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O sétimo aprendizado extraído do ato de observar: a prática do estranhamento de minha própria experiência.

TEMAS QUE SERÃO ABORDADOS

2. Minha experiência como estudante-pesquisadora dentro do contexto escolar.

2.9 O sétimo aprendizado extraído do ato de observar: a prática do estranhamento de minha própria experiência.

Como já disse brevemente no capítulo anterior, trabalho em uma indústria da cidade de Rio Claro como auxiliar de produção. Quando ingressei na universidade, eu já trabalhava nesta firma havia dois anos. Eu estava cansada desse ambiente industrial, pois para mim não se mede nem se quantifica a produção humana, homens não são máquinas, não podem ser programados, não possuem manuais de instrução, muito menos são insensíveis. O discurso do meu ambiente de trabalho era o já conhecido discurso competitivo do mercado industrial, pautado nas teorias Fordista, Taylorista e Toytotista12, essa última conceitua um novo perfil para o operário industrial, ela transforma o trabalhador meramente executor de sua função (brilhantemente ilustrado por Chaplim no filme “Tempos Modermos” 13) em um colaborador proativo, versátil e multifacial. Eu queria mudar minha realidade profissional, mas mudar de verdade, o que me dava forças era a possibilidade do curso de pedagogia me trazer novas perspectivas, ampliar meus horizontes.

Antagônico ao discurso da indústria, na universidade, a discussão era sobre a exploração do proletariado pela burguesia industrial sob a visão de Marx, as concepções de Gramsci, de Bourdieu e Passeron, todas tão críticas com relação tanto ao discurso exploratório da indústria capitalista quanto à estrutura e funcionamento da escola. Essa transição entre contextos tão antagônicos entre si me deixava exausta, me causava um cansaço maior que o cansaço do meu corpo que se dava pela minha longa jornada de atividades. Não sei dizer se transitar entre tantos contextos diferentes e opostos foi um sacrilégio ou um privilégio, mas essa transição me rendeu várias inquietações e muitas incertezas.

Conforme eu fui vivenciando essa árdua etapa da minha constituição profissional eu fui aprendendo a observar a minha própria experiência e refletir sobre ela, é a ideia de estranhamento de Ginzburg (2001) aplicada a mim mesma. É fato que projetava na escola e na educação a minha alforria da condição de proletária. Agarrava-me ao fato de que na escola eu não seria cobrada com números e gráficos de desempenho, acreditava que na escola a

12Ver conceitos de Fordismo, Taylorismo e Toyotismo.

13Modern Times (Tempos Modernos, em português) é um filme do cineasta britânico Charles Chaplin lançado

matemática não funcionava em prol daqueles que maquiavam números e estatísticas em busca de bonificações ou ascensão profissional. Mas conforme fui transitando entre a realidade da indústria e a realidade da escola o que constatei me deixou triste, decepcionada e com uma imensa vontade de desistir de ser uma futura educadora. Percebi uma semelhança assustadora entre o discurso da indústria e o discurso da escola, chegando ao ponto de ambos usarem até as mesmas terminologias. Operário polivalente e professor polivalente, gráfico de desempenho do operador e gráfico de desempenho do professor, metas produtivas para o operador e metas de produção conteudista para o professor, bonificação para o operador mais produtivo e bonificação para o professor que aprova mais alunos, reciclagem e treinamento para capacitar o operador e reciclagem e treinamento para capacitar o professor. As coincidências eram tantas que eu comecei a me preocupar, a me questionar se talvez eu não estaria trocando seis por meia dúzia, ou seja, deixando uma realidade de manipuladora de peças para uma realidade de manipuladora de crianças. As semelhanças se tornavam cada vez mais acentuadas, o mesmo soar do sinal que me chamava para mais uma jornada de trabalho era o mesmo que chamava os alunos para sala de aula também. O intervalo de quinze minutos, tempo cronometrado para comer um lanche, escovar os dentes, usar o sanitário e voltar à execução da tarefa, presente tanto no cotidiano fabril quanto no cotidiano escolar. O preenchimento de formulários de controle de qualidade e produção que eu preenchia na fábrica era idêntico aos relatórios diários de atividades que a professora da sala, na qual estagiei, tinha de preencher diariamente. A substituição da mão de obra humana pelo robô na indústria causava aos operários o mesmo medo que o ensino à distância causava nos professores, o medo de perder seu ofício, seu ganha pão, medo de perder o seu valor. Minhas colegas operárias por não aguentarem a pressão e cobrança vinda da gerência e da supervisão, chegavam a apresentar quadros de depressão, necessitando se afastar do emprego e viver à base de antidepressivos e isso também acontecia com muitas professoras da rede pública. Ouvi relatos, através das professoras da escola em que estagiava, de professoras que necessitavam de licença para tratar a depressão causada pela estafa mental, fruto da pressão vivida diariamente dentro da sala de aula. Enchi-me de tristeza ao deparar-me com todas essas semelhanças entre contextos que deveriam por excelência serem distintos um ao outro. A única distinção que naquele momento eu conseguia enxergar entre um lugar e outro foi que um sacrifica corpos, outro sacrifica mentes. Naquele momento eu me imaginei sacrificando as mentes dos alunos, transmitindo um conteúdo homogêneo, desrespeitando a heterogeneidade existente em cada aluno meu, me imaginei me sacrificando, colocando de lado minhas expectativas e minhas concepções e cedendo ao discurso de desqualificação do ato de educar.

Hoje, em meu encontro com minhas anotações, meus registros e percebo que por mais que estas coincidências existam de fato, eu direcionei meu olhar para aquilo que me afligia, e o que eu vi, pode ter sido um reflexo de meus próprios anseios, meus medos, minhas incertezas. Enxergo, neste trabalho, a importância de refletir sobre a minha própria experiência. E consigo enxergar como foi importante, para mim, ter desenvolvido a prática do estranhamento de tudo o que me aconteceu, de olhar a escola com olhos de quem vê algo pela primeira vez, desse modo pude identificar pontos e recolher dados que me permitiram repensar a educação.

3. Meu preparo para o próximo estágio: incertezas e um novo olhar direcionado ao