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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Daniel Eid Tucci

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Academic year: 2018

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Daniel Eid Tucci

Vico, a Imaginação da Imaginação.

MESTRADO EM FILOSOFIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Daniel Eid Tucci

Vico, a Imaginação da Imaginação

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia, sob a orientação do Professor Doutor Antonio José Romera Valverde.

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Antonio Jose Romera Valverde, caríssimo guia cujos sábios conselhos e disponibilidade serviram de horizonte para o desenvolvimento desta pesquisa.

Aos Professores Doutores Celso Favaretto e Marcelo Perine pela leitura cuidadosa e ricas contribuições ao conteúdo do texto.

Aos amigos Jean Bartoli, em parte culpado por essa pesquisa e ao Denis Mattar e Francisco Razzo pelos conselhos valiosos.

Ao casal de Professores Manuel e Maria Fonseca por verem poesia em tudo que faço.

Aos amigos “queridos” e suas mentes poéticas e

aos amigos “Mentes”, frutos dessa jornada filosófica.

À minha família: William e Maria Helena Eid (in memorian), Wilson e Wanda Tucci (in memorian), Wilson José Tucci, Rosa Eid, Renato Eid e família, William Eid Junior e família, Maria de Lourdes Messias e família.

Aos meus amores Val, Matheus e Laura, sem os quais essa pesquisa não existiria.

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La maraviglia è figliuola dell'ignoranza; e quanto l'effetto ammirato è più grande, tanto più a proporzione cresce la maraviglia. Giambattista Vico. Scienza Nuova, §184

La fantasia tanto è più robusta quanto è più debole il raziocinio. Giambattista Vico. Scienza Nuova, §185

“Em resumo – não sendo o homem, propriamente senão mente, corpo e fala, e sendo a fala como que colocada a meio entre amente e o corpo –, o certo acerca do justo começou nos tempos mudos do corpo;” Giambattista Vico. Ciência Nova, §1045

“Por que como a metafisica refletida ensina que homo intelligendo fit omnia, assim esta metafisica fantasiada demonstra que homo non intelligendo fit omnia, e talvez isto seja dito com mais verdade do que aquilo, porque o homem, ao entender, abre sua mente e compreende essas coisas mas, ao não entender, ele faz de si essas coisas e, ao transformar-se nelas, vem a sê-lo.”

Giambattista Vico. Ciência Nova, § 405

“Já tinha esquecido o som daquela campainha e, de súbito, aquele som pareceu recordar-lhe qualquer coisa e trazê-la claramente à imaginação....”

“Quanto à natureza, não a tomam em consideração, puseram-na no olho da rua, não toleram a natureza. Para eles não é a natureza que, desenvolvendo-se de um modo histórico, vivo, até o fim, acabará por transformar-se ela própria numa sociedade normal, mas, pelo contrário, será o sistema social que, brotando de alguma cabeça matemática, procederá em seguida a estruturar toda a humanidade e, num abrir e fechar de olhos, a tornará justa e inocente, mais depressa do que qualquer processo vivo, sem seguir nenhum caminho histórico e natural. Por isso eles sentem instintivamente aversão pela história: nela só se encontra monstruosidade e estupidez; deitam todas as culpas para cima da estupidez. E por isso também não amam o processo "vital" da vida; não querem nada com a "alma viva". A alma viva da vida tem exigências; a alma viva não obedece mecanicamente; a alma viva é suspicaz; a alma viva é retrógrada. E, embora cheire a mortos, eles podem construir com a alma de borracha... que não será viva, nem terá vontade, será uma escrava e não se revoltará...” Fiódor Dostoievski . Crime e Castigo

“Ó Musas, estendei-me a vossa influência! Ó mente, em que o que vi se refletia, Possas ora mostrá-lo em sua essência!”

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Vico, a Imaginação da Imaginação

Sumário

Introdução... p. 11

1. Scienza Nuova: uma análise pictórica.

1.1 A Dipintura: Observações sobre o Frontispício... p. 16 1.2 Hieróglifos de Vico: Signos da Humanidade - comentário sobre “Ideia

da Obra” e “Explicação da Pintura Preposta no Frontispício Que Serve Para Introdução da Obra” presentes no início da Ciência

Nova... ... p. 33

2. Vico, a Imaginação da Imaginação.

2.1 Sabedoria Poética: Memoria, Fantasia e Engenho ou uma

Gnosiologia... ... p. 70 2.2 Metafisica Poética: Os Universais Fantásticos... p. 81 2.3 Os Saberes para uma Gnosiologia Poética... p. 92 2.4 A Mente Viquiana, Lógica Poética e Linguagem...p. 98

3. Considerações Finais... ...p. 113

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SIGLAS E ABREVIATURAS

As seguintes siglas foram adotadas para a citação das obras de Giambattista Vico:

AB - The Autobiography of Giambattista Vico. Traduzida por Max Fisch & Thomas Bergin. New York: Cornell University Press. 1975

CN– indica a obra de Vico, Ciência Nova, edição de Portugal, Editora da Fundação Calouste Gulbenkian. 2004.

§ - indica parágrafos da Ciência Nova, edição de Portugal, Editora da Fundação Calouste Gulbenkian. 2004.

