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Síntese Integrativa dos Resultados

Capítulo III: Análise dos Resultados

4.1. Síntese Integrativa dos Resultados

O testemunho nos casos de ASC é uma temática de triplo vértice que associa a importância da prova testemunhal, as abordagens da Justiça durante a recolha do testemunho e o impacto da vivência processual pela vítima. A nossa investigação permitiu a recolha de indicadores caracterizadores de cada uma destas dimensões.

Os profissionais, relembrando as exigências processuais e as determinações da Lei, corroboraram as conclusões da literatura relativamente à centralidade da prova testemunhal nestes casos, a par da qualidade do relato factual, da capacidade da vítima em recordar e verbalizar pormenores difíceis de invalidar. Todavia, ao longo da análise, constatámos que, na presença de vestígios físicos, as competências de testemunho da criança assumem um caráter meramente processual, contrariamente aos dados da investigação de Jong e Rose (1991).

Ainda durante a recolha da prova testemunhal, os PF sugeriram, e os PJ confirmaram, a relevância atribuída à manifestação de sintomatologia pela criança, ―o sofrimento‖, ―a tristeza‖, ―o choro‖, ―embargo da voz‖, ―o desconforto‖, apesar de a investigação

esclarecer a existência de casos em que, apesar de serem graves, as crianças não apresentam sintomas, são vítimas assintomáticas (Ribeiro, 2009).

Não obstante permanecer o mito de que o processo penal não tem qualquer impacto (E11) e a necessidade de os PJ se centrarem no apuramento dos factos, a maioria deles começa a estar consciente de estratégias que possam, de alguma forma, penalizar a vítima, designadamente, o arrastamento processual, o mau trato processual, a descredibilização do testemunho, o reviver experiências traumáticas e a teatralização da sala de julgamento.

Paralelamente, o legislador, não está indiferente a estas questões, tem procurado redefinir as determinações legislativas e estabelecer alterações processuais que auxiliem na promoção do bem-estar da vítima, sem prejudicar a prática da Justiça. Neste contexto, surge, em 2001, um novo procedimento de inquirição, as DMF, obrigatório desde 2007 nos casos de abuso sexual de menores. No entanto, as modificações da Lei, em si mesmas, não

55 são suficientes, é essencial monitorizar as práticas, promover o desenvolvimento de novas competências (Wright, 2007) e assegurar o treino legal e a educação judicial (Cashmore, 2007).

Durante a nossa investigação, correspondendo às sugestões de investigações anteriores (cf. Ribeiro, 2009) e às indicações dos PF, conseguimos compreender que, apesar dos PJ e os PF reconhecerem a importância da realização das DMF para salvaguardar a criança e contornar as reinquirições sucessivas, e dos PF destacarem benefícios do procedimento (cf. Anexo 4), a condução e a valoração judicial das declarações têm ficado aquém das expectativas.

Os PF criticam a indefinição do seu papel e a recusa de colaboração de alguns magistrados. Além disso, caracterizam este procedimento como potencialmente desorganizador da vítima, devido à inadequação dos espaços, à impreparação da vítima, à sua realização tardia e, principalmente, ao facto de se assemelhar a um mini-julgamento. Funciona como uma espécie de ―carapaça de que estamos a fazer uma coisa fantástica‖ (E7), quando, afinal, estamos apenas a converter um procedimento desenhado para afastar a criança da sala de julgamento e para diminuir o número de repetições em mais uma inquirição no conjunto das reinquirições nas quais a criança participa.

O não cumprimento dos pressupostos básicos das DMF prende-se, por um lado, com a insuficiência probatória da transcrição do testemunho recolhido, para os juízes do julgamento, dado que reafirmam a essencialidade do testemunho presencial, do contacto ocular e da imediação direta comunicacional para a tomada de decisão judicial. Por outro lado, relaciona-se com o conhecimento limitado dos pressupostos da Lei, uma vez que dois dos PJ sugerem que passe a ser obrigatória, quando esta obrigatoriedade está determinada desde 2007. Em terceiro lugar, refere-se, ainda, a inexistência de espaços desenhados especialmente para este procedimento e a não uniformização da prática judicial nas diferentes diligências das DMF.

Embora os PF indiquem algumas abordagens inadequadas dos PJ, como a minimização do ato abusivo praticado contra adolescentes, as inquirições demasiado extensas, a utilização de linguagem inadequada, a infantilização dos procedimentos, a emissão de juízos de valor negativos, a pressão de resposta, o confronto da vítima e a elaboração de inquirições sugestivas e confirmatórias, mencionam, igualmente, mudanças positivas (e.g., afastamento do arguido e aperfeiçoamento genérico das estratégias de comunicação). Por seu turno, os PJ, em resultado do aumento da sua sensibilidade para com a temática e do seu conhecimento sobre as dinâmicas do ASC e sobre as

56 peculiaridades desenvolvimentais das vítimas, expõem algumas preocupações na presidência das inquirições. Realçamos, de entre elas, a adaptação da análise caso a caso e à idade da criança, a realização de uma abordagem inicial neutra e de um questionamento aberto, a informalização dos procedimentos, a promoção do discurso espontâneo, o evitamento de confrontos e o esclarecimento do valor do testemunho perante a vítima.

Quanto à postura dos advogados, parece consensual entre os PF e os PJ que há um respeito geral pelas dinâmicas abusivas e pela vítima. Porém, por vezes, o advogado do arguido, na tentativa de descredibilizar a criança, recorre a estratégias menos éticas, no que será rapidamente interrompido pelo juiz, ao abrigo do princípio da inquirição indireta.

Quando abordam o futuro, ambos os grupos profissionais reforçam as indicações da literatura e mencionam a premência de reestruturar os locais de inquirição, promover a articulação processual e a colaboração profissional e criar condições para o estabelecimento de uma inquirição única. Contudo, enquanto que para os PF faz sentido que esta inquirição seja realizada por um técnico devidamente qualificado, os PJ não prescindem da presidência por um juiz. E aqui reside, na nossa opinião, a principal barreira entre os dois grupos profissionais: a valoração atribuída à formação especializada.

Ao longo da nossa análise, pudemos perceber que, concomitantemente ao princípio jurídico da livre apreciação da prova, se verifica a “livre abordagem” e a “livre condução das diligências processuais”. Além da não uniformização dos procedimentos e das práticas, não existe uma formação especializada na área que possa assegurar a maximização das competências de inquirição a crianças, apesar de os PJ validarem a sua formação e sustentarem que esta provém, principalmente, da leitura autodidata e da experiência profissional. No entanto, como explica Spence (1968 cit in Aldridge, 1996), a experiência não é necessariamente o melhor professor. Também Aldridge (1996) estabelece uma comparação interessante entre a Justiça e a Medicina: todos os médicos, como os juízes, têm a mesma formação base, contudo, quando desenvolvemos complicações cardíacas, não consultamos um dermatologista, consultamos um cardiologista.

Consequentemente, não é viável nem para o exercício da Justiça, nem para a vítima, que se continuem a conduzir diligências processuais segundo sensibilidades individuais, traduzidas em posturas divergentes dentro o grupo dos PJ e na vivência de experiências diferenciadas no contexto judicial, quer pelos PF quer pelas próprias crianças (―isto não vai lá de jeitos… isto não pode ser… boas vontades pessoais‖, E20; ―e as pessoas acham que a sua intuição é ótima e, quando o nosso trabalho depende da nossa sensibilidade, nós estamos arrumados‖,

57 E7). Aliás, esta preocupação com a formação especializada e com a necessidade de preparar muito cuidadosamente as inquirições já é uma questão abordada pelos PJ.