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O Cheiro do Ralo : a poética de Lourenço Mutarelli e o processo de transposição para o cinema por Heitor Dhalia

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

HELOISA PISANI

O Cheiro do Ralo: a poética de Lourenço Mutarelli e o

processo de transposição para o cinema por Heitor

Dhalia

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes, da Universidade Estadual de Campinas, para a obtenção do título de Mestra em Multimeios.

ORIENTADOR NUNO CESAR PEREIRA DE ABREU

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA E ORIENTADA PELO PROF.DR.

Nuno Cesar Pereira de Abreu

CAMPINAS 2012

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Agradecimentos

Agradeço, em primeiro lugar, à compreensão, ao imenso apoio e carinho de meus pais, Lairsse e Mario.

A Gustavo e Guilherme, meus irmãos, Graziele e Lara, queridas cunhadas, ao casal mais doce, cuja simplicidade semeou tantas flores, histórias e amor em minha vida, seu Luís e dona Cida, meus avós, a Samuel e Laudineia, meus sempre presentes tios, pelo incentivo e paciência por minhas tantas ausências.

Ao meu orientador Nuno Abreu, que me fez admitir meus próprios questionamentos.

À disponibilidade e grande colaboração da banca formada por Fernando Passos e Vania Cerri.

À generosidade e às criações de Lourenço Mutarelli.

Rodrigo Gomes Lobo, pela amizade infinita, pelas leituras atentas e conversas sempre acompanhadas por discussões existenciais, trocas de referências das mais diversas e piadas esdrúxulas.

Marília Mello Pisani, minha prima-irmã-mestre-ídola, referência que me ajuda a seguir pelas ciências humanas e questionar a vida em seus pontos cada vez mais essenciais.

Morena Madureira, Kátia Pensa Barelli, Breno Pensa Barelli, Pérola Lozano, pela profunda amizade, pelas longas e eternas conversas, pelos encontros, por me fazerem crer na felicidade. Ao pequeno Joaquim, fruto da existência do amor.

A Antonio Martinelli, interlocutor responsável por referências determinantes em meu caminho e por descobertas sempre em processo.

Rodrigo Eloi, que me abre os pensamentos e o sorriso todos os dias e instantes.

À amiga Fernanda Gonçalves, pelo companheirismo e tanto mais.

Cayo Honorato, pelo amadurecimento e disciplina, por ter me colocado em frente ao espelho.

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Ludmilla Rubinger, pela simples existência que se aprofunda a cada encontro.

Gabriela Lopes Ventola, Maria Luiza Reigota, Maira Mifano Sasso, Ana Maria Masson Furlan pela amizade, risadas e colos.

À colaboração e disponibilidade de Monica Palazzo, Wenceslao Oliveira Junior, Paulo Franchetti, Luciano Dutra, Helio Salles Gentil e Guta Carvalho.

Gustavo Torrezan, artista, amigo e profissional tão dedicado, por quem tenho grande admiração, pelas leituras iniciais e disponibilidade.

Aos companheiros que me aturaram durante esse período de estudos, crises, escritas, durante os quais, no entanto, continuamos compartilhando tantas risadas: Rafael Montorfano, Thiago Freire, Wagner Palazzi, Simone Wicca, Regina Marques, Melina Izar Marson, Mauricio Ricci, Luana Ligeiro Greve.

Aos amigos Juliano Almeida, Bruno Guerra, Diego Bravo, Rodrigo Bulamah e Benjamin Parton.

À interlocução poética e cinematográfica de Cesar Rodrigues.

Ao Sesc, por ter concedido uma bolsa de estudos que me possibilitou frequentar aulas e encontros acadêmicos mesmo a trabalho. A Elisa Maria Americano Saintive, Ilona Hertel e Denise Mariano pelo apoio.

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“Vem aí um delírio, se o leitor não for dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o escrito” (Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas).

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Resumo

Este trabalho se constitui por uma leitura da obra de Lourenço Mutarelli em seu percurso das histórias em quadrinhos até a literatura em busca de uma poética do autor. A transposição de seu primeiro livro, O Cheiro do Ralo, para o cinema, pelo diretor Heitor Dhalia, é analisada de forma a levantar questões narrativas próprias aos dois meios (contrapondo-os ao mesmo tempo em que os aproxima) e à criação dos dois artistas.

Abstract

This study is comprised of a reading of the work of Lourenço Mutarelli from its precursor in comics to literature in search of the poetics of the author. The transposition of his first book, Drain's Smell, to cinema, by the director Heitor Dhalia, is analyzed in order to raise specific issues about the two media narratives (opposing them at the same time as it brings them closer) and to the work/creation of those two artists.

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SUMÁRIO

ABERTURA ... p. 1

LITERATURA E CINEMA: APROXIMAÇÕES ... p. 6

LOURENÇO MUTARELLI ... p. 10 Quadrinhos ... p. 11 Literatura ... p. 26 A poética do autor ... p. 31 O muito, o complexo ... p. 37 O humor, a paródia, a ironia ... p. 39 O vazio ... p. 40 O transcendental, a magia, os distúrbios psicológicos ... p. 46 O Cheiro do Ralo, livro ... p. 52

HEITOR DHALIA ... p. 66 O Cheiro do Ralo, filme ... p. 70 A Direção ... p. 76 Direção de Arte... p. 79 Direção de Arte em O Cheiro do Ralo ... p. 83 Sequência de abertura ... p. 86 Fachada da loja ... p. 88 Composição da loja ... p. 91 Externas/ Fachadas/ Cidade ... p. 101 Lanchonete ... p. 105 Figurinos ... p. 106 Sequências ... p. 111

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TRANSCRIAÇÕES DE CENA LIVRO-FILME ... p. 116 A compra do olho ... p. 116 • Livro ... p. 116 • Filme ... p. 118

Cliente que oferece caneta de ouro ... p. 122 • Livro ... p. 122 • Filme ... p. 124

Última parte/ Sequência final ... p. 125 • Livro ... p. 125 • Filme ... p. 128

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... p. 131 REFERÊNCIAS FÍLMICAS ... p. 134 SITES ... p. 134

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ABERTURA

Cinema. Literatura. Espaço.

Este trabalho se deve ao entrecruzamento de muitas ideias e interesses pelos quais circulei principalmente a partir de 2008 – mas que, obviamente, foram sendo desenvolvidos durante toda minha formação.

Trabalhar em uma instituição cultural com a elaboração de uma programação na área de literatura e cinema me fez refletir continuamente sobre as possíveis formas de aproximação com as obras e artistas que eu, no papel de curadora, considerava interessante propor.

Pensar a formação de público para esses campos, a meu ver, envolve necessariamente o encontro não apenas com a obra em si, mas também com quem a produz.

Uma programação cultural em literatura que pense não apenas o estímulo à leitura, mas também sua produção pode ser proposta pela criação de acesso ao livro (bibliotecas e espaços de leitura), que conforma a leitura íntima, individual, e também pelo seu compartilhamento por meio de encontros com autores, pesquisadores e amantes das letras.

Para divulgar a produção atual e discutir o que se passava no universo dos escritores, tomei como prioridade a realização de atividades com a presença de autores contemporâneos, que apresentavam não apenas seu trabalho, mas também um pouco de seu processo de criação, além de referências que serviram de base para sua formação, leituras e outras discussões pertinentes.

O fluxo criado por esses encontros permite trocas múltiplas, tal como aconteceu durante os anos em que acompanhei diferentes atividades e processos, principalmente na área de literatura. Rodas de Leituras, oficinas de escrita literária, homenagem a autores com a apresentação de trabalhos derivados de suas obras em diferentes linguagens, entre outros projetos, suscitaram o encontro entre pessoas de origens bastante diversas mas com algum interesse em comum. Dessas vivências surgiram rodas em bares, saraus, outros eventos literários para

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fora dos muros da instituição em que trabalho, uma revista eletrônica com a colaboração de diversos participantes dessas atividades, além da mudança de perspectivas pessoais e profissionais para alguns de seus frequentadores. Os grupos e as pessoas criaram sua autonomia em relação ao que era proposto nesse espaço.

