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Sabedoria Poética: Memoria, Fantasia e Engenho ou uma Gnosiologia

2. VICO, A IMAGINAÇÃO DA IMAGINAÇÃO

2.1. Sabedoria Poética: Memoria, Fantasia e Engenho ou uma Gnosiologia

“O princípio de tais origens das línguas e das letras comprova-se que foi o facto de os primeiros povos da gentilidade, por uma demonstrada necessidade de natureza, terem sido poetas e falarem por caracteres poéticos; esta descoberta, que é a chave mestra desta Ciência, custou-nos a pesquisa obstinada de quase toda a nossa vida literária, uma vez que com essas nossas naturezas civilizadas, tal natureza poética desses primeiros homens é, de facto, impossível de imaginar e muito a custo nos é permitido compreender.”186

A profundidade do trabalho e a importância da descoberta de Vico são admiráveis. Uma ciência acerca da natureza comum das nações não era algo somente novo, mas exclusivo de Vico. Não havia um trabalho colaborativo de pesquisa ou uma síntese previamente trabalhada por outros estudiosos que aguardavam seus elementos serem organizados na forma de uma ciência. Era uma jornada solitária. O exercício de uma mente racional para perceber, descobrir, adentrar, estruturar e viver um saber poético é uma realização extraordinária tanto no campo que se abre para novas teorias gnosiológicas quanto em termos de uma superação pessoal. Uma passagem biográfica mostra um Vico que lutou anos para se aproximar desse conceito. Um embate inexorável que, como se pretende mostrar na presente pesquisa, não faz vencedores, mas protagonistas, estranhos um ao outro, possivelmente a coexistirem: a imaginação e a razão. A nova ciência de Vico deve a essa, também sua, descoberta:

“... para descobrir o modo desse primeiro pensamento humano nascido no mundo da gentilidade encontramos as ásperas dificuldades que nos custaram bem vinte anos de pesquisa, e devemos descer destas nossas naturezas civilizadas àquelas completamente

185

Gnosiologia (também Teoria do Conhecimento e algumas vezes, mas erradamente, Epistemologia): estudo da relação que o sujeito e o objeto mantém. Na forma mais antiga do problema: em que medida aquilo que os homens se representam se assemelha àquilo que é, independente dessa representação? Este termo não existia na França e parece ter sido raro na Alemanha até meados do século XIX. Reinhold, a quem se atribui sua cunhagem, serve-se das expressões “Theorie des mesnchlichen Vorstellungsvermogen”’ de 1789 e “Versuch

einer neuen Theorie des mensch. Vorst” de 1791. (LALANDE, p. 193). Teoria do Conhecimento: A explicação e a interpretação filosófica do conhecimento humano, cujo objeto de estudo é a possibilidade de conhecer e como isso se processa e suas inevitáveis transformações no tempo. Só modernamente a Teoria do Conhecimento tornou-se uma disciplina independente, apesar de seus temas principais terem sido estudados desde a Antiguidade e durante a Idade Média. (SANTOS, p. 1155). O termo Teoria do Conhecimento é posterior a Vico, por isso mesmo não é mencionado em sua obra.

ferozes e imanes187, as quais nos é completamente negado imaginar e apenas com grande

custo nos é permitido compreender.”188

Retomando o início do §34, onde se afirma que os primeiros povos foram poetas, temos nas Dignidades (que são princípios de verdades imediatamente evidentes da CN, LII) as seguintes passagens: 1) “Esta dignidade demonstra que o mundo criança foi de nações poéticas, não sendo a poesia outra coisa senão imitação.” 2) “As crianças são poderosamente boas no imitar, porque observamos muito frequentemente divertirem-se a semelhar189 aquilo que são capazes de aprender.”190

Aqui se estabelece o vínculo entre poesia e conhecimento, a sabedoria poética que segundo Vico:

“deve ter começado de uma metafísica, não refletida191 e abstrata como é esta agora dos

instruídos, mas sentida e imaginada como deve ter sido a desses primeiros homens, pois que eram seres de nenhum raciocínio e com todos os sentidos robustos e com vigorosíssimas fantasias.192... Esta (metafísica) foi sua própria poesia, que neles foi uma

faculdade conatural (porque eram naturalmente dotados de tais sentidos e das mencionadas fantasias), nascida da ignorância das causas, que foi para eles mãe do espanto ante todas as coisas, pois, ignorantes de todas as coisas, fortemente (as) admiravam.” 193

Esta poesia para Vico, diferente da poesia dos tempos cultos refletida e conscientemente finalizada com uma intenção estética, era o modo de se expressar dos primeiros homens. Ato espontâneo de consciência e poético porque era naturalmente alimentado pela fantasia.194

