• Nenhum resultado encontrado

5.1 Família Borboleta “Castanha Vermelha”

5.1.1 Síntese da Entrevista: Regina

Regina, de 41 anos, é casada, professora do ensino fundamental e mãe de três filhos, Jane de 22 anos, Julia de 14 anos e Rodrigo de 11 anos de idade. O primeiro contato com ela foi feito por meio do Serviço de Triagem e Atendimento Infantil e Familiar, do Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada da Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto. Ela procurou atendimento psicológico por sugestão da escola de Rodrigo, que considerou que o menino apresentava problemas de aprendizagem e hiperatividade. Durante a triagem, a estagiária responsável obteve a informação de que Regina havia perdido dois filhos e que, portanto, poderia participar da presente pesquisa. Dessa forma, no dia da devolutiva do processo de triagem, a responsável fez uma breve exposição da pesquisa e sugeriu a participação da família, que apresentou interesse em participar.

Após esse processo Regina foi contatada por telefone. O primeiro encontro, que ocorreu com a presença de Rodrigo, foi realizado para explicitar os objetivos da pesquisa. Ambos aceitaram prontamente participar e Regina assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Regina apresentou-se bem arrumada, alegre e disponível, muito solícita e

afetuosa no contato. Já Rodrigo mostrou-se triste, cabisbaixo e com vergonha a maior parte do tempo.

No segundo encontro, apenas com Regina, foi feita a entrevista, com duração aproximada de uma hora. Ela aparentava muita tranquilidade e começou a falar rapidamente quando se solicitou que contasse sobre a sua família. Apesar da disponibilidade em contar sua história, durante toda a entrevista, foi necessário estimular Regina com novos questionamentos, pois ela facilmente silenciava.

No início ela apresentou sua família nuclear, seus filhos e casamentos, relatando muito rapidamente como era sua vida em geral, salientando o quanto era comum e igual às outras: “Ah, então, a minha vida é uma vida normal, não tem muitas diferenças das outras não”; “é

típico da família brasileira mesmo, eu... eu não tenho muita novidade, não”.

Regina casou-se duas vezes. Conheceu seu primeiro marido com 19 anos e logo teve sua primeira filha, de quem pouco falou, Jane, e que hoje mora com a avó.5 Desse primeiro casamento, relatou apenas que se separaram na primeira briga que tiveram, depois de dois anos e meio juntos, pois eram muito “incompatíveis”. Ainda alegou que “não era pra dar certo”, porque eram muito diferentes e discordavam em tudo. Após a separação, ela conheceu Fabio, seu marido atual, da mesma idade que ela, em uma discoteca. Fabio é dependente químico, usuário de crack, e ela já tinha conhecimento disso na época em que começaram o namoro. Nesta época, sua filha mais velha tinha dois anos de idade. Eles namoraram por três anos quando ela decidiu que queria ter filhos. Após esta decisão, teve dois abortos espontâneos e uma filha que nasceu prematura, entre cinco ou seis meses (não soube especificar), muito fragilizada. A criança ficou internada na UTI por aproximadamente duas semanas e, após sua saída, mas ainda no hospital, teve uma infecção e morreu, “não chegando a ir para casa”.

Nesse momento, Regina se confundiu e disse: “E depois disso, não me lembro muito

bem, vou tentar lembrar a... a cronologia aí” e continuou com um rápido e sucinto relato

sobre o nascimento e falecimento dos outros filhos. Contudo, pelo relato ligeiro, questionou- se novamente sobre o falecimento dessa filha, Regina, então, contou que é soropositiva, o que ela nomeou como “um agravante”, tendo descoberto a doença nessa gravidez: “Eu tenho um

agravante que eu sou soropositiva, né? E nessa época que eu engravidei a primeira vez do segundo marido eu não sabia, então, foi aí que a gente descobriu, então, eu acho que... eu

5

Mais tarde na entrevista, Regina vai falar sobre essa filha mais velha, da qual se orgulha, pois ela não se casou e nem teve filhos e está estudando, enxergando-a, assim, como uma pessoa responsável e madura.

tava muito com a resistência muito baixa e, então, eu acho que ela ficou com o vírus, né? Então acho que isso agravou muito a saúde dela”. Assim, nessa fala de Regina não fica esclarecido se a filha nasceu de fato infectada com o vírus HIV ou se era apenas uma suposição.