Aí está a dimensão da arte, do encontro e o sentido que entendo haver não apenas em minha profissão, mas também neste estar no mundo. Aquela reflexão, que desde o início de meu trabalho como programadora me acompanhava, sobre os porquês de meu interesse pela leitura e pela sétima arte desde a infância, sobre o que poderia me atrair e a outras pessoas para atividades culturais nessas áreas, sobre a estrutura primeira de que derivam os trabalhos em cada suporte, em cada linguagem, acabaram me mostrando que a práxis existe e faz sentido quando, para além da teoria, tornamos possível – e muitas vezes de forma ainda oculta – a presença desses questionamentos na atividade concreta, no encontro com as obras, mas, principalmente, com o humano (ou mesmo com o Humano).

Foi nessa busca por referências que me dessem base para a discussão e proposição que cheguei ao trabalho de Beatriz Resende, crítica literária e Professora Titular de Poética do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. Contemporâneos – expressões da literatura brasileira no século XXI me aproximou de alguns dos temas e tensões presentes no trabalho de escritores recentes. Essas características acompanham não apenas a produção literária, mas também todo o movimento artístico, político e cultural de seu tempo, já que nenhuma dimensão da vida se dissocia.

O desafio, então, seria o de (re)conhecer, principalmente, o que estava sendo feito no presente – sem desconsiderar, é claro, a importância irrefutável de obras e autores já consagrados.

Ao procurar estabelecer um diálogo que aproximasse as dimensões desse movimento entre trabalho-emprego e trabalho-estudo, desenvolvi uma proposta de pesquisa para o mestrado, cujo resultado apresento aqui.

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Pensar o contemporâneo é pensar o atual. Lançar o olhar para o momento em que estamos nós próprios inseridos é um desafio grande. Para realizar uma aproximação dessas questões que nos envolvem, que nos rodeiam, mas que, de tão próximas, por vezes se escamoteiam, se fazem invisíveis, proponho uma análise da obra de Lourenço Mutarelli, multiartista que atualmente se entende enquanto escritor e que tem publicado uma média de um livro por ano.

Seu trabalho é criado em estreita relação com o espaço urbano e também com a experiência proporcionada pela sétima arte – para a qual os direitos de todos os seus livros já foram vendidos.

A literatura de Lourenço Mutarelli apresenta características que estabelecem uma grande proximidade com o cinema. Não à toa, seu primeiro livro teve os direitos de filmagem vendidos cerca de dois meses após a publicação.

A presença de suas obras na produção audiovisual instiga a busca por elementos comuns à produção brasileira contemporânea nesses dois campos. Entre 2002, quando lançou seu primeiro romance, e 2011, foram seis livros publicados e todos eles transitam pelo universo do cinema.

O foco de minha leitura, no entanto, se dá, mais atentamente, sobre seu primeiro livro, O Cheiro do Ralo, e o filme homônimo a que deu origem, dirigido por Heitor Dhalia.

Procuro, com isso, abordar questões narrativas, de composição, técnicas e poéticas que permeiam os dois campos (cinema e literatura) e entender em que ponto essas obras se aproximam ou se distanciam no trabalho dos dois criadores.

A análise do trabalho de Mutarelli busca encontrar características que o acompanham desde suas primeiras produções, assim como pontos que se desenvolveram e se alteraram ao longo de sua trajetória como quadrinhista e escritor.

O esmiuçamento de suas obras acontece de forma a tentar evidenciar a poética do autor, entendida, aqui, como as características específicas de seu conjunto de obras que articulam uma proposição de experiência estética.

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Essas características não dizem respeito, em geral, àquilo que está exposto apenas denotativamente (a partir de temas, por exemplo), mas também de sua forma de estruturação (suporte, elementos, composição, entre outras tensões).

São essas similaridades entre os diferentes trabalhos de um autor que conformam seu estilo em um “programa de arte” (PAREYSON, 1997), normalmente em consonância com o seu tempo, sua época, ou seja, sua realidade. De acordo com Luigi Pareyson:

uma poética é eficaz somente se adere à espiritualidade do artista e traduz seu gosto em termos normativos e operativos, o que explica como uma poética está ligada ao seu tempo, pois somente nele se realiza aquela aderência e, por isso, se opera aquela eficácia (idem, p.18).

A obra de Lourenço Mutarelli chama a atenção pelo sucesso de público, por sua circulação e permanência entre outras artes da contemporaneidade, mas, principalmente, por conformar um estilo tão marcado e tão próprio ao autor.

Na segunda parte deste trabalho, realizo uma breve análise de dois dos três primeiros longas de Heitor Dhalia, Nina (2004) e À Deriva (2009), seguida por uma leitura mais longa e mais atenta de seu segundo filme, O Cheiro do Ralo (2007), baseado no livro de Mutarelli.

Inicio o trecho dedicado ao trabalho audiovisual em questão com uma leitura sobre a construção do discurso fílmico a partir da direção (que engloba desde acertos de roteiro, direção de arte, assim como fotografia, enquadramentos e movimentos de câmera, atuação, edição e montagem, ou seja, o filme como uma obra, um todo). Em seguida, analiso mais detalhadamente sua relação com a construção da materialidade concreta do set de filmagem (cenários, objetos de cena, figurinos, maquiagem) por meio do trabalho de direção de arte, que se constitui como uma das ferramentas que Heitor Dhalia utiliza de forma mais enfática.

A interpretação da obra de arte é infinita e nunca definitiva, não havendo, portanto, processo de interpretação que se possa dizer acabado. Dessa forma,

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este trabalho se pretende como uma leitura que se conforma transitória, inacabada, articulada por um emaranhado de referências e reflexões que não existiriam sem uma subjetividade implicada. Contudo, sempre procurei empenhar meu próprio gosto apenas como via de acesso à obra, nunca como critério de juízo.

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LITERATURA E CINEMA: APROXIMAÇÕES

Atualmente, no Brasil, é bastante evidente a frequência com que as obras literárias contemporâneas têm sido transpostas para o cinema, o que denota uma proximidade entre as questões emergentes nos dois campos.

A palavra escrita e as imagens em movimento têm estabelecido relações estreitas e se influenciado mutuamente desde seu surgimento. A convergência de linguagens e suportes tem sugerido a imersão de algumas indexações e rotulações. Mario de Andrade já criara, na década de 1920, um romance cinematográfico, ou, como definiu ele próprio em carta a Sérgio Milliet, (2 de agosto de 1923): “Um romance. Cinematográfico” (apud AVELLAR, 2007, p.60). Tratava-se de Amar, verbo intransitivo, obra cujos personagens circulavam pelas sessões do Cine República, mas que não trazia a sétima arte apenas como citação, fazia-se ela própria dos recursos de montagem: “Fragmentada e de ritmo ágil, partida num sem-número de planos, a narrativa corre quase sem pausas, e aqui e ali um capítulo dura só três palavras: Mamãe! Olhe Carlos!”(idem, p. 61).

Precedendo o autor modernista, Machado de Assis já havia proposto, mais de quatro décadas antes, em 1880, um outro modo narrativo. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o defunto autor inicia suas memórias pelo fim, por sua morte. Coloca-se como um espectador de sua própria vida para dizer que, enquanto vivo, não viveu realmente.

Brás Cubas se comunica diretamente com o leitor, justifica-se, realiza cortes na história, propõe desvios, reordena fatos de modo não linear. Machado criou cinema antes mesmo do surgimento da sétima arte.

Não apenas o teatro ou a literatura influenciou o cinema (e vice-versa) ou a fotografia reinventou a pintura. A alteração dos modos de produção, a urbanização, o surgimento da imagem em movimento e suas formas de edição e transformação narrativa, as novas composições musicais, tudo conforma a vivência humana no mundo e se inter-relaciona, alterando-se reciprocamente.

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Em Cinematógrafo de Letras (2006), Flora Süssekind analisa a influência da modernização no Brasil sobre as obras literárias da época. As alterações daquela sociedade, entre as quais o crescimento da imprensa e a urbanização, tornaram-se temas, mas também passaram a fazer parte da estrutura e do estilo da escrita de diferentes autores, cujas interpretações e aproximações dessa realidade se opunham – tal como em João do Rio e Olavo Bilac. Não à toa, o gênero que se proliferou nessa época foi a crônica, em estreita relação com a cidade e a política.

