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A súmula vinculante foi criada pela emenda constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004109, tendo o dispositivo recebido a seguinte redação:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de

109 Conforme José Carlos Barbosa Moreira (2007c, p. 22), a emenda constitucional 45 decorreu do entendimento, exato ou inexato, de que as reformas até então empreendidas no Código de Processo Civil de 1973 não bastavam, “era preciso alterar a própria Constituição”.

súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

Objeto de muitos debates antagônicos, a súmula vinculante trouxe ao sistema jurisdicional brasileiro uma nova visão na forma de decidir, de pensar o Direito estatal, como também de entender a função de uma Corte Suprema.

A mudança de paradigma ocorreu de uma anterior visão micro da jurisdição e dos conflitos judicializados, em que as soluções para as resoluções dos interesses contrapostos no processo prestavam-se individualmente em cada auto processual, mesmo nos casos das demandas coletivas, para uma visão macro da jurisdição, visualizando os conflitos do cume do sistema, estabelecendo uma transcendência do julgamento, para o fim de abarcar não só aquela situação conflituosa dirimida, mas, doravante, espraiar-se por outros conflitos de origem jurídica semelhante.

Segundo alguns autores, como Dínio de Santis Garcia (1996), por exemplo, seria temerária a adoção de súmula vinculante no Brasil, uma vez que inexistem as características do sistema do common law, que a independência do juiz seria contrariada, pois ele não tem superiores para receber ordens e instruções, não se podendo tornar um burocrático repetidor de arestos, e que haveria violação ao princípio da separação dos poderes, devido à invasão de competência do Poder Legislativo.

No mesmo sentido, João Carlos Pestana de Aguiar Silva (2000), para quem a súmula vinculante é um retrocesso perante a histórica evolução da jurisprudência, tornando o direito estagnado, já que o Direito, fonte do fato social, também como esse, deve ser dinâmico é mutável.

E, de um ponto de vista hermenêutico, aduz-se ainda que a súmula vinculante antecipa e define previamente o sentido do texto, coibindo a interpretação do texto legal e, consequentemente, a variabilidade hermenêutica, limitando a possiblidade de se originar uma

norma para o caso concreto singular e específico então a ser julgado (STRECK; ABBOUD, 2013, p. 55; BAHIA, 2012),.

Referido posicionamento é rechaçado por outros autores, ainda dentro de uma visão hermenêutica, como Maurício Martins Reis, para quem aqueles autores se equivocam, “pois são os fundamentos dos precedentes que vinculam os casos ulteriores, e súmulas são precedentes ao redundarem” (2014, p. 422, nota n. 14), destacando que súmula é também norma consolidada em texto, produto da interpretação de razões determinantes (2013, p. 209)110.

Conforme José Joaquim Calmon de Passos (2007), a súmula vinculante, ou jurisprudência com força vinculante, tem natureza interpretativa nos termos da norma de caráter geral editada pelo legislador, decorrente da lógica do sistema. Coaduna Roberto Rosas (2009, p. 45), observando que também são vinculantes os fundamentos do texto, não apenas o enunciado sumular.

Contribuiu com o tema Eduardo de Avelar Lamy (2005, p. 114), ao sustentar que

a súmula vinculante possibilitará melhor obtenção de resultados práticos por meio da jurisdição na vida dos litigantes, coadunando-se com a realidade forense que demanda interpretar a constituição conforme a necessidade social e a operabilidade do instrumento constituído pelo processo [...]

Se o que importa para a sociedade, a nosso ver, não é a resposta da jurisdição, mas, sim, o resultado do processo e a aplicação do direito substancial, de que adianta a não vinculatividade das súmulas aos demais órgãos do Poder Judiciário se as indagações constitucionais e infraconstitucionais relevantes são, essencialmente, respondidas pelos tribunais superiores?

Subjacente à vinculatividade da súmula não está, como muitas vezes alegado pelos expoentes contrários, uma solução para a diminuição do número de processos e para a resolução mais célere das demandas, até porque, conforme adverte José Carlos Barbosa Moreira

110 Sobre o jargão que Streck utiliza, de que “o precedente não cabe na súmula”, Maurício Martins Reis (2013, p. 222) refuta afirmando que por “mais que o precedente nela não caiba, a súmula tampouco o esconde!”.

(2007c, p. 31), não se dispõe de dados estatísticos concretos, abrangentes e confiáveis, que revelem os pontos de estrangulamento e as causas mais relevantes da disfunção. Mais do que a ideia de diminuição e celeridade - o que, a rigor, não é fundamento, mas reflexo da aplicação -, a súmula vinculante tem como móvel a igualdade no tratamento das mesmas questões pela jurisdição e a uniformidade dos julgamentos.

A legitimidade da súmula vinculante decorre de estar inserida no texto constitucional, pois que, se uma Constituição assenta e estrutura as relações estatais e sociais, tendo força normativa (Hesse, 1991), é cediço que, concordando-se ou não, inexiste fundamento, ao menos jurídico-constitucional, que lhe imponha inaplicabilidade.

Destarte, se pelo poder constituinte se dá a função de estabelecer o modo de ser de uma jurisdição, o exercício regular desse poder, perante a supremacia decorrente das normas constitucionais (CANOTILHO, 1993, p. 136-140), parece não ser passível de contestabilidade no campo da execução das medidas e instrumentos então disciplinados111.

