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Saúde como direito social prestacional, subjetivo e de aplicabilidade imediata

Cabe ressaltar que os direitos fundamentais como um todo, em razão de sua multifuncionalidade, podem ser classificados em dois grupos, notadamente, os direitos de defesa (negativos) e os direitos a prestações(positivos)51. Os direitos fundamentais sociais, constituem não só o direito subjetivo do cidadão de não ser obstado pelo Estado no exercício e fruição das chamadas “liberdades sociais”, mas o de exigir prestações positivas por parte desse mesmo Estado, que garantam o mínimo necessário a uma existência digna.

No que tange ao direito fundamental social à saúde, especificamente, considera-se como um típico direito prestacional, exigindo atuações positivas do Estado, tais como o fornecimento de medicamentos, de atendimento médico e hospitalar, a realização de exames da mais variada natureza; mas que também pode constituir direto de defesa, ao impedir ingerências indevidas por parte do Estado e de terceiros na saúde do titular (SARLET, 2007).

Foi consagrada no art. 5º, § 1º, da CF/88, a aplicação imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais. Por força deste dispositivo os direitos sociais estão em condições de serem diretamente aplicáveis, contudo, costuma-se imprimi-los um caráter meramente programático, ao contrário do que ocorre com os direitos individuais. A discussão acerca da efetividade das normas programáticas encerra amplas controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais. A doutrina pátria não é uniforme.

Para Malmeistein (2016) essa disposição legal, aponta a supremacia natural dos direitos fundamentais. O autor defende que não haveria sentido em condicionar a aplicação dos direitos fundamentais a uma futura e incerta regulamentação legislativa, razão pela qual considera que a norma constitucional se torna fonte direta de comando e obrigações aos órgãos públicos, com uma força normativa autônoma, independentemente de qualquer regulamentação.

Também adota posição otimista Eros Grau (2003) para quem todas as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são auto-executáveis, independentemente de qualquer ato legislativo ou administrativo, devendo o Estado prontamente aplicá-las, decidindo pela imposição de seu cumprimento.

51A classificação em dois grupos tem inspiração na teoria dos quatro status desenvolvida por Georg Jellinek, que

destaca as relações jurídicas (status) existentes entre o indivíduo e o Estado. Essa classificação entre direitos positivos e negativos, tem sido bastante criticada, uma vez que os direitos individuais e os políticos, originalmente de caráter negativo, também necessitam de pretensões positivas, políticas públicas, que demandam custos por parte do Estado, e não apenas os direitos sociais demandariam recursos públicos. (MARMELSTEIN, George. Curso de

Em sentido contrário, para José Afonso da Silva (1998) as normas programáticas possuem eficácia limitada, não sendo inteiramente operantes relativamente aos interesses que lhes constituem objeto específico, necessitando de normas integrativas para que possam produzir os seus efeitos jurídicos de maneira plena. Tal categoria de normas não produziria, com a simples entrada em vigor, todos os efeitos essenciais, uma vez que o legislador constituinte não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão do Estado.

Adota posição intermediária Sarlet (2009), partindo da premissa de que o dispositivo normativo em análise não se aplica a toda a constituição, sob pena de equiparar direitos fundamentais e demais normas constitucionais, o autor supõe que referida norma impõe ao Estado a maximização da eficácia dos direitos fundamentais. A aplicação direta do dispositivo implicaria a inobservância de limites importantes, como a reserva do possível, a da falta de legitimação dos tribunais para aplicação de medidas sócio-econômicas, e a colisão de direitos fundamentais.

Assim, faz distinção entre dois grupos de normas: as de insuficiente normatividade, que precisam de uma interpretação do legislador para gerar a plenitude de seus efeitos, e as de suficiente normatividade, que não reclamam atos de natureza concretizadora e podem ser imediatamente aplicadas aos casos concretos (SARLET, 2009).

Para Barros (2010) a posição intermediária adotada por Sarlet seria a mais adequada, pois sendo a norma um princípio constitucional, não pode ser tratada como uma regra, com base no tudo ou nada. A sua eficácia deve ser analisada à luz do caso concreto, de acordo com a função que os direitos fundamentais desempenham no ordenamento jurídico. Além disso, a proposta de Sarlet também estaria de acordo com a eficácia subjetiva dos direitos fundamentais, no sentido de que, de acordo com a presunção anunciada, em regra, o dispositivo assegura aos cidadãos direitos subjetivos. Somente nos casos em que, após análise da hipótese concreta e da estrutura normativa, esta presunção (relativa) seja quebrada é que, após a devida fundamentação, os indivíduos não poderão exigir os direitos previstos nas normas definidoras de direitos fundamentais (BARROS, 2010).

A dimensão subjetiva dos direitos fundamentais está relacionada à capacidade que estes possuem de gerar direitos subjetivos, podendo ser concretizados judicialmente diante do Estado ou de mesmo de particulares. A dimensão subjetiva possibilita que os direitos fundamentais sejam postulados pelo indivíduo na esfera judicial, e estão, por exemplo, caso o Estado se negue a realizar determinada prestação necessária à saúde (fornecimento de medicamentos, realização de cirurgia etc.), o indivíduo poderá entrar com ação judicial exigindo seu cumprimento). Já a

dimensão objetiva, implica que os direitos fundamentais são um conjunto de valores objetivos, que fornecem diretrizes materiais, se expandindo para todo o ordenamento jurídico, funcionando como sustentáculo para toda a ordem constitucional (ROCHA, 2011).

O Supremo Tribunal Federal tem precedente de que o art.196 da Constituição Federal gera direitos subjetivos, especialmente para as pessoas carentes, que não podem custear por conta própria o tratamento, conforme trecho transcrito da ementa:

O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). [...] O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. [...] O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. (RE 271286 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/09/2000, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJ 24-11-2000 PP- 00101 EMENT VOL-02013-07 PP-01409)

Quanto à possibilidade do controle judicial de políticas públicas, decisão do Min. Celso de Mello, na Arguição a Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45, demonstra que o Tribunal se manifesta favorável, ressaltando que decorre da dimensão política de sua jurisdição. Ementa: Arguição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do poder judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da "reserva do possível". Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade da arguição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas(direitos constitucionais de segunda geração) STF, ADPF 45/2004, rel. Min. Celso de Mello, j. 1/07/2004.

Conforme seus julgados o STF considera o direito a saúde como direito subjetivo e em matéria de políticas públicas admite a intervenção judicial, quando configurada a hipótese de abusividade governamental. Contudo, a fim de evitar a judicialização e que o judiciário se torne um balcão de demandas da população, cumpre melhor definir os contornos desta intervenção, sobretudo quanto as demandas individuais.

Afinal, são recorrentes os casos em que o Estado, mais especificamente os Poderes Executivo e Legislativo dele partes integrantes, não cumpre seu papel como garante dos direitos assegurados na Constituição. As políticas públicas desenvolvidas pela instituição estatal ficam muitas vezes aquém do esperado, não sendo capazes de gerar bem-estar social.

No próximo tópico se discute o caráter político das políticas públicas e os limites da intervenção judicial com foco nas decisões de caráter individual, de efeitos sistêmicos, diante das questões da reserva orçamentária, da reserva do possível e da reserva de contingência.