Assim também ocorre hoje. No decorrer do desenvolvimento das diferentes formas narrativas e suportes de expressão, a percepção da realidade se altera em um movimento contínuo.

Em Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI (2008), Beatriz Resende apresenta o que aqui vem sendo escrito entre os anos 1990 e início dos anos 2000 como trabalhos caracterizados pela “fertilidade, multiplicidade e qualidade”. O pluralismo estaria presente por meio das diferentes vozes que se manifestam atualmente.

Entre as características recorrentes da produção editorial recente estariam a presentificação, em forma de temas urgentes, de um presente dominante “no momento de descrença nas utopias que remetiam ao futuro, tão ao gosto modernista” (p.27) - que se opõe ao historicismo que servia como base dos romances até há pouco tempo -, de vozes que se assumem (tal como o crescente movimento da literatura periférica), das novas formas de edição possibilitadas em grande parte pela popularização das redes e pela criação de múltiplas editoras.

A presentificação, segundo a autora, também poderia ser reconhecida em outras artes, como no teatro e nas artes visuais, por meio do crescente desenvolvimento da performance e de instalações site-specific, que trabalham a partir da efemeridade.

O retorno do trágico, outra característica que Beatriz Resende aponta em sua análise, estaria relacionado à unidade de assunto, tempo e espaço. Na criação de forte sentimento trágico (que, de acordo com ela, apareceria na prosa

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atual), a força recairia sobre o presente. Ela relembra que, de todos os gêneros da poética clássica aristotélica, o que se realiza sempre no presente é o trágico.

O trágico estabelece um efeito peculiar com o indivíduo, supera-o e traça uma relação direta com o destino. Trágico e tragédia são termos que se incorporaram aos comentários sobre nossa vida cotidiana, especialmente quando falamos da vida nas grandes cidades (p.30).

O fragmentário na narrativa, o humor e ironia sutis impediriam que essas obras se tornassem apenas relatos do “mundo cão”.

Dentro dessas características apresentadas, emergeria como um dos temas mais evidentes da literatura brasileira contemporânea a violência das grandes cidades. Ela é centro de obras como Cidade de Deus, de Paulo Lins, O Invasor, de Marçal Aquino, O matador, de Patrícia Mello. Todos esses livros (e poderiam ser citados muitos mais) foram transpostos para o cinema.

A aproximação de obras de nossa literatura contemporânea com o cinema sugere temas e formas narrativas comuns aos dois campos. Parte desse trabalho de transcriação, no entanto, transforma a localização e abordagem do texto em experiência estética diversa, tal como fez Fernando Meirelles ao “estetizar” a fome (como cunhou Ivana Bentes).

A criação de imagens poéticas produz sensações estéticas que nos possibilitam outras vivências. Não seria, então, necessário o compartilhamento da experiência no mundo real para que o leitor a vivesse por meio da imagem poética. Segundo Bachelard (2008), trata-se de passar fenomenologicamente para imagens não vividas, imagens que a vida não prepara, mas que o poeta cria.

Mesmo quando tratam de um mundo fantasioso, essas imagens proporcionam ao público uma sensação estética real, mesmo que essa realidade se refira apenas à obra em si. A “estetização” realizada por alguns diretores proporia, então, uma outra experiência.

Neste texto, analiso a obra de Lourenço Mutarelli, a fim de identificar temas e modos narrativos comuns ao longo de seus diferentes trabalhos, e os

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procedimentos empregados pelo diretor Heitor Dhalia ao recriar, para o cinema, a primeira obra literária daquele autor, O Cheiro do Ralo, na qual, como procuro expor adiante, fazem-se presentes muitos elementos comuns ao que Beatriz Resende apresenta como característica de nossa produção recente no campo da literatura.

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LOURENÇO MUTARELLI

Lourenço Mutarelli se graduou em Educação Artística na Faculdade de Belas Artes (de São Paulo). A princípio interessado pela pintura, sentia necessidade de escrever palavras em seus quadros.

Iniciou sua carreira como ilustrador e passou a trabalhar nos filmes da Turma da Mônica. Foi na gibiteca disponibilizada aos funcionários do escritório de Mauricio de Souza que teve maior contato com obras de graphic novel contemporâneas, que despertaram seu interesse por essa forma narrativa. A partir daí, começou a criar seus próprios quadrinhos.

Seu trabalho autoral foi primeiramente publicado de forma independente em fanzines durante a década de 80 (Over-12 foi o primeiro deles) e, posteriormente, em revistas e coletâneas de HQs (como a Animal, a Tralha e a Heavy Metal). Tratavam-se de histórias mais curtas até o lançamento de Transubstanciação, de 1991, pela editora Dealer, uma narrativa mais longa que foi considerada um divisor de águas em sua trajetória e que lhe rendeu os prêmios de melhor história do biênio, concedido pelo júri da Primeira Bienal Internacional de Quadrinhos, realizada no Rio de Janeiro em 1991, Prêmio Ângelo Agostini da AQC – Associação dos Quadrinhistas e Cartunistas (SP) e troféu HQ MIX. Depois, publicou Desgraçados (1993, Editora Vidente), Eu te amo Lucimar (1994, Vortex) e A Confluência da Forquilha (1997, Editora Lilás). Todos eles receberam o HQ MIX.

A partir daí, ganhou espaço na Devir Livraria, que publicou Sequelas (1998, também vencedor do HQ MIX), O Dobro de Cinco (1999, Prêmio HQ MIX e Ângelo Agostini), O Rei do Ponto (2000, Prêmios HQ MIX como melhor desenhista nacional e melhor álbum de ficção, além de ser premiado no 11o Festival de Amadora, em Portugal), Transubstanciação (2a edição de 2001), A Soma de Tudo (Partes 1 e 2, ambas de 2001), Mundo Pet (2004) e A Caixa de Areia (2006), assim como alguns de seus primeiros trabalhos em literatura e teatro – cujos direitos em parte foram posteriormente comprados pela Companhia das Letras.

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Desde sua ida para a literatura, Mutarelli lançou seis romances: O Cheiro do Ralo (Devir, 2002, Companhia das Letras, 2011) , Jesus Kid (2004), Natimorto (Devir, 2004, Companhia das Letras, 2009), A Arte de produzir efeito sem causa (2008, terceiro lugar no Prêmio Portugal Telecom), Miguel e os demônios (2009) e Nada me faltará (2010).

Depois disso, por pressão da nova editora para que retornasse aos quadrinhos, criou Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente (2011). Apesar de a obra ter sido solicitada como tal, se constitui mais como uma história ilustrada do que como uma novela gráfica, que se compõe com desenhos sequenciais.

Cada página contém apenas uma imagem e o texto não combina necessariamente com a ilustração. Mutarelli trabalha a partir da fragmentação e faz uso de cortes costumeiramente utilizados em técnicas de edição do cinema que propõem a ordenação dos fatos pelo espectador/leitor.

Ao lançar o olhar para sua obra como um todo, é possível reconhecer que já as primeiras produções do quadrinhista apresentam algumas características que a acompanham até os dias de hoje.

Quadrinhos

Entre algumas de suas principais obras gráficas está Sequelas (1998), uma coletânea que reúne parte do trabalho que o quadrinhista realizou em dez anos de trajetória profissional. O material permite acompanhar o desenvolvimento de sua obra autoral, cujas primeiras criações aconteceram em 1988 com sua auto publicação em fanzines, e de sua carreira, tendo em vista que nesse álbum estão reunidas histórias que foram editadas de forma independente, publicadas em coletâneas e, outras, em revistas de circulação nacional.

Mutarelli separou sua produção em capítulos de acordo com diferentes classificações (por período de produção, características estéticas ou temáticas e meios nas quais foram publicadas). O capítulo um é dedicado às primeiras histórias em que ainda não havia um maior cuidado estético (plástico e narrativo).

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Nos demais estão uma segunda fase de sua produção (que mostra um trabalho mais minucioso), três versões para o mesmo argumento (sobre “O Nada”), as (poucas) histórias em parceria, ilustrações para RPG e histórias avulsas criadas após Transubstanciação.