O homem na tradição ocidental, naturalmente tende a buscar o saber195 e, para Vico, neste desejo o binômio espanto-maravilha atua como um dínamo constante: “A maravilha é filha da ignorância; e quanto maior é o efeito admirado, tanto mais cresce proporcionalmente o espanto.”196 Em outra passagem anterior, aparece novamente a referência à maraviglia: “...

homens de debilíssimo raciocínio, descobrem neles as verdadeiras sentenças poéticas, que

187 De tamanho descomunal. 188 §338. 189 Imitar. 190 §216 e 215 respectivamente 191 Racional. 192 Ver n.72. 193 §375.

194 Poético portanto vem quase a ser um sinônimo de mítico. BATTISTINI, n. 2, p. 570. 195 ARISTOTELES, Metafisica I, 1, 980- 981.

devem ser sentimentos vestidos de grandíssimas paixões e, por isso, plenos de sublimidade e despertando a maravilha.197” 198

Seu tema é o primeiro pensamento do homem que, por natureza, busca entender o seu derredor, mas é privado de razão, sendo fluente em robustíssima fantasia. Nas palavras de Danesi199, Vico busca desenvolver uma teoria que possa explicar “as modificações na nossa própria mente ” (§331). Contrário ao método geométrico que “constitui o seu próprio mundo de grandezas, enquanto sobre os seus elementos o constrói ou o contempla” (§349), Vico acreditava que a filologia e a etimologia permitiriam e ele “descobrir como o primeiro pensamento surgiu.” (§338).

Mas o que vem ser a fantasia (ou imaginação)? Vico menciona a palavra imaginação quarenta e cinco vezes no texto da CN. Apesar de não apresentar sobre ela um única definição. A compreensão do significado do termo no contexto viquiano é alcançada pela análise de algumas passagens, dentre as quais destacam-se:

a) ativadora da memória em relação ao Frontispícios (§1): “ com a ajuda que lhe faculte a imaginação trazê-la mais facilmente à memória”;

b) fonte criadora dos gêneros fantásticos (§34): “imagens, na maioria dos casos de substâncias animadas ou de deuses ou de heróis, formadas pela fantasia”;

c) uma relação inversa à razão (§185): “a fantasia é tanto mais robusta quanto mais débil é o raciocínio”;

d) base da sabedoria e metafisica poética (§375): “ uma metafísica, não refletida e abstrata como é esta agora dos instruídos, mas sentida e imaginada como deve ter sido a desses primeiros homens, que eram de nenhum raciocínio mas com vigorosíssimas fantasias”;

e) uma faculdade que nasce com o homem (§375): “esta foi sua primeira poesia, que nesses foi uma faculdade conatural (porque eram naturalmente dotados de tais sentidos e de tais mencionadas fantasias)”;

197“Tanto Aristóteles como Platão, os dois maiores filósofos gregos, estão de acordo, portanto, em reconhecer

que o desejo de saber tem inicio na maravilha sentida do acontecer das coisas no mundo” e “A maravilha é consciência da própria ignorância e desejo de a ela se subtrair, ou seja, de aprender, de conhecer, de saber. A primeira tentativa de fugir à ignorância é o recurso ao mito, isto é, as narrativas dos poetas, que a seu modo fornecem uma reposta às perguntas dos homens.” BERTI, pp. 10-11.

198 No §34 quanto no §184, maraviglia foi traduzida como admiração, aqui manteve-se a palavra maravilha com

intituito de assegurar a proximidade com o significado original.

f) um aspecto sensorial para a criação de coisas (§376): “eles (os primeiros homens), pela sua robusta ignorância e corpulentíssima fantasia e, porque “(as mentes estavam) imersas nos sentidos, todas reprimidas pelas paixões, todas sepultadas no corpo” (§378);

g) material para engenho (§699): “Mas a fantasia mais não é do que o relevo de reminiscências, e o engenho mais não é que o trabalho em torno das coisas que se recordam.”

h) memória (§809): “ Pelo que a memória é o mesmo que fantasia,”;

“Nas crianças é a memória vigorosíssima; logo, é vivida em excesso a fantasia, que outra coisa não é senão memória dilatada ou composta.”200 A ideia de unificação de fantasia e

memória já aparece em obras anteriores de Vico, mas em uma forma ainda não definida. No

De Nostri Temporis Studiorum Ratione (Do Método de Estudo de Nosso Tempo, 1708, III) há uma passagem sobre a crítica Cartesiana201:

“ Pois é tão vigorosa a razão na velhice como a fantasia na juventude: que não convém, sem dúvida, que ela seja negada aos jovens que sempre a consideram como uma feliz manifestação de sua índole futura. E a memória, que, se for o mesmo, é certamente quase o mesmo que a fantasia, é preciso que se cultive cuidadosamente nos jovens, que não sobressaem em nenhuma outra faculdade.”

