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3. HISTÓRICO–DISCURSIVO

3.6. Século XVIII: A Era Imperial

O vermelho reinou no século XVIII. Invadia os rostos e até mesmo os olhos. A maquiagem era o cartão de visita. Ninguém ousaria aparecer na corte sem pintura. Era usada até mesmo para dormir. Imaginem como estavam ao acordar! Rosto natural, nem pensar! O consumo de ruge era tamanho que pensaram até mesmo em estipular um imposto sobre cada pote vendido em benefício das viúvas pobres de oficiais.

Versalhes foi o palco onde a realeza colocava em cena verdadeiros monumentos capilares. Os passeios em carruagem só podiam ser feitos se estivessem ajoelhadas, tamanhas eram suas torres capilares. Em 1778, a duquesa de Chartes colocou em sua peruca, entre gaze e laços de fita, um boneco nos braços da ama-de-leite, provavelmente uma representação de seu filho.

Embora a França fosse o palco de todos os excessos, a moda da maquiagem conquistou também a Grã Bretanha, de tal maneira que o Parlamento fez circular uma lei que punia com o mesmo rigor que o crime de feitiçaria a sedução advinda pelo uso de cosméticos, perfumes, dentes e cabelos artificiais.

O aparelho repressor e ideológico do Estado (ou, a ideologia vigente), exercendo controle através das ameaças verbais e castigos físicos, gera conflitos e angústias para esse sujeito, que se vê dividido entre o medo e o desejo de produção do corpo de acordo com seu desejo. Conhecedoras de sua condição na ordem da sociedade, mulheres materializam sua luta no confronto do gesto de “embelezar-se” com as sanções que a ideologia vigente impunha a seu sexo.

É claro que essa lei não vigorou na Grã Bretanha, e revistas como a Lady´s Magazine aproveitavam para discursar em prol da arte de se pintar. As mulheres das colônias americanas também eram apreciadoras e usuárias dos ruges europeus.

A fúria dos ateus e revolucionários viria sufocar a aristocracia no rubro de seu próprio sangue. Porém, antes que isso viesse a acontecer, a beleza retoma a sensibilidade, a espirituosidade, e a intimidade, características que influenciariam o século seguinte. Influenciados por Rosseau, Diderot, Beaumachais e Milton, entre outros, o Século das Luzes retiraria de Versalhes a Veneza e Londres a rigidez dos espartilhos, a monotonia da pompa e traria a paixão pela simplicidade, pela emoção delicada, as graças naturais e os sentimentos verdadeiros. Para ser bela não, era

preciso ter traços regulares, apenas um espírito vivaz, um ar gracioso e picante, uma alegria juvenil.

Juvenilidade (símbolo de ingenuidade, pureza), sentimentos verdadeiros, simplicidade, graças naturais são características que parafraseiam ou remetem ao discurso do século XIV. Formação discursiva religiosa que valorizava as qualidades do espírito em detrimento do corpo.

A única cor que poderá dar cor ao rosto dessas mulheres, pregava Gregório de Nazianza, é a cor do rubor, “vermelho de bom tom (...) que sobe ao rosto das virgens e das mulheres casadas”.

A beleza é sonhadora e reflete-se em corpos cheios, roliços, em rostos doces e delicados, em lábios redondos e queixo pontudo e em tez de porcelana. Abolindo-se o excesso da maquiagem, laços de fita, pérolas, cambraias enfeitavam os corpos lânguidos. Os tecidos de cetins fluidos cobriam seios fartos e cinturas finas, fazendo entrever as dobrinhas macias.

Os cabelos, até então empoados e cacheados apareceriam com mechas cuidadosamente despenteadas, pintados por um louro acinzentado. Laços de fitas ou uma simples pluma espetada numa mecha enfeitavam as cabeças. A França ditava a moda e a Europa toda se curvava aos seus “ditames”. O retrato visando captar esse momento livra-se de uma representação codificada, e passa a representar a sensibilidade vista nos olhares das damas, um olhar que poderia ser irônico ou perdido, ou a cólera de um franzir de nariz. Era preciso captar a essência, a transparência, a naturalidade.

Se na França a beleza feminina era a menor das preocupações da Revolução, o retorno ao natural era irreversível. Isso será acentuado por uma corrente higienista que permitia à burguesia ascendente afirmar-se pela limpeza sobre os camponeses e uma novíssima classe operária. Corpo limpo e saudável passa a significar o ideal de beleza aceitável. Um corpo limpo significa o poder de uma minoria, que podia usufruir o banho, numa época em que água acessível e produtos de limpeza eram acessórios de luxo. Limpeza e beleza se assimilam. Neoclássica, a mulher do Consulado e do Primeiro Império tinha a simplicidade fria e perfeita da razão, não mais aquela lasciva e desordenada punida pelo cadafalso.

O termo lasciva pode ser ligado a concupiscência, sensual, libertino e impudico – termos referentes a uma beleza rechaçada na Idade Média e também no século XVIII.

Preferia-se a morenice ao louro dos cabelos, que eram arrumados no alto e caiam em cachos curtos sobre um rosto de pele alvíssima. O porte era nobre, o peito elevado e pequeno, ombros e braços despidos e visíveis sob os finos véus dos vestidos-toga inspirados nas estátuas gregas. Madame Recamier, com seus cabelos cortados e cachos loucos de um penteado chamado “à Tito”, representava bem essa época de estilo neoclássico. Maria Antonieta que não usava maquiagem, nem tingia os cabelos, dá o tom do fim do século.

Pêcheux, ao teorizar sobre as condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção, diz “que essas condições contraditórias são constituídas, em um momento histórico dado, e para uma formação social dada, pelo conjunto complexo dos aparelhos de Estado que essa formação social comporta”. Isso tem a ver com as relações de “contradição-desigualdade-subordinação” entre os sujeitos de uma determinada formação social. Em suas palavras:

Na verdade, seria absurdo pensar que, numa conjuntura dada, todos os aparelhos

ideológicos de Estado contribuem de maneira igual para a reprodução das relações de

produção e para a sua transformação. De fato, suas propriedades regionais – sua especialização ”evidente” na religião, no conhecimento, na política, etc. – condicionam sua importância relativa (a desigualdade de suas relações) no interior do conjunto dos aparelhos ideológicos de Estado, e isso em função do estado da luta de classes na formação social considerada.129

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PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso. Uma Critica à Afirmação do Óbvio. 3ª. Edição, Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997, p. 145.

ROMANTISMO

A princesa de Broglie. A beleza romântica tinha a pele pálida e os cabelos de ébano, emoldurada por um rosto sereno. (Detalhe, J.A.D. Ingres, 1853)