A publicação é permeada por comentários em que ele próprio faz algumas análises sobre os trabalhos e observações sobre o momento de sua criação. Existem, ainda, no decorrer do álbum, alguns desenhos de criança, que analisa a partir de sua formação e de sua relação com a família.

A abertura de Sequelas, como um prólogo, diz: “Alguém me disse que antigamente o nanquim era extraído do polvo. Me parece que o polvo desprendia sua tinta quando sentia-se ameaçado. Creio que quando desenhe eu devolva ao nanquim sua função primitiva. Eu sou como o polvo”.

No desenho, um ilustrador, enquanto fuma, trabalha à mesa. Desenha algo próximo à imagem de Cristo crucificado com Maria ajoelhada a seus pés (o que, posteriormente, ao longo da obra, descobrimos ser um desenho feito pelo autor em sua infância). Temos sua visão lateral esquerda, quase de costas, posição da qual ele também nos olha, sem virar a cabeça, apenas com os olhos. Por sobre a prancha, um maço de Marlboro, isqueiro, cinzeiro, xícara de café, rádio, luminária, caixa de giz, papeis, borracha, apontador, ficha de orelhão, rolo de papel higiênico, régua, esquadro, corretivo, fluido para isqueiro, um porta-lápis-canetas-escova-abridor de envelopes-tesoura-colher, vários organizadores de CDs em que se podem ver nomes como Elomar e Carlos Gardel, no mural à parede, pequenos papeis, pôster ou foto com imagem de uma mulher, outro de um carro.

A gaveta ao seu lado esquerdo está aberta. Podemos ver mais do que detalhadamente a textura da madeira de sua cadeira. O centro da mesa é iluminado. Nas demais áreas, um denso tracejar cria o sombreamento e o forte contraste da imagem. A mesa, a parede, a moldura da janela, assim como os demais objetos e imagens dispostas ao seu redor são formados e cobertos por muitos traços paralelos. Sua roupa também. Sua pele, ainda que na área clareada

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pela luminária, ganha texturização e idade pelas muitas marcas nos braços magros, rosto e pescoço.

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Assim Mutarelli se apresenta ao leitor (Imagem 1). Seu trabalho é marcado por uma aparente aproximação com sua vida pessoal. Alguns de seus personagens se parecem com reflexos seus. No caso dos desenhos, é clara a semelhança física. Como personalidade, é possível verificar a proximidade entre criador e criatura por alguns hábitos e fatos de sua vida que recorrentemente aparecem nas histórias.

No final daquele mesmo álbum, a foto do autor: por sua diagonal esquerda, quase de costas, vemos Lourenço Mutarelli trabalhando à mesa. A foto em preto e branco nos deixa ver sua sala de trabalho com os mesmos elementos apresentados na ilustração da abertura de Sequelas, mas com maior distância e de forma muito mais organizada, limpa. O contraste entre a área iluminada e a sombra é tão grande que mal se pode distinguir suas mãos sobre o papel, assim como não se vê o que desenha. Mutarelli não nos olha (Imagem 2).

O enfrentamento entre as duas imagens, foto e sua recriação pelo desenho do autor, deixa clara a interpretação que faz da imagem e, consequentemente, de sua realidade próxima, e a subjetividade implicada ali como em suas demais criações. Mutarelli transforma a vida aparentemente banal em acontecimento não-usual ou fantástico. Expõe, por seus desenhos, sua visão de mundo, produz distorções em contextos cotidianos – ponto que se pode verificar ao analisar sua literatura.

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Entre os personagens de sua produção inicial como quadrinhista (1987-1988), concentrados no Capítulo I de Sequelas, um garoto que escreve poemas distribuídos em balas e que é despedido, resolve cometer suicídio cheirando e bebendo cola de sapateiro e que, assim, se transforma ironicamente em um hiper-herói baixinho, sem poder algum. Um piloto de avião que sai à procura de seu ídolo, O Pequeno Príncipe, e acaba sem combustível, sofre um acidente, perde os dentes e outras partes do corpo e encontra o que procurava: o menino vindo do asteróide Paraíba, o pequeno príncipe chamado Sivirino. Uma mulher que, de tanto mexer no próprio umbigo, desfaz seu nó e espalha suas tripas pelas ruas do Rio de Janeiro ouvindo a voz de deus sentenciar que “agora é tarde”. Um super-herói (paródia do Batman) que vem à Terra para ajudar uma mãe incomodada a se desfazer dos vestígios do filho que se suicidou.

As primeiras histórias têm traços mais leves, tratam-se de composições menos carregadas, mais limpas, com menos elementos. Mutarelli ainda não parece se ater à profundidade dos quadros (que se tornará algo marcante em suas histórias), apesar de algumas produções desse período trazerem essa característica (como Piegas City, já de 1988).

Logo nesses primeiros trabalhos, o autor faz uso do recurso “recordatório”, em que insere nos quadros, mas fora dos balões, uma espécie de narração da história. Algumas vezes ela é feita em primeira pessoa pelo protagonista (como em Solidão ou O Pequeno Príncipe, ambas de 1987), em outras, em terceira pessoa (como nas três versões de O Nada, de 1988, 1989 e 1994).

Mas logo seus desenhos ganham pontilhados e muitas linhas, paralelas ou convergentes, se tornam mais sujos, mais pesados, sem ainda chegar ao que se tornaria seu trabalho em A Love Story de Amor, Resignação, cordel urbano (ambas presentes na coletânea) ou Transubstanciação, por exemplo, em que os protagonistas são criaturas completamente deformadas.

Transubstanciação (1991) é considerado um “divisor de águas”, produção em que Mutarelli encontrou (e assumiu) seu estilo gráfico e narrativo. Foi a partir desse trabalho que ele começou a se dedicar a histórias mais longas, que não

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dependessem de uma revista para publicação, o que lhe abriu também as portas para o mercado editorial.

Tal como seus futuros trabalhos, essa primeira obra narrativa mais desenvolvida (e mais longa) já se divide em capítulos não necessariamente sequenciais. Desde cedo Mutarelli nos apresenta uma história com a qual nos relacionamos de maneira semelhante à proposta por outras formas narrativas, como o cinema ou a literatura moderna (influenciada, ela também, pela sétima arte). Ele faz uso de diferentes enquadramentos e sequencialidades. Há diversas cenas intercaladas, suspensões temporais, ambientações em que o protagonista, que até então ainda não nos foi apresentado, apenas permanece em cena. Acompanhamos seus pensamentos, a ação da chama de uma vela e o tango de Carlos Gardel tocando na vitrola. Ele está imóvel (Imagem 3).

Recebemos informações visuais, narrativas, mas também imagens sonoras propostas nas composições de seus desenhos e palavras.

O segundo capítulo é aberto com uma cena externa, em que o personagem é interpelado por um pedinte que o questiona sobre deus e o capitalismo. Thiago acorda do sonho na casa de sua amante.

Mutarelli constrói e desconstrói as cenas. Acompanhamos os acontecimentos por uma outra lógica. Somos apresentados a um ambiente que, em seguida, é suprimido. Essas localizações servem não apenas para introduzir os leitores no pano de fundo em que a história ocorre, em seu cenário, mas também em uma espécie de frequência em que a obra vibra.

Daquela casa, Thiago segue para a sua própria. Aos poucos, por meio dos diálogos, recebemos mais informações sobre sua origem, seu passado recente e suas intenções. Ele acaba de sair da cadeia, onde passou os últimos oito anos por ter assassinado o próprio pai, um ser bizarro possuidor de quatro braços, que era explorado pelo circo. Thiago alega tê-lo matado para seu próprio bem. Os indivíduos não mereceriam a dor e a humilhação de uma existência tão cruel. Ele sai da prisão com o objetivo de procurar pela mulher que dizia amá-lo para que ela o mate – o que seria uma prova de seu amor.

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O personagem inverte a lógica predominante, relacionando o amor e o bem desejado a alguém à supressão da vida. A morte seria a única saída para tantas mazelas e sofrimentos.