Após a morte da filha e os dois abortos consecutivos, Regina passou a ficar com medo de tentar ter outro filho, mas, como queria muito uma criança, resolveu adotar. Assim, fez seu cadastro como candidata à adoção e logo foi chamada para ver Julia, uma criança que havia acabado de nascer. Julia foi, então, adotada após dois anos da morte da segunda filha, com oito dias de idade: “Quando ela veio pra cá pra adoção eu já tava com o cadastro pronto, né?

Aí eles me ligaram, falaram que tinha lá uma criança com as características que eu tinha falado, que era pra mim ir lá ver”.

Poucos meses após a adoção, Regina engravidou novamente, sem planejamento, e deu à luz um menino, que nasceu sadio, mas veio a falecer de uma forma muita abrupta, com seis meses de idade, vítima de meningite. Após o falecimento desse filho, ela engravidou de Rodrigo, também sem planejamento. Devido ao número de gestações, ela resolveu fazer a cirurgia de laqueadura: “Aí eu... é... eu resolvi laquear porque senão era para eu estar cheia

de filho” (risos).

Ao ser questionada sobre a adoção de Julia, Regina contou que a menina tem um déficit intelectual, que a torna mais lenta que as outras pessoas para aprender, além de uma grave miopia, que foi descoberta quando começou a andar. Devido a essas dificuldades apresentadas pela criança, Regina salientou: “Julia costuma me perguntar o que será que sua

mãe (biológica) fez para que ela ficasse desse jeito”. Nesses momentos, as duas ficam

divagando sobre o assunto e Regina questiona que provavelmente essa mãe biológica tenha bebido ou usado drogas.

Em seguida, Regina contou o quanto Rodrigo admira a irmã e sempre ressalta suas qualidades. Segundo ela, apesar das dificuldades, Julia é uma criança esforçada e criativa: “Penso nela como a tartaruga da história da lebre e da tartaruga, conhece? Ela pode ser

mais lenta, mas no final sempre terá sucesso”.

Regina continuou dizendo que Rodrigo e Julia apresentam um comportamento bastante infantil, mas a menina é muito mais imatura que o irmão: “A idade mental dela a

gente percebe que... é aquém da idade cronológica (risos), então eles agem muito como criança, ela também gosta de desenho, assiste filme, bastante televisão... o Rodrigo, eu acho ele mais centrado. Assim, ó, eu vejo o Rodrigo muito diferente em casa e fora de casa. Fora de casa ele é crianção mesmo, faz arte, leva bronca. Em casa ele faz tudo certinho, ele não

me dá trabalho. Quando eu vou na escola que eu escuto a reclamação eu... Às vezes alguém lá da rua reclama dele, e eu não entendo porquê, em casa ele é centrado, ele faz as coisas direitinho. Já a Julia em casa é que fala mais, é que erra mais, é a que leva mais bronca, e na rua é o contrário, na rua ela procura fazer as coisas direitinho, então as pessoas da rua elogia ela”.

Regina também relatou que Julia sempre gostou muito de falar sobre os irmãos falecidos: “Tem umas fotos pela casa de uma delas (referindo-se às crianças falecidas), a que

saiu do hospital, a que ficou internada eles não têm, as fotos ficam com a Julia e ela gosta muito de ver, ela fala muito dos irmãos, fala que os primos que nasceram agora são a cara dele (referindo-se ao menino que perdeu com seis meses de idade) (risos), gosta de mostrar as fotos para as pessoas e fala que sente saudades dos irmãos”.

Todos esses fatos foram relatados com bastante afastamento emocional, sem que as situações parecessem angustiantes para ela. O momento de maior mobilização emocional, comparado às outras situações difíceis relatadas, foi quando falou a respeito do marido e sua dependência química, que ela referiu como “outro agravante” em sua vida. Regina disse: “Eu

tenho assim um agravante na minha família que é o problema da droga, meu marido é dependente químico, né? Então, assim, a gente tá sempre lutando com esse problema, então, ele fica um tempo muito bem, aí, de repente, ele tem recaída e é onde a gente tem que correr, tem que procurar internação. No momento mesmo agora ele tá internado, né? Fazendo tratamento e, então, a gente tem esse sobressalto aí”.

Por conta dessa condição do marido, Regina começou a repensar seu relacionamento, sentindo um forte conflito entre permanecer ou não casada com Fabio. De acordo com sua percepção, as constantes recaídas prejudicam os planos que haviam feito para a família e a entristecem, por estar sempre na condição de alguém que espera a mudança e nunca a recebe. Contudo, ela enfatizou que gostava muito dele, mas que estava muito cansada dessa situação. Dessa forma, a separação parece ser a melhor opção, mas Regina sente que não tem coragem de abdicar do relacionamento.

