da mão para a boca’.

Ela me entrega o lanche. Ela quase sorri. Ela se vira para buscar o refrigerante.

Eu poderia ficar uma semana só olhando ela se virar. Esse livro já é outro?

Mostro a capa. Paul do quê?

Ela me diz que gostava de ler. Só revista. Revista dos Astros. Astros da TV. Eu pagaria só para olhar essa bunda.

Peço um café.

Ta sem fome de novo? É.

Seu nome era a mistura de pelo menos outros três. Seu pai, sua mãe e algum astro de TV.

Ela pergunta o meu. Eu falo.

Ela repete em voz alta. Ela deve ler mexendo a boca.

Ela deve mexer a boca até quando vê as fotos dos astros.

Deve mexer a boca evocando seus nomes. Roberto Carlos (p. 14- 15).

Ao contrário do que o autor propunha em seus quadrinhos, nesta sua primeira obra literária, as orações são extremamente curtas e fragmentadas. Elas se complementam após os pontos finais, que imprimem à leitura um ritmo e um sentido próprios, de uma certa confusão e sequencialidade.

Além dos diálogos, as orações descrevem apenas ações dos personagens e o julgamento que o protagonista faz sobre cada um que aparece em sua loja ou em sua vida.

Os diálogos são transcritos sem diferenciação de pontuações, misturando- se a todo o texto ao longo da obra.

Ele entra. Um raro livro. Jura ser a primeira edição. Chuto baixo, bem baixo. Quero que ele pense que eu não sei o que tenho ali. Ele me chama de ignorante. Reforço sua ideia dizendo, Baudelaire? Nunca ouvi falar. Heresia! Blasfema. ‘Les Fleurs Du Mal’.

Nem inglês.

Nunca aprendi nem sequer a língua do P.

É a primeira edição francesa. Isso vale uma fortuna. Isso quem diz é você.

O pior é que eu preciso da merda dessa grana. E por falar em merda, o cheiro é do ralo. Que cheiro? Ele não sente!

Quadruplico a oferta.

Ele põe a mão sobre o peito. Ele pede para sentar. Chamo a mocinha e peço um copo d’água. Se o senhor soubesse como eu preciso desse dinheiro. tenho um filho doente. A vida é dura (p.26- 27).

O tempo da narrativa é dado pelas cenas representadas apenas em diálogos e pensamentos do personagem principal. A recorrência dos fluxos de consciência que permeiam a obra quebra seu ritmo “real”, introduzindo uma suspensão do tempo ou o tempo subjetivo do narrador.

As descrições das cenas ocorrem todas no tempo passado até a quinta página do romance. A partir daí, o narrador assume o verbo no presente e a leitura se torna simultânea ao acontecimento dos fatos. Esse recurso determina uma similaridade com a experiência cinematográfica, em que espectador acompanha os personagens e a história no tempo em que tudo é vivido.

O texto de Lourenço Mutarelli parece ter sido escrito para ser lido como cinema, experienciado. Daí a afirmação do escritor e roteirista Marçal Aquino de esse ser o livro que mais facilmente transpôs para roteiro. O autor faz uso basicamente da descrição de ações, diálogos e divagações do protagonista (que, no longa-metragem, se transformaram em narração over2).

Ele imprime velocidade à narrativa, realiza cortes, acelera o tempo para depois retomar cenas e citações. Mutarelli possibilita o embaralhamento da história sem, no entanto, deixar claro se sua ordem está alterada. Tratam-se de episódios. Não temos, como em muitos outros casos do cinema e da literatura, a ocorrência de flashbacks ou de inversão temporal. Ele simplesmente cria cenas, capítulos e os apresenta ao leitor - a quem cabe estruturar seu sentido.

      

2 Voz over se refere à narração que não é proveniente de nenhum elemento da cena e que se sobrepõe à 

Em O Cheiro do Ralo, além das falas, existem reiteradas descrições das ações de cada personagem, que estão inseridas no fluxo de consciência do narrador.

Ele entra. Alguns livros nas mãos. Põe aí, sobre a mesa.

São bons livros. Ele diz. Desculpe o cheiro. Tudo bem.

E não é que hoje voltou a feder? Me surpreendo. É então que ouço o barulho da água.

Me levanto e vou até o banheirinho. Splash, splash, splash.

O vaso transborda. Ih! Deve ser o sifão. Todo mundo diz isso. A água não para. Molha meus sapatos. Molha os sapatos dele. Ele olha pra mim. Eu olho pra ele.

É melhor chamar um encanador. É melhor.

O cheiro é forte, hein?!

É. E costuma piorar. Falo eu (p.76).

Dessa forma, Mutarelli constrói um texto em que indica diversas imagens, inclusive sonoras. Ele nos dá elementos muito claros para a construção da história. Apesar disso, praticamente não existem descrições visuais. São raros os momentos em que adjetiva alguém ou algum objeto – como é o caso da bunda, “imensa e disforme”, “redonda e farta” “por estrias e celulite ornada”, e da viciada:

Ela é seca. A calcinha é igual de criança. Ela é osso e pele caída.

Nem na Etiópia poderia ser miss. Ela é toda hematomas (p.82).

Ao invés da supressão de elementos concretos ou descritivos conformar uma literatura abstrata, sua obra possibilita, curiosamente, leituras bastante visuais.

Essa característica se relaciona diretamente às duas artes sequenciais às quais seus livros estão mais estreitamente relacionados: as histórias em quadrinhos, em que iniciou sua carreira e que o impulsionaram para a literatura, e o cinema, para o qual toda a sua obra está em processo de transposição.

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