A predominância desse ambiente está nas imagens do livro. A ideia de suicídio, da prostituição, da miséria, de uma vida decadente, da violência e da religiosidade (sempre evidenciada como contraditória), está presente de forma intensa nos desenhos (Imagem 4).

No final da década de 90, quando o autor sobrevivia fazendo ilustrações para RPG, seu interesse pelo romance policial (que lia desde a adolescência), aliado à vontade de criar aventuras nos quadrinhos, impulsionou a criação da trilogia sobre o detetive Diomedes. Formada por O Dobro de Cinco (1999), O Rei do Ponto (2000) e A Soma de Tudo (partes 1 e 2, ambas de 2001, reeditadas em volume único em julho de 2012 pela Companhia das Letras), a obra constitui mais um marco na trajetória de Lourenço como quadrinhista por conformar um outro modo narrativo.

É perceptível o amadurecimento do autor nesses trabalhos. Mutarelli desenvolve uma trama policial mais complexa, em que acompanhamos a aventuras (ou desventuras) de Diomedes, um policial aposentado, detetive fracassado, que nunca desvendou um caso sequer. Ele é baixinho, gordo, careca, seus traços são deformados, sua mulher o trai com o rapaz que conserta a televisão de sua casa. Seu caráter é bastante duvidável. Apesar disso, como os demais personagens do autor, ele causa empatia com o leitor. Trata-se de uma espécie de anti-herói, que faz tudo errado, mas que possui um apelo cômico e suas razões próprias para agir do modo como age.

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No primeiro volume, O Dobro de Cinco, ele é procurado por Hermes, um homem que solicita sua ajuda para encontrar Enigmo, um antigo mágico desaparecido. A partir daí, Diomedes entra no universo do circo, de personagens bizarros e decadentes, ouve seu infeliz destino pelo tarô da travesti Melissa.

Depois de o protagonista passar por diversas situações complicadas, o livro termina sem resolução. O volume seguinte, O Rei do Ponto, dá continuidade à história. Dessa vez, um ano após os acontecimentos de O Dobro de Cinco, ele recebe Germano Cale em seu escritório. O investigador possui provas de que Diomedes tenha matado o domador de leões Lorenzo e o chantageia para que colabore com a resolução de um outro caso: um assassino em série cujas vitimas são sempre casais que parecem ter se suicidado tomando veneno para rato.

Lourenço trabalha de forma bastante minuciosa o enquadramento e a luz das cenas. A sequência de imagens gera uma forma narrativa e movimentos semelhantes aos do cinema. Mutarelli acelera ou arrasta as cenas, criando um ritmo diferente de acordo com cada acontecimento. Na Imagem 5, por exemplo, torna-se mais evidente o quão patético Diomedes é pela passagem em que Germano Cale joga uma garrafa, que gira lentamente no ar enquanto o detetive a acompanha com o olhar até que ela atinja sua cabeça. A cena acontece em slow motion.

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Além de moldar o tempo de acordo com cada situação, o autor insere trilhas sonoras em alguns trechos de seus quadrinhos, tais como a música de Tom Zé e José Miguel Wisnik (Imagem 6), que, para quem a conhece, imprime velocidade à cena, ou uma cantiga popular (Imagem 7), que confere ironia à composição. Conseguimos acompanhar as ações dos personagens e elementos desse suspense por um cenário urbano e realista, criado em um clima sufocante, tal qual nos filmes noir.

Cada quadro apresenta uma composição rica em detalhes.

A terceira parte da trilogia, A Soma de Tudo, lança Diomedes para uma aventura intercontinental. Sua viagem para Amadora, em Portugal, foi impulsionada pela participação de Mutarelli em um festival naquela cidade. Os dois volumes que compõem estes últimos momentos do policial estão esgotados e, assim como O Dobro de Cinco e O Rei do Ponto, relançados pela Companhia das Letras em 2012 com o titulo de Diomedes: A trilogia do acidente.

A trilogia, que teve um bom número de venda, foi influenciada pelos desenhos do francês Tardi, do italiano Lorenzo Mattotti, o filme Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, e a descoberta do Tarô (que posteriormente estaria em outros trabalhos seus na literatura, como O Natimorto).

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Literatura

Mutarelli diz que, em 2002, estava saturado de imagens. Foi durante um feriado de carnaval, em que sua mulher e filho viajaram, que surgiu a ideia de O Cheiro do Ralo. O texto, que ele não sabia se era exatamente um livro, foi escrito em cinco dias, corrigido em dez e enviado para a Devir, editora que publicava seus quadrinhos na época. A princípio não houve interesse em lançar o romance, pois acreditava-se que seu público era apenas para as HQs.

Em uma visita a Arnaldo Antunes, Lourenço lhe entregou uma cópia do texto. Dias depois, o compositor enviou um e-mail elogiando o trabalho. Sua editora, então, aceitou publicar a obra com um desenho do quadrinhista como capa e com o texto de Antunes na quarta capa – o que lhe daria credibilidade.

Segundo o autor, graças aos escritores Marçal Aquino e Marcelino Freire, o livro foi descoberto em pouquíssimo tempo. Menos de um mês após seu lançamento, os direitos para filmagem haviam sido vendidos.

Depois disso, sua vida mudou. Começaram a aparecer inúmeras encomendas de textos, principalmente para o teatro (gênero a que se dedica, como leitor, desde a adolescência).

O diretor Heitor Dhalia, que havia comprado os direitos de O Cheiro do Ralo, estava na pré-produção de seu primeiro longa-metragem, Nina (2004), e pediu que Lourenço fizesse as ilustrações e animações para o filme.

Para o longa feito a partir de sua primeira obra, o autor foi convidado a atuar como o segurança da loja.

A partir daí, publicou um livro por ano, número bastante acima da média da maioria dos escritores.

O relativo sucesso do filme para a dimensão de sua produção revelou o trabalho de Mutarelli. Ao contrário do que ele próprio esperava, o cinema levou os espectadores para a literatura.

Nesse primeiro livro, é perceptível como o autor enxuga suas frases em relação ao desenvolvimento que fazia nos quadrinhos para contextualizar algum acontecimento.

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Mutarelli credita essa alteração à sua aversão a longas descrições, tais como a de parnasianos que o “traumatizaram” na infância e adolescência e o fizeram gostar da leitura já com uma idade mais avançada.

Em seguida vieram encomendas de roteiro. Jesus Kid (2004) foi escrito a partir de um pedido do diretor Heitor Dhalia para um roteiro de filme de ação de baixo orçamento. Como Mutarelli explica na nota de abertura, preferiu o formato de romance à frieza daquela forma – para a qual seria, posteriormente, adaptada.

O livro conta a história de um escritor de werterns vendidos em bancas de jornal que é convidado a escrever um roteiro por um produtor e um diretor de cinema. A proposta é de que ele receba trinta mil reais e passe três meses em um hotel, sem poder sair, para narrar a história de um escritor, trancado em um hotel, em crise criativa. Como Max e Fabio, os jovens cineastas, enfatizam inúmeras vezes, cinema é ação e o roteiro deve ter muita ação.

Eugênio de Souza e Silva (que assina sob o pseudônimo de Paul Gentleman) assume a personalidade de seu principal personagem, o caubói Jesus Kid, que, por vezes, encarna em seu corpo. Durante toda a narrativa o escritor hipocondríaco o evoca para encarar situações que considera difíceis, tais como, logo no primeiro parágrafo do livro, entrar no restaurante do hotel e conversar com os dois cineastas:

Não consigo respirar. Abro a boca buscando ar. Transpiro. Tremo. O lugar me oprime, estou parado na porta do restaurante. Licença, um homem atrás de mim diz. Dou passagem, ele entra. Meu coração bate desorientado. Acho que vou ter um enfarte, ou um derrame. Tomo um comprimido amarelo. Procuro me concentrar. Penso nos trinta mil. Peso minhas dívidas. Preciso entrar.