A mesma crítica aparece mais elaborada no De Antiquissima Italorum Sapientia202 (1710, Livro da Metafisica, capitulo VII, 3):

“... memória para os latinos é aquilo que fica armazenado que foi percebido pelos sentidos, e recordar é o fato da memória recuperar essas percepções. Memória também refere-se a faculdade com qual formamos imagens, que os Gregos chamavam de phantasia203 e nós de

imaginativa; e os latinos dizem recordar e nos dizemos popularmente imaginar. Será por isso porque não podemos representar nada além do que recordamos, e não recordamos nada além do que percebemos pelos sentidos? Certamente, não existe um pintor que jamais tenha pintado um gênero de planta ou animal que a natureza não tenha proporcionado: mesmos os hipogrifos e centauros são coisas verdadeiras da natureza, mas falsamente misturados. Nem os poetas pensaram um forma de virtude que não se encontre na realidade humana, mas escolhem algumas comuns e elevam acima do verossímil para com elas dar forma à seus heróis. Por esse motivo os gregos nos transmitiram em seus mitos que as Musas – que são potencias da fantasia – são filhas da memória.”

200 §211.

201 O De nostri temporis studiorum ratione é a sétima das Oracoes Inaugurais,que Vico desenvolveu para a

abertura do ano acadêmico. Tal como as outras, e seus primeiros trabalhos, foram escritas em Latim. A De nostri é de 1708 e é considerada como a primeira declaração das idéias filosóficas de Vico.

202 Ver nota 41 sobre Antiquissima. 203 Ver pp.17-18.

Para Vico, o conceito de imaginação é indissociável da experiência sensorial. A princípio, ela é o conhecimento obtido pelo corpo que, depois, se desenvolve independente dos sentidos, na memória, como resultado da ação do engenho. O termo “imaginação”, na compreensão de Vico, está mais próximo da definição de Santo Agostinho: “as imagens são originadas por coisas corpóreas e por meio das sensações: estas uma vez recebidas, podem ser facilmente lembradas, distinguidas, multiplicadas, reduzidas, ampliadas, organizadas, invertidas, recompostas do modo que mais agrade ao pensamento” (De vera rel., 10, §180); e mais distante da definição Romântica que atribui à imaginação uma função criadora. Ao homem não é permitido fingir ou criar qualquer coisa fora da natureza. Ainda que o produto final seja inverossímil, suas bases repousam em algum tipo de natureza por ele conhecida. Vico volta ao tema no § 699: “E à cabeça referiam (os poetas teólogos) todas as cognições que, porquanto eram fantásticas, colocaram na cabeça a memória que os Latinos designaram por fantasia204.” 205 E adiciona a palavra “engenho” na lista de sinônimos para fantasia,

imaginação e memória. “E, nos tempos bárbaros regressados206, fantasia foi dita por engenho

e, em vez de dizerem ‘homem de engenho’, diziam ‘homem fantástico’; como se conta ter sido Cola de Rienzo, o autor dessa mesma época que em italiano bárbaro descreveu sua vida...”.

204 O que mostra como a concepção de fantasia de Vico está longe da imaginação criativa de ascendência

romântico e idealista, encontrada em Hobbes. BATTISTINI, n. 5, p. 514.

205 Referência a Andria, de Terencio IV, 1, 1-2 e IV, 3, 1-2 e a definição de Cicero: “Memoria est firma animi rerum ac verborum perceptio” aproximadamente: memória e palavra são a compreensão mental firme da

matéria no (De invent., I,7) e Quintiliano: “Memoriate duplex virtus: facile percipere et fideliter continere.” algo próximo de a memória tem poder duplo, fácil de agarrar e segurar fielmente (Institutio oratória, I, 3). NICOLINI, §699.

