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1.1 Jurisdição

1.1.5 Tradição do Civil Law

A tradição de civil law é exercida nos países em que predomina a legislação como fonte do direito. Caracteriza-se pelo primado da lei em detrimento de outras formas de regulamentação da sociedade e de suas relações.

Teresa Arruda Alvim Wambier (2010, p. 35-36) acentua que o direito no civil law é fruto de dois momentos históricos. O primeiro com a descoberta no século XI de textos jurídicos romanos conservados durante a Idade Média e objeto de intensivo estudo no norte da Itália, principalmente em Bologna, passando a considerar os textos “como paradigmáticos, parte de um Corpus”; o segundo, decorrente da Revolução Francesa e de seus ideais, que resultou “num sistema fortemente alicerçado em bases racionais lógico-sistemáticas, cujo objetivo era conter abusos”36. Nesse mesmo sentido, Marinoni (2013, p. 46-56).

Acerca da influência da revolução francesa, da sua doutrina de limitação de poder por meio do primado da lei e da nova “lengua de los derechos” então inaugurada, Eduardo García de Enterría (1994, p. 30) assevera:

La lengua del Derecho es ya una lengua preceptiva, que no se conforma con reflejar especularmente la situación tal como existe, sino que aspira a conformala em moldes prefigurados com ánimo de instalarla duraderamente través de instituciones nuevas.

três níveis de responsabilidade do Lord Chancellor, a chamada ‘união universal’ da Constituição britânica, pois esta combinava o status de Ministro (com responsabilidade ministerial sobre o órgão governamental do Executivo, o Departamento de Estado, por muito tempo conhecido por Gabinete do Lord

Chancellor, depois renomeado como Departamento de Assuntos Constitucionais, e agora chamado de Ministério da Justiça) com o de porta-voz da House of Lords, de forma a ter Poder Legislativo, e, no terceiro nível, com sua atuação como juiz, que julgava os recursos interpostos na House of Lords ou perante o Privy Council”.

36 Estefânia Maria de Queiroz Barboza (2014, p. 70) analisa que “diversamente dos Estados Unidos, onde prevaleceu a ideia de checks and balances, ou seja, controles recíprocos entre os poderes, na França houve um exagero deste princípio, levando a um sistema separado de Cortes administrativas e limitando- se o juiz a um papel de menor importância nos procedimentos jurídicos”.

Pode o civil law ser entendido como um sistema fechado, na medida em que se busca pela edição de normas preestabelecidas englobar toda a conduta humana, em contraposição ao common law, que seria um sistema aberto, pois, nesse, além da lei, as decisões judiciais sedimentadas em precedentes também regulariam o modo de viver das pessoas (DAVID, 2002, p. 410 e 440).

Daí decorre o caráter abstrato e generalizante do civil law. Busca-se, para a regulamentação dos atos e da solução das controvérsias, a resposta na norma jurídica editada para tal desiderato.

Segundo visão norte-americana da formação e desenvolvimento do direito na América Latina, de Kenneth L. Karst e Keith S. Rosenn (1975, p. 45), o código civil “serve para preencher as lacunas em outra legislação, da mesma maneira como a common law serve em jurisdições anglo-americanas”37. Em outra passagem, expõe que a cultura jurídica latino-americana é altamente legalista, existindo “um forte sentimento de que novas instituições ou práticas não devem ser aprovadas sem lei anterior que lhes autorize” (p. 61)38.

Destarte, no campo processual, ainda, inexistindo norma a respeito, o próprio ordenamento encarrega-se de dar as diretivas de como proceder, definindo, como no caso brasileiro, que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”, consoante art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942.

São as fontes secundárias do direito, que possibilitam a abertura do referido sistema fechado do civil law.

37 No original, o trecho completo está assim redigido: “The code contains the rule governing contracts, domestic relations, damages, restitution, inheritance, legal personality and torts. Even when no provision appears to be specifically applicable, the civil code is frequently consulted as a source of general principle, serving to fill in gaps in order legislation in much the same way as the common law serves in Anglo-American jurisdictions”.