Penso em Jesus. Evoco Jesus Kid. Jesus ajeita o chapéu de forma a esconder os olhos. Jesus Kid entra. Jesus Kid é frio. Caminha pelo suntuoso restaurante. Nada o intimida. Jesus Kid não tem medo de nada. Jesus caminha pelo restaurante. Não está tranquilo porque sempre está alerta. Todas as pessoas no restaurante são bonitas e saudáveis. Todos no recinto possuem pelo menos trinta e dois dentes. Brancos. Eu sou feio. Meus dentes são amarelos. Jesus Kid tem o rosto marcado e uma beleza agressiva. Procuro esconder meu desconforto. Jesus Kid nunca demonstra emoção. Seu rosto é sempre igual. Jesus só ri quando morre ou quando

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mata. Como nunca morreu, até hoje só sorriu quando matou. Jesus faz um delicado carinho em sua Smith & Wesson cabo de madrepérola. Agora sorri por mim. Procuro os dois idiotas.

O restaurante está cheio. É hora do almoço. Todos são belos e bem sucedidos.

Homens de negócio, mulheres de negócios. Todos fazem seus pedidos num tranquilo francês. Eugênio? Me viro. Eugênio? Vejo dois jovens alinhados. Sorrindo com seus trinta e dois brancos dentes. Eles têm, aproximadamente, um ano de vida para cada dente. Eugênio? Eles repetem. Percebo um volume de A Balada

dos Nervos sobre a mesa. Engulo seco. Deixo que Jesus atue por

mim. Jesus Kid os saúda tocando a aba do chapéu com o indicador. Eles sorriem (p.12-13).

Além da dificuldade refletida pelo protagonista em criar ação em uma história que se passa dentro de um hotel, os contratantes inserem, a cada dia, novos personagens e situações que devem estar presentes na produção para que consigam verba de algum patrocinador ou outros benefícios. No roteiro devem haver pin-ups, batatas fritas em saquinho, um halterofilista e, como não poderia faltar em uma produção brasileira, uma favela (apesar de o filme se passar dentro de um hotel).

O livro é uma ironia ao universo das produções cinematográficas. O autor se remete, inclusive, a fatos referentes à encomenda desse mesmo trabalho – como fica evidente pela nota de abertura escrita por Heitor Dhalia. A encomenda, no entanto (ou evidentemente?), nunca chegou a ser filmada.

Seu terceiro trabalho na literatura é O Natimorto (originalmente lançado em 2004 pela editora Devir e relançado pela Companhia das Letras em 2009), que também foi criado por encomenda.

Dirigido por Paulo Machline (2008), o filme apresenta Mutarelli como o Agente, protagonista que se encanta pela Voz, interpretada por Simone Spoladore, uma cantora cujo canto, de tão puro, é inaudível aos ouvidos humanos. Ele propõe a ela que vivam trancados em um quarto de hotel. É ali que seus distúrbios começam a emergir.

Esse livro ainda não apresenta definições quanto aos espaços. Temos poucas referências aos locais em que acontece cada cena: rodoviária, casa, hotel.

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O livro é narrado em primeira pessoa e entremeado por diálogos. Seu formato se aproxima ao de uma peça de teatro, para o qual foi adaptado e dirigido por Mario Bortolotto (2007). Antes de cada fala está escrito o nome do personagem que a pronuncia: “A Voz”, “O Agente”.

Em seguida veio A Arte de produzir efeito sem causa (2008), que lhe rendeu o terceiro lugar no Prêmio Portugal-Telecom, dedicado a obras em língua portuguesa.

Trata-se do primeiro trabalho na literatura em que Mutarelli utiliza a narração em terceira pessoa. Nessa obra, acompanhamos Junior, um homem que pede demissão do emprego, abandona a mulher e o filho e volta a morar com o pai. Sem perspectiva, ele passa os dias deitado no sofá, fumando, bebendo café e espiando a estudante que aluga um quarto no apartamento. A construção narrativa se dá de forma a nos levar por seu raciocínio ilógico. Junior desenvolve um quadro psicótico, acredita em uma realidade criada por ele próprio na qual recebe cartas e encomendas anônimas pelos Correios que carregam mensagens encontradas apenas ao relacionar suas letras.

Miguel e os demônios (2009) foi escrito por encomenda a partir do argumento: um policial que se apaixona por um travesti. Desta vez, o destino do protagonista parece se desenvolver de acordo com o que lhe revela um colega de trabalho envolvido com uma seita que cultua Lúcifer. Apesar de não haver resoluções ou determinações sobre a veracidade desse fato dentro da obra, os acontecimentos se desenrolam dentro do que havia sido anunciado pelo policial.

A ideia era, novamente, de que o autor desenvolvesse a narrativa em forma de roteiro. É perceptível, no início do livro, a tentativa de Lourenço em roteirizá-lo. Ao longo da história, no entanto, as especificações vão se perdendo, se tornando mais escassas. O autor considera difícil aprofundar os personagens em roteiros. Prefere criar o romance para que depois seja reescrito.

Não por acaso, essa é sua narrativa mais cinematográfica. Ele descreve minuciosamente as cenas e os personagens, produz planos, indica closes, cortes, ações, sons, localizações, cita nome de ruas, bairros, datas:

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Calor infernal. Dezembro. Interior de um Fiat Uno branco modelo 94. Rua Domingos de Morais, Vila Mariana. Fachadas se alternam. Pequenas lojas, pequenas portas, prédios comerciais e residenciais. Blocos de três ou quatro andares. Papai Noel por toda parte. Múltiplo. Ubíquo. Papai de plástico, papai de gesso, papai de papelão. Postes e molduras cobertos de lampadinhas. Pisca-pisca (p.5-6).

Tudo é muito determinado, tal qual no roteiro, porém se constrói no formato de romance, em texto corrido.

Lourenço faz inversão temporal ao embaralhar cenas e utilizar flashbacks, indicados durante o texto pela coloração, iluminação e edição da cena:

Sépia.

Terreno baldio. Imagem borrada, luz difusa. Lembrança.

Um menino solitário brinca com um graveto. Miguel, menino. Detalhe da mão do menino erguendo o graveto para o céu. O graveto acompanha o percurso de aviões que passam. Esquadrilha da Fumaça. O menino tropeça em algo e cai. Percebe um cão vira-lata morto a seus pés. O menino se levanta e com o graveto cutuca, levemente, o cão (p.9).

As frases, como em seus demais livros, vão se completando – não a despeito de uma pontuação fragmentária, mas justamente por conta do ritmo que ela impõe à leitura.

Nada me faltará (2010) se inicia com o retorno de Paulo, um homem que havia sumido um ano antes com sua esposa e a filha pequena. Ele volta sozinho à casa da mãe sem se lembrar de nada. A trama se desenrola pela tentativa de todos ao seu redor em fazer com que lembre de algo, retome sua vida, o trabalho ou se preocupe com sua família, da qual demonstra (e diz ao psicoterapeuta) não sentir falta nenhuma.

O livro é construído exclusivamente por diálogos, que constituem cenas bastante delimitadas. Algumas mais longas, outras muitas extremamente curtas.

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Não há nenhuma descrição, mas o fato de todos os personagens terem nomes próprios ajuda a localização de cada acontecimento e o acompanhamento da história.

Até surgir o 12o capítulo (p.97):

“E aí?

E aí?”

A suspensão, tal qual Mario de Andrade já inserira, na década de 1920, em Amar, verbo intransitivo, produz no leitor uma maior experiência de fragmentação. Além da estruturação do livro em cenas, assim como no cinema, suspende-se da narrativa seu ritmo linear de trechos ordenadamente intercalados. O leitor-espectador é, mais uma vez, surpreendido pelo deslocamento e pela supressão de um possível sentido previamente estabelecido pela obra.

A poética do autor

“(...) eu nada entendo, mas sinto tudo, da forma mais intensa possível” (Sequelas, p.16).

Podem-se verificar diversas tensões que perpassam a produção de Mutarelli desde os quadrinhos até seus textos para o teatro e a literatura. O autor cria um mundo específico em estreita relação com o grotesco, que mistura o estranho e o bizarro com o humor a partir do recorrente uso da ironia.

Muitos de seus leitores acabam por relacionar o que desenhou e escreveu à sua personalidade. Há, entre suas obras, algumas histórias autobiográficas ou referências a episódios que se passaram com ele próprio. A maioria delas, no entanto, tem caráter puramente ficcional, apesar de seguirem o tom e o clima das experiências que Lourenço vivia em casa fase (entre elas uma depressão

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profunda e a síndrome do pânico, que o impulsionaram a criar Transubstanciação).