206 A Idade Média foi, segundo Vico, o período no qual São Tomás de Aquino foi patrono da memória: “se

Simônides foi o inventor e Tullius foi o professor da arte da memoria, Tomas de Aquino tornou-se de algum modo seu patrono....o nome de Aquino dominou o campo da memória nos séculos posteriores.”, conforme YATES, p. 111 e “Fica claro, pelo que disse antes, à qual parte da alma a memória pertence, isto é, à mesma a que pertence a fantasia. E as coisas que possuem um imagem derivada dos sentidos são per si apreensíveis, isto é, as coisas sensoriais (sensibilia). Mas as coisas inteligíveis (intelligibilia) só podem ser apreendidas per

accidens, pois não podem ser retidas sem um phantasma. Por isso nos lembramos com menos facilidades das coisas que têm uma significação sutil e espiritual; e nos lembramos mais facilmente daquelas que são mais grosseiras, sensoriais. E se queremos lembrar de nocoes inteligíveis, devemos liga-las a algum tipo de

phantasmata, como nos ensina Tullius em sua retórica.” e também “ O homem não pode compreender sem as imagens (phantasmata); a imagem é um simulacro de uma coisa corporal, mas a compreensão é a dos universais, que devem ser abstraídos dos particulares.” Ambas passagens de Tomas de Aquino, do De memoria er

reminiscentia, pp.93 e 91, respectivamente citadas em Arte da Memoria de YATES, pp. 97 e 95. Vico não faz menção ao napolitano São Tomás de Aquino, nem na Ciencia Nova nem em sua Autobiografia, sendo que o mesmo ocorre com outro napolitano ilustre, que também desenvolveu trabalhos relacionados à memória: Giordano Bruno.

Para depois incluir o “engenho” na sistemática da metafisica poética:

“Mas a fantasia não é mais do que relevo de reminiscência, e o engenho mais não é que o trabalho em torno das coisas que se recordam. Ora porque a mente humana dos tempos sobre os quais refletimos não era aguçada por nenhuma verdadeira arte de escrever, não era espiritualizada por qualquer prática de contas e razão (cognição aritmética), não se tinha tornado abstrata com tantos vocábulos como os que agora abundam nas línguas.”

Portanto, a tríade memória, fantasia e engenho é igualmente responsável pelas funções de registrar o que é percebido pelos sentidos, recordar essas imagens e reorganizá-las, podendo ter como resultado algo inverossímil (para a razão) ou nas palavras de Vico: “pelo que a memória é o mesmo que a fantasia... E adquire estas três diferenças: que é memória, enquanto recorda as coisas; fantasia, enquanto as altera e contrafaz; e engenho, enquanto as contorna e põe em conformidade e ordem.”207

A imaginação é base da concepção dos universais fantásticos.208 Ela é a força de transformar algo real em metáfora. A base do pensamento e da cultura humanos é a metáfora ou, nos termos, de Vico os “universais fantásticos”. Portanto, os universais fantásticos não partem de um processo nominalista no qual um particular é elevado ao nível de um universal, e passa a ser considerado referência para a própria classe de natureza de onde emergiu. Os particulares são concebidos diretamente como universais. A mente primordial pode formular relações e fazer afirmações que não possuem sentido para a moderna mente lógica209: “... tal natureza poética desses primeiros homens é, de fato, impossível de imaginar e muito a custo nos é permitido compreender.”210

Segundo Vico, a mente dos primeiros homens (Vico adota como exemplo a mente de uma criança) já era um notável órgão humano que possuía duas características principais. A primeira, como toda mente humana, é de ter “uma natureza quase divina" e ser “naturalmente levada a deleitar-se com o uniforme”.211 A segunda é estar imersa no corpo e nos sentidos,

necessariamente conectada com eventos particulares e imediatos, incapaz de refletir ou discernir a ação no tempo. Esse é o universo da Sabedoria Poética. O que significa um pensar pelos sentidos, tendo uma “razão” com uma mente dilacerada por paixões e sentimentos? 207 §819. 208 Imaginários universais. 209 §34. 210Ibidem, n. 209. 211§816 e §204.

Mooney212 sugere que a experiência seria semelhante a de um retórico tendo que adequar seu raciocínio e discurso a uma audiência inter rude213, que simplesmente não pode compreender um argumento complexo. Para tanto, o retórico teria que se preparar: antes, seria necessário examinar a situação como um todo e, previamente, identificar na audiência os mais mordazes e persuasivos; seria necessário ampliar os particulares, declarando serem máximas gerais as opiniões dos ouvintes sobre suas próprias condições; e, por fim, teria de representar o argumento com uma imagem fluida e profunda, numa linguagem que tanto atingiria o si mesmo quanto os ouvintes para, compartilhando a situação, todos fossem impelidos a agir em comum. Esse seria o procedimento segundo a arte da retórica. Todavia, não há procedimento para a mente primitiva, mas uma compulsão natural.214 Não existem recursos mínimos racionais que permitam um caminhar tímido na esteira da retórica e da compreensão tradicional. Não se trata de ajustar o discurso, mas de mudar a linguagem e a natureza do pensamento. A compreensão ocorre não no registro da razão, mas na imaginação. Essa mente poética sente o que é incisivo em sua experiência social e amplia seus particulares, tornando-os espontaneamente em imagens evocativas.