“É... cria muita mágoa, muito problema, viver com a droga não é fácil não, só a

família que tem isso mesmo pra saber, é muito difícil. A gente quer sair desse meio, quer procurar um jeito de sair desse meio. Mas, sei lá... a gente fez planos juntos, a gente tem objetivos, tem as crianças, né? Tem coisas que a gente começou. E, assim, eu gosto muito dele, ele é o amor da minha vida, mas, sei lá, tem hora que a gente quer sair disso, quer diferente. Eu estou num momento em que, assim, eu não consigo tomar decisão nenhuma ainda, tô esperando ele se tratar, voltar pra gente resolver o que vai fazer, é confuso ainda”.

Sobre o relacionamento com os filhos, Regina relatou que se sentia muito feliz porque acreditava que havia sido bem sucedida em sua tarefa de transmitir às crianças o que acredita ter valor: a importância do trabalho, o esforço para conseguir aquilo que deseja e a valorização da família. Além disso, acrescentou que tem um bom relacionamento com os filhos e que a comunicação entre eles é boa, exceto no que diz respeito à sua soropositividade, já que ela não lhes contou diretamente sobre isso. Os filhos sabem apenas que Regina precisa tomar um remédio todos os dias, o que ela justifica dizendo-lhes que sua imunidade é muito baixa e, dessa maneira, ela evita ficar doente.

Ao final, Regina começou a relatar sobre a rotina da família e dos desejos dos filhos: brincar mais fora de casa e fazer atividades extracurriculares, como no caso de Rodrigo, que frequentemente pede à mãe para fazer aulas de futebol. Estas situações, comuns à vida das crianças, mas que fogem da rotina da família são repudiadas pela mãe, que as considera perigosas. Tal aspecto ficou claro na fala de Regina acerca do cotidiano das crianças: “Não

gosto de deixá-los na rua, tenho medo da violência, de pedofilia, essas coisas. O Rodrigo quer fazer futebol, mas eu ainda não consigo deixar, porque teria que levá-lo até lá e isso não é possível por causa do horário do meu trabalho”.

Ela continuou relatando que, quanto ao fato de brincar na rua, há uma maior liberdade para as crianças na casa da sogra, pois lá o relacionamento com os vizinhos é bom e as brincadeiras de rua são muito comuns, o que não acontece na rua de sua casa, local que ela considera perigoso: “A gente já fica preocupada, porque ali na esquina já tem uns menino

que vende droga, e aí tem essas influências... pra mim não teria problema deixar eles brincar na rua com os amigos, com o amiguinho da sala... eu sabendo onde ele tá, não tem problema. Mas aí eu preciso segurar mais ele por causa disso, tem sempre um aí vendendo, outro querendo brigar por causa de pipa, querendo bater, então a gente acaba prendendo”.

Durante todo o tempo da entrevista, Regina manteve a cabeça baixa, sem contato visual. Em alguns momentos começava a mexer muito a perna, em especial quando falava a respeito da sua soropositividade e do marido e sua dependência de drogas, demonstrando maior mobilização afetiva. Falar dos filhos pareceu tranquilo e, nesses momentos, expressava carinho (sorria, balançava os ombros, mexia a cabeça). Em relação ao falecimento de seus filhos, não houve nenhuma expressão de emoção, parecia se manter distante e pouco afetada pelos acontecimentos.

Ao fim da sua participação, na devolutiva, Regina contou que resolveu terminar com o marido (separação de corpos), pois concluiu que ele não teria condições de lhe oferecer o que ela necessita em um relacionamento. Enfatizou que apesar disso, ainda o ama: “Gosto muito

dele, é o pai dos meus filhos, a pessoa que eu sonhei passar o resto da minha vida”. Ela se

refere a esse fim como uma decisão que pode mudar: “Ainda estou pensando, nós dois

estamos, estamos ainda muito grudado um no outro, não foi uma coisa que nós queríamos que acontecesse”, mas após atender um telefonema amoroso – que parecia ser do próprio ex-

marido- comentou que está com um novo namorado, uma pessoa de quem gosta, mas que não a faz esquecer-se de Fabio. Entretanto, ela decide manter o relacionamento atual, pois não crê que o antigo possa ter sucesso.