O autor foi convidado a atuar em trabalhos feitos a partir de obras suas – o que acabou, também, por fortalecer a ideia de que fosse ele mesmo o protagonista de seus livros.

No longa O Cheiro do Ralo, o autor fez o papel do segurança da loja, o qual, no livro, é um personagem bastante coadjuvante. O diretor Heitor Dhalia valorizou sua participação no filme. A escolha do escritor, baixo, magro e franzino, para o papel tornou o personagem mais irônico.

Já o longa O Natimorto (2009), de Paulo Machline, foi protagonizado por Mutarelli na interpretação de um agente que propõe a uma cantora (cuja voz, de tão bela, é inaudível aos ouvidos humanos) que passassem a viver trancados em um quarto de hotel.

Entre convites para curtas-metragens e peças de teatro, participou de O que você foi quando era criança, peça de Mario Bortolotto a partir de texto seu, e do projeto Escritores em Cena, do Itaú Cultural, com curadoria do escritor Marcelino Freire, em que foi dirigido por Nilton Bicudo sobre seu texto O Outro. Esse trabalho foi criado a partir de um relato dramático dos últimos minutos de vida de seu pai.

A presença do absurdo na obra do autor não a afasta da percepção mais imediata da vida cotidiana. Pelo contrário, é justamente nessas situações ficcionais muitas vezes grotescas que a realidade mais salta aos olhos do leitor. Assim o é quando Junior, protagonista de A Arte de produzir efeito sem causa, passa a delirar e relacionar elementos de cartas com mensagens secretas vindas do além e destinadas a ele. A construção que o escritor faz nos leva a acompanhar esse modus operandi do personagem, seus delírios, os sentidos que cria para os acontecimentos.

Um ponto marcante de seu trabalho na literatura são os diálogos, cujo desenvolvimento se deve em grande parte ao exercício dos balões nos quadrinhos. A trilogia de Diomedes, por exemplo, contava histórias complexas por

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meio de um personagem muito limitado. Para que a obra funcionasse, Mutarelli a desestruturou em diálogos cotidianos, mais simples. Esse processo é entendido pelo autor como fundamental para suas obras posteriores.

Tanto assim que Nada me faltará é constituído exclusivamente por diálogos. Os personagens todos possuem nomes, pronunciados apenas nas falas, e, mesmo sem outro tipo de indicação, é possível identificar os acontecimentos e quem são os interlocutores em cada conversa.

A maior parte de seus quadrinhos é feita em preto e branco com a técnica de nanquim e extremamente marcada pela riqueza de detalhes das composições. Em geral, cada quadro é formado por inúmeras imagens que conferem peso e dramaticidade à narrativa.

Suas HQs se aproximam de um estilo expressionista (influência assumida pelo autor) ao criar deformidades e distorções, fazer o uso constante de contrastes por meio de jogos de luz e sombra. Essas características plásticas são reiteradas pela presença, em suas histórias, de temas como sexo, drogas e escatologias sempre protagonizados por personagens perversos ou com outros distúrbios psicológicos, que criam uma ambiência por vezes próxima ao fantástico ou surreal.

Tratam-se de figuras cheias de conflitos e questões existenciais, deprimidas ou depressivas, que lançam ao mundo um olhar trágico e pessimista.

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Ao mesmo tempo, o autor vê em seu desenho uma aproximação com a obra barroca. Essa influência se deveria à organização imagética a partir de muitos elementos (aparentemente incompletos e fragmentários), não essenciais, tendendo à assimetria e a não preocupação com uma suposta clareza ou comunicação direta. Mutarelli procura preencher todos os espaços vazios da página (Imagem 8).

Essa proximidade pode ser constatada também no dinamismo, movimento, nos (já citados) contrastes de seus desenhos, além da presença temática concomitante da vida material e espiritual, que, no trabalho de Lourenço Mutarelli, é criada pela relação entre seres humanos e figuras transcendentais, que estão mais próximas à monstruosidade do que à ideia religiosa de um deus. Não existe, aí, uma dicotomia entre esses personagens. Todos eles têm um lado humano e sobre-humano. Existem em sua obra seres antropomórficos, mas que misturam figuras míticas a criaturas monstruosas, com proporções alteradas e membros distorcidos, possuidores de engrenagens em seus corpos (Imagem 9).

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O muito, complexo

Outra característica que acompanha o trabalho do autor já se encontra nos primeiros materiais gráficos apresentados em Sequelas: a presença denotada de múltiplas referências, principalmente artísticas. Ele faz questão de incluir em seus desenhos e nas falas dos personagens o nome de compositores e instrumentistas, escritores, teóricos, programas de televisão. A presença desses referenciais conforma grande parte da personalidade de seus protagonistas. Eles se criam na cadência em que essas referências nos vão sendo apresentadas – muitas vezes com extrema ironia.

A verdadeira história de João (1988) é dedicada a Jane e Herondy, dupla de cantores românticos da música brasileira daquela mesma década. Em Transubstanciação, o personagem ouve um tango de Carlos Gardel enquanto aguarda a chama de uma vela se apagar, fuma enquanto na imagem aparecem nomes de bandas e compositores, trechos de músicas, notícias de jornais, orações, expressões utilizadas em rótulos de alimentos, entre tantas outras (Imagem 10).

Em seu primeiro romance, O Cheiro do Ralo, o narrador cita de Valêncio Xavier a Paul Auster, Ferréz, Freud, programas do Discovery Channel e Cartoon Network. Em Miguel e os demônios, um dos personagens mistura inúmeras referências históricas para justificar sua crença numa seita demoníaca.

-É de possessão que tratamos! ‘O meu caminho é o do desenvolvimento das possibilidades escondidas do homem. É um caminho contra a natureza e contra Deus.’ Que caminho é esse que a teosofia trouxe da Índia anunciando o novo messias Jiddu? Quem é Yehoshua nascido em Nazaré quatro anos antes de

Nosso Senhor? O que levou Constantino em Niceia, em 325, a

adotar essa fé? Por quantas moedas Kissel Mordechai serviu a um estranho senhor? E que me diz de Cali, que colecionava cabeças, patrona dos tugues, seus coletores? Que estranho Deus é o teu, Miguel? (p.106).

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A presença desses muitos elementos concretos contribui para a construção de um pano de fundo complexo, por vezes caótico, em que o leitor é apresentado à possibilidade de múltiplas conexões.

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Somado ao enclausuramento espacial dado em diferentes histórias suas, espaços restritos pelos quais os protagonistas circulam, essas muitas citações se constituem como rebatedores, paredes de um labirinto pelo qual o leitor cambaleia e acompanha as diversas ligações elaboradas pelo raciocínio perturbador de seus personagens.

O humor, a paródia, a ironia

Essas múltiplas referências presentes em quase todo o trabalho de Mutarelli, além de servirem para a construção da personalidade de seus personagens e criar ambientações, servem, principalmente, como base para o humor que permeia seus quadrinhos e, mais ainda, sua produção literária.

De autores da literatura nacional e estrangeira a cantores bregas, de tango, canais de televisão a cabo, programas de ginástica, passando, ainda, por cantigas e parlendas da cultura popular, o autor faz paródias e constrói trocadilhos que contribuem para seu humor ácido: “Se essa bunda se essa bunda fosse minha” (2011a, p.21).

Além da função exercida por esses elementos externos à obra, seus personagens normalmente são, eles próprios, patéticos, ou agem de forma a ironizar seus interlocutores, as situações que vivenciam ou verdades compartilhadas:

Ele entra.

Ele faz uma careta. Essa será a nova senha.

Para entrar tem que fazer cara feia. É o preço.

Este é o preço para sentir o cheiro do inferno. Nossa senhora! Que cheiro ruim!

Fede, não fede? Ô! E como. Você come? O quê?