No exemplo de Júpiter215, ele é Deus contemplado sob o atributo de sua providencia

divina, a universalização de um particular, uma experiência dramática e finita. Júpiter foi concebido com o trovoar no céu, um corpo gigante que observa um grupo de homens assustados. O temor, que precede a criação, é terreno fértil para sua geração:“(...)o pensamento pavoroso de uma qualquer divindade, que deu norma e medida as paixões animais desses homens perdidos e as tornou paixões humanas.”216 E também : “(...) que a

primeira gente, simples e grosseira, fingiu os deuses ob terrorem praesentis potentia [ do medo do poder do presente]. Assim, foi o temor aquilo que fingiu os deuses no mundo; (...) não por uns homens aos outros, mas por eles a si próprios.”217

Essa experiência dramática, intensa e fantástica, é o terreno fértil para a arquitetura de uma divindade de natureza, a primeira delas, Júpiter, criado como reflexo da natureza presente naquele momento do homem:

“(...) Assim, os primeiros homens, que falavam por sinais, por sua natureza acreditaram que os raios e os trovões seriam sinais de Júpiter (...), que Júpiter ordenaria através de sinais, e que esses sinais seriam palavras reais, e que a natureza seria a língua de Júpiter; os gentios

212 MOONEY, p. 226.

213 Pessoas não qualificadas. 214 MOONEY, p. 227. 215 Ver também p. 85. 216 §340.

acreditavam universalmente que a ciência dessa língua seria a adivinhação (...). Assim chegou a Júpiter o temido reino do raio, pelo qual é ele o rei dos homens e dos deuses.”218 A matéria da poesia é o que Vico chama de impossibile credile: “(...) que a sua própria matéria é o impossível credível, enquanto é impossível que os corpos sejam mentes (e acreditou-se o céu troante fosse Júpiter); daí que os poetas se exercitem principalmente em nada mais do que no cantar das maravilhas (...).”219Para a mente moderna, as asserções de

uma mente fantásticas não são críveis.

Como observado, as noções fundamentais do cenário viquiano para a origem da mente e linguagem são a fantasia, engenho e memória220:

“(...) os povos eram quase todos corpo e quase sem nenhuma reflexão, deviam possuir todos vívido sentido para sentirem os particulares, forte fantasia para os apreender e aumentar, agudo engenho para os reportar aos seus gêneros fantásticos e robusta memória para os reter. (...) E adquire esta estas três diferenças: que é memoria, enquanto recorda as coisas; fantasia enquanto as altera e contrafaz; engenho, enquanto as contorna e põe em conformidade e ordem. Razões pelas quais os poetas teólogos chamaram à Memória ‘mãe das musas’.”221

A fantasia ou imaginação é faculdade única na espécie humana e ela tornou possível à mente reagir a estímulos presentes num ambiente imediato. Ela possibilitou transformar a mentalização não reflexiva, que provavelmente temos em comum com os outros animais — vínculos físicos que reagem institivamente a impulsos e mudanças num continuo de eventos percebidos – em mentalização reflexiva.222

Para Vico a característica que distingue a consciência humana é a possibilidade de imaginar estímulos que não estão mais presentes para o sistema sensorial e que, portanto, não irão reagir a algo oriundo dos sentidos. A imaginação é a marca primeira que distingue a consciência humana das formas de atividade mental dos animais. Sem ela reagiríamos a impulsos de forma espontânea e contínua, sem uma ordem ou significado.

Danesi (Danesi,1993, p.49) na tentativa de reconstruir um modelo mental viquiano propõe que a consciência emergiu quando a fantasia primordial permitiu à mente humana organizar as imagens que o cérebro formava pela percepção sensorial em estruturas de

218§379.

219§383. 220 p. 76. 221§819.

construção de significado (construto-significantes223), ou unidade icônica. Todos os animais podem formar imagens na memória, pois esta é uma função de sobrevivência, mas falta a eles a capacidade de transformar suas imagens em novas estruturas para que a mente possa (re)utilizá-las. Essa condição é inerente à capacidade de associações ou busca de semelhanças entre as imagens produzidas pelo cérebro e as unidades sensoriais registradas pelo corpo.224 que a mente realiza por si mesma. Nas palavras de Vico: “a mente humana é naturalmente inclinada com os sentidos a revelar-se fora no corpo, e com muita dificuldade, por meio da