No campo das ideias, todavia, a discussão pode ser outra. Não obstante, tendo-se como premissa um processo descritivo, resta claro que a súmula vinculante, na forma como foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro, mediante emenda constitucional, passando a ser, portanto, norma constitucional com os efeitos daí decorrentes, é instituto que merece análise dentro de sua regulamentação.

Ao que importa ao debate deste estudo, dispõe o art. 103-A anteriormente descrito que o efeito vinculante da súmula aprovada aplica-se aos demais órgãos do Poder Judiciário, como também, e aqui está uma inovação paradigmática central, à administração pública em todos os seus níveis (direta e indireta, federal, estadual e municipal).

111 Nos termos da doutrina José Joaquim Gomes Canotilho (1993, p. 137): “Esta superioridade hierárquico-normativa concretiza-se e revela-se em três perspectivas: (1) as normas do direito constitucional constituem uma lex

superior que recolhe o fundamento de validade em si própria {autoprimazia normativa); (2) as normas de direito constitucional são normas de normas

{norma normarum), afirmando-se como fonte de produção jurídica de outras normas (normas legais, normas regulamentares, normas estatutárias); (3) a superioridade normativa das normas constitucionais implica o princípio da conformidade de todos os actos dos poderes políticos com a constituição” (grifos do autor).

Diz-se inovação paradigmática central porquanto se a administração pública, como visto, submete-se à legalidade como princípio constitucional, “a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas”, na redação do parágrafo §1º do art. 103-A, apenas poderia ser afastada mediante uma norma superior de competência, que é a norma constitucional.

Isso porque, se súmula vinculante à administração pública fosse disciplinada por lei – o que se afigura inconstitucional -, mesmo complementar, a competência decorrente da jurisdição para regular as atividades administrativas derivaria de lei, assim como também é para as demais normas impositivas à administração pública, o que poderia ensejar colisão, antinomias e contradições entre referidas normas – a lei da súmula vinculante e a objeto de controle jurisdicional. Por conseguinte, adviriam maiores problemas de hermenêutica e de aplicação do que o que se intentava solucionar. Assim, sendo norma constitucional, inexiste possibilidade de contradição, pois aqui se está no campo da hierarquia das normas, em que a de menor grau deve se adequar a de maior grau.

Ainda, e sobretudo, a feição da jurisdição, como poder/função, apenas pode tomar forma mediante norma estabelecedora de estruturas estatais e fundante do sistema jurídico, que é uma Constituição. Daqui decorre a legitimidade da influência direta da jurisdição na administração.

Já que os poderes são independentes e harmônicos entre si, eventual influência ou afastamento dessa independência e harmonia necessita se dar no mesmo patamar daquela norma; se constitucional é o

princípio, constitucional deve ser a regra que o limita112, sob pena de esvaziamento daquele, superior, por esta, inferior113.

Consoante dicção de Eduardo de Avelar Lamy (2005, p. 118), não “há que se cogitar, portanto, no império do Poder Judiciário sobre os demais Poderes, mas sim num fenômeno de integração e complementação das funções exercidas por cada Poder”.

Às situações que se quer evitar, de grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica, deve estar presente a reiteração de decisões sobre matéria constitucional.

O ato administrativo que contrariar ou indevidamente aplicar a súmula vinculante será passível de nulidade por meio de reclamação ao Supremo Tribunal Federal. Nessa hipótese, importa destacar que, ao contrário da decisão judicial reclamada, em que será determinado pelo STF que outra seja proferida, com ou sem aplicação da súmula, no caso do ato administrativo reclamado o julgamento é de nulidade, cabendo, por conseguinte, à autoridade administrativa, se assim for o caso, proferir novo ato, dentro das balizas da súmula vinculante, evidentemente.

Sendo assim, não há tomada de decisão na reclamação no lugar do ato administrativo, mas sim nulidade do ato. As consequências advindas ainda são de competência da sede administrativa.

112 A propósito, de se destacar o que se chama de limites imanentes ou “limites dos limites”, conforme expõe Gilmar Ferreira Mendes (2002) quando trata dos direitos individuais e do princípio de proteção do núcleo essencial, perfeitamente aplicados ao princípio em tela da separação de poderes, fundante da organização política estatal. Segundo o autor, esses “limites, que decorrem da própria Constituição, referem-se tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial do direito fundamental, quanto à clareza, determinação, generalidade e proporcionalidade das restrições impostas” (p. 241), salientando que “o princípio da proteção do núcleo essencial destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais” (p. 243).

113 Eros Roberto Grau (2014), refundindo seu entendimento e obra anteriores, entende, doravante, que os princípios configuram espécie de regras. Aduz: “O que caracteriza os princípios como espécie de regra é (i) o seu grau de generalidade – isto é, seu caráter mais amplo e largo de generalidade – e (ii) certa proximidade aos valores tidos como inspiradores do direito positivo. Ainda assim, contudo, os princípios são regras de direito. Essa maior proximidade aos valores não lhes retira o caráter de regra” (p. 113).

Daí porque a legislação federal dispôs sobre o modo de agir no caso de julgamento procedente contra o ato administrativo reclamado. A Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo federal, com alteração dada pela Lei n. 11.417, de 19 de dezembro de 2006, estabeleceu adequação das decisões administrativas ao quanto delimitado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de reclamação por inaplicabilidade de súmula vinculante, com imposição de penalidade por descumprimento114.