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Suas frases são irônicas e estabelecem jogos com as palavras e seus sentidos. O nome do caubói Jesus Kid é sempre usado nesse sentido: “Jesus só ri quando morre ou quando mata. Como nunca morreu, até hoje, só sorriu quando matou” (2004, p.12) ou em “Vou ao banheiro e lavo o rosto e ajeito os cabelos. Batem à porta. Evoco Jesus. Prometo reconciliação. Jesus não vem” (idem, p.56).

O humor ácido de Mutarelli fortalece o caráter pessimista de suas histórias, ridiculariza seus personagens, que estão sempre passando por algum tipo de sofrimento ou proporcionando sofrimento a outros. Ainda assim, não existe uma dualidade de caráter, uma dicotomia entre bem e mal. A ponte entre ambos os pólos muitas vezes é estabelecida pela piada ou pela ironia. Em sua obra, é possível rir de situações angustiantes.

Na obra de Mutarelli, no entanto, as referências artísticas ou populares não existem para serem ironizadas e ultrapassadas por aquilo que ele cria. Pelo contrário, o autor as utiliza como ferramenta para criar ambiências ou ridicularizar personagens e a obra a si mesma.

O vazio

O próprio autor questiona, em Sequelas, o motivo para ter feito três versões de um mesmo argumento para uma HQ que tematiza o “vazio”.

Eu queria ver a sua cara. Idealizava um ‘ser’, personificava, um ser espacial devido à vastidão do Nada, o Vazio como substância, invertendo os valores, pois é ele quem nos reveste, envolve, todo o espaço, a composição do infinito. Nós é que somos a lacuna, o vazio. O Vazio tem a dimensão do infinito (MUTARELLI, 1998, p.75).

Tratam-se de três histórias (I, II e III versões) intituladas O Nada (1988, 1989 e 1994), que contam sobre o encontro de homens solitários, entediados, com uma aeronave e com um “inimigo interplanetário” ou um “invasor interplanetário”. Vestido como astronauta, ele chega ameaçadoramente. Ao quebrar seu capacete, esses homens não encontram nada, assim como nada há dentro da aeronave.

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Fim da história. “E assim como veio o estranho ser, ou não ser, partiu. Deixando apenas uma insuportável sensação de que sempre esteve e continuará presente dentro de nós...” (idem, p.96).

O mesmo tema está presente em outras obras. Geralmente seus personagens adotam comportamentos incompreensíveis ou obsessivos sem motivos aparentes ou como consequência de fatos banais. Assim o é em O Cheiro do Ralo e O Natimorto. A presença do absurdo, que acompanha todas as histórias, desde a situação mais corriqueira à mais fantástica (num sentido underground, sujo), traz consigo o “vazio” desses personagens. Os diálogos muitas vezes estão centrados na argumentação em que um dos interlocutores se pauta pela razão e o outro insiste no non sense, em argumentos que seguem uma lógica própria, perturbadora, que colocam personagens e leitores em um labirinto.

É o que ocorre em A Arte de produzir efeito sem causa, em que Junior, ao longo da narrativa, passa a se comportar de modo psicótico, relacionando acontecimentos, letras de cartas e bilhetes, achando mensagens subliminares em coisas aparentemente banais. O leitor é levado a esse ambiente, acompanha Junior (cujo nome já remete ao próprio pai, à sua sombra e dependência), entra em sua lógica, passa a pensar em seu ritmo.

A presença do nu e do sexo é outra característica marcante de sua obra. Já em seu trabalho gráfico se evidencia a nudez, a aparição de órgãos sexuais (principalmente o masculino, o falo), em corpos sempre decadentes, de seres sobrenaturais, homens ou mulheres (Imagem 11).

Seus personagens estão quase sempre à procura de sexo. Em O Cheiro do Ralo, por exemplo, em algumas negociações com suas clientes, o narrador propõe que tirem a roupa ou que lhe façam sexo oral em troca de seu dinheiro.

Nas poucas vezes, em toda sua obra, que se tratam de relações amorosas, elas não são correspondidas. Nos demais casos, essas aparições dizem respeito à atração carnal, da satisfação de um desejo físico, não intermediado por sentimentos. A crueza de um mundo real, quase aos moldes naturalistas, não se

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reduz, no entanto, à verossimilhança do concreto e factual – ainda que claramente ficcional.

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Paradoxalmente, as situações, quanto mais fantasiosas, mais se aproximam de um forte sentido de realidade. Mutarelli cria metáforas que refletem dimensões muito presentes na vida humana, como a solidão e a falta de sentido na vida (Imagem 12). 

Os personagens criados pelo autor estão entre o humano e o fantástico. A mescla entre o real com a ficção torna mais evidente as contradições e o absurdo da condição humana tão presentes em sua obra.

Em O Cheiro do Ralo, o protagonista se apaixona pela bunda de uma garçonete e passa a querer comprá-la para si. Aquela determinada parte do corpo se torna para ele um fetiche. Quando a garçonete o chama para “tomar uma cervejinha” ele se assusta e nega o convite. Não lhe interessa se aproximar dela de outra forma, mas sim de pagar para vê-la, possuí-la.

O desnudamento de seus personagens acontece não apenas no sentido concreto. Pelo contrário, significam mais a inexistência de sentimentos ou pudores, de valores moralistas, significam o vazio de uma existência mais próxima da morte do que da vida (entendida, esta última, no sentido da criação Humana). Lourenço arranca-lhes a roupa, mas também a pele, a carne, os órgãos, os ossos (Imagem 13). Seus personagens são, por vezes, moribundos, por vezes, assassinos, quando não os dois ao mesmo tempo.

A perversidade está presente em sua obra de diferentes formas. Seja pelo ato de violência física (como em diversos quadrinhos e em alguns episódios de seus livros, como em O Cheiro do Ralo, Jesus Kid, Miguel e os demônios e Nada me faltará), seja de formas mais escamoteadas, como nos pensamentos ou nas provocações do protagonista a seus interlocutores em O Cheiro do Ralo.

Os personagens de Lourenço Mutarelli estão sempre em situação degradante, de humilhação, impostas por outros ou por si próprios, eles apanham, são xingados, não têm dinheiro, são sujos, eles fedem. Eles sempre sofrem.

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O transcendental, a magia, os distúrbios psicológicos

A construção do ambiente em que acontecem as histórias se dá também pelos temas. Desde seus desenhos de criança – alguns dos quais espalhados pelas páginas de Sequelas -, Mutarelli aponta para elementos religiosos ou mágicos, para a existência de um (ou de vários) deus(es) ou para a figura do pai, da autoridade. Sejam eles na própria figura de Cristo (como nos desenhos de sua infância), sejam em outros personagens que têm alguma relação com o transcendental, é a eles que se recorre na busca de ajuda e solução para as questões dos demais personagens. Não se trata de procura pela redenção no sentido de perdão ou ascensão ao céu, mas de sanar problemas imediatos ou acabar com o sofrimento por meios mais drásticos, como a morte.

Mesmo quando se trata da própria figura de deus, nos quadrinhos, ele é sempre algo mais próximo a um monstro ou a um animal, uma figura bizarra, grotesca. Assim acontece em Aquela Velha História, de 1989, em que um ser (que possui estrutura corporal de um humano, com braços, pernas, mãos, pés, tórax, pênis, mas características de inseto, asas, antenas, boca afilada) bate à porta de Deus - semelhante à sua imagem - à procura de dinheiro para sustentar seus filhos. Na casa existem sacos de dinheiro espalhados pelo chão, mas o bicho apenas zomba do pedinte: “Á ti fodê!”.

Depois de todas as humilhações, o músico desiste e vai embora. Deus o chama da porta de casa e lhe entrega o dinheiro, repetindo: “Você pode falar que foi tudo, menos fácil! Fui durão, não fui? Não foi fácil, hein?” (Imagem 14). As conquistas demandam sacrifícios.

O próprio título Transubstanciação se remete diretamente à religião cristã. A palavra designa a transformação do pão e do vinho no corpo e no sangue de Jesus Cristo, levando à sua “real presença” no ato de comunhão, em que fieis rememoram o renascimento de Cristo.

Existem algumas marcas religiosas que acompanham seus desenhos, como, principalmente, o crucifixo ou Jesus Cristo crucificado.

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Referências

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