38 No original, de onde se extrai este trecho, se lê: “Latin America legal culture is highly legalistic; that is, society places great emplasis upon seeing that all social relations are regulated by comprehensive legislation. There is a strong feeling that new institutions or practices ought not be adopted without a prior law authorizing them. Laws, regulations, and decrees regulate with great specificity seemingly every aspect of Latin American life, as well as some aspects of life not found in Latin America. It often appears that if something is not prohibited by law, it must be obligatory”.

Nesse particular, no que concerne à alteração da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em 2010, apesar de Tiago Asfor Rocha Lima (2013, p. 121) entender que se perdeu uma oportunidade de atualizar referida norma em face da realidade atual, pois ignorou-se “por completo o papel que o Direito jurisprudencial ocupa no sistema jurídico e a importância que a ele é conferida pelos operadores do Direito”, é certo que, para aplicação dessas fontes secundárias, o artigo 4º faz referência à lacuna da lei39 (“quando a lei for omissa”), de modo que não se entende como adequada a inclusão da jurisprudência ou precedente judicial nesse preceptivo legal, porquanto a aplicação de precedente imprescinde de lacuna, vale dizer, não se aplica quando a lei for omissa tão somente, mas se aplica sobre ela e muitas vezes contra ela. Veja-se, por exemplo, a possibilidade de vinculação à interpretação conforme dada pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento de controle concentrado de constitucionalidade.

Em realidade, no direito brasileiro, o que se constata é que o precedente judicial não tem como função preencher as lacunas da lei, mas sim dar ou impor a sua interpretação. No Brasil, por consequência, o precedente atua perante a lei e não no seu vazio. Poderá atuar, até mesmo, como fonte do direito, desde que legislação constitucional assim regulamente, nos termos defendidos por Rodolfo de Camargo Mancuso (2014, p. 230), para quem haveria necessidade de alteração do inciso II do art. 5º da Constituição Federal para dar a simetria necessária ao texto do Código de Processo Civil de 2015. Isso porque “somente a norma legal (nem mesmo um decreto!) pode seguir operando como parâmetro para aferição da exigibilidade de condutas comissivas ou omissivas, assim no setor público como no privado”.

A regulamentação formal de precedentes no Brasil tem se dado mediante legislação, haja vista que antes de se dar por lei - seja constitucional ou infraconstitucional - natureza vinculante às decisões judiciais dos tribunais, tais decisões só eram utilizadas persuasivamente

Assim, na tradição do civil law, o direito é criado pelo Poder Legislativo, vedando-se aos demais poderes do Estado (Executivo e Judiciário) a criação de norma legal; quando o fazem, como no Brasil, há autorização prévia do Legislativo. Nesse sentido os decretos

39 Vicente Ráo (1999, p. 501) expõe, que na investigação para preenchimento das lacunas do direito, “não se formulam regras gerais, aplicáveis a todos os casos futuros, que nelas possam incidir, pois esta tarefa só ao legislador compete”.

regulamentares de lei pelo Poder Executivo (CF, art. 84, IV) e demais normas aplicativas da lei (portarias, resoluções, instruções normativas, circulares, etc.), a súmula vinculante (CF, art. 103-A) e a utilização das fontes subsidiárias pelo Poder Judiciário (LINDB, art. 4º). Aliás, a súmula é apenas vinculante porque assim restou delimitada pelo legislador constituinte derivado. Assim também o é com a regulamentação da aplicação de precedentes pelo Código de Processo Civil de 2015.

Não é papel deste estudo debruçar-se em profundidade sobre a correção ou não do mencionado protagonismo monológico da lei, aqui também incluída a Constituição40; todavia, é certo que o ranço legalista brasileiro e decorrente da tradição clássica do civil law, nesse aspecto, parece não mudar e parece mesmo não se poder modificar41, diante da legalidade ser cláusula pétrea no direito brasileiro.