CNP - indica parágrafos da Ciência Nova Primeira publicada em 1725. Edição utilizada Vico - The First New Science (1725). Edited and Translated by Leon Pompa. New York, Cambridge University Press. 2001

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RESUMO

TUCCI, Daniel Eid Tucci. “Vico: A Imaginação da Imaginação ”. 122 fls. Dissertação

(Mestrado). Faculdade de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015.

A dissertação tem por objetivo analisar o papel da imaginação na obra Ciência Nova do filósofo napolitano Giambattista Vico (1668-1744). O enfoque da pesquisa é apresentar os conceitos da noção de imaginação como unidade e função do conhecimento. Para tal

propósito a dissertação inicia com a análise do Frontispício presente na Scienza Nuova, de

1744. Tal análise irá explorar a concepção, tendências e influências que levaram à elaboração do Frontispício. Segue-se uma explicação dos principais conceitos relevantes para uma

interpretação do opus viquiano, decodificados a partir dos hieróglifos presentes no

Frontispício. Após mostrar a inventividade de Vico na aplicação de sua teoria da imaginação em sua própria estratégia para atingir o leitor de sua obra, a pesquisa busca aprofundar o tema da imaginação como conhecimento sensorial dos primeiros povos; a sabedoria poética, os universais fantásticos, o funcionamento da mente poética e seus requisitos como a tópica viquiana e o senso comum. Tal intento visa a compreender a postura contemporânea de Vico , seus conflitos contra a divergente corrente de pensamento e sua preocupação com o futuro da humanidade.

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ABSTRACT

TUCCI, Daniel Eid Tucci. "Vico: Imagination Imagination". 122 pages. Thesis (MS). Faculty of Philosophy, University of São Paulo, São Paulo, 2015.

This dissertation aims to examine the role of imagination in the work New Science of the Neapolitan philosopher Giambattista Vico (1668-1744). The focus of the research is to present the imagination as a concept of unity of knowledge and function of knowledge. For this purpose the dissertation begins with the image title page analysis present in the Scienza Nuova of 1744. This analysis will explore the design, trends and influences that led to the drafting of the image on the title page. An explanation of key concepts relevant follows for interpretation of the viquian opus, decoded from the hieroglyphs present on the title page. After showing the inventiveness of Vico to apply his imagination theory in his own work to achieve the reader, the research seeks to deepen the imagination of the theme as sensorial knowledge of the first people, the poetic wisdom, universal fantastic, the operation of the poetic mind and its requirements as a viquian topical and common sense. This intent aims to understand the contemporary attitude of Vico in his time, his conflicts against divergent school of thought and his concern for the future of humanity.

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INTRODUÇÃO

Quando a luz de uma supernova chega até nós, o seu brilho cria um campo de estudos que permitirá conhecer, através de seus vestígios, um pouco mais do Cosmos. Seja para o passado, presente ou futuro, o conteúdo luminoso constituído de suas partículas é matéria prima fundamental para desdobramentos na compreensão do Universo. Tal qual é a obra de Giambattista Vico na compreensão das Ciências Humanas.

Giambattista Vico nasceu em Nápoles em 1668, num pequeno quarto da livraria modesta de seu pai, e morreu em 1744 na mesma cidade. As condições de seu nascimento talvez fossem um presságio da queda de uma escada que sofreria aos seis anos de idade, possivelmente ao pegar um livro. Nela fraturou o crânio e ficou cinco horas desacordado. A despeito de todas as predições de que não viveria ou cresceria com dificuldades mentais, tornou-se adulto de rápida e profunda percepção apesar do temperamento irritável e melancólico. É com essa mistura de brilho e melancolia que desenvolve seus estudos escolares, na qualidade de um gênio acima de média — passava a noite em claro estudando temas além do seu nível escolar e de sua idade. Foi autodidata e adquiriu uma educação não convencional, ainda enquanto cursava regularmente uma escola jesuíta. Teve diversos professores, em sua grande maioria padres de orientação católica e também filósofos nominalistas. Contava com quatorze anos quando sua precocidade cobrou seu preço: atormentou-se pelos estudos de temas que estavam além de sua faixa etária e ficou afastado por dezoito meses.

Aos dezenove anos virou preceptor do sobrinho do monsenhor Geronimo Rocca, bispo de Ischia e jurista de certa importância, e mudou-se para o castelo de Cilento na região de Vatolla. Esse castelo possuía uma grande biblioteca de qualidade onde Vico estudaria os próximos nove anos de sua vida. Ao retornar a Nápoles, começou a frequentar círculos filosóficos e científicos mas não voltaria a viajar novamente. Apesar de ter conhecimentos equivalentes ao de doctor in utroque falhou ao prestar o concurso para a cátedra de direito, permanecendo na condição de titular da disciplina de retórica por mais de quarenta anos. Sua renda como professor era insuficiente para manter a família e casa e passou a escrever textos em latim para complementar sua renda: inscrições e estórias da corte. Seus escritos filosóficos sejam na metafisica, na jurisprudência ou numa “nova ciência a respeito da

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em seu tempo. Faleceu em casa, na pobreza e obscuridade. Isaiah Berlin (Berlin,1982, p.21)

resume: “a vida, o destino, de Vico é talvez o melhor exemplo conhecido do que é frequentemente descartado como uma ficção romântica: a história de um homem possuidor de um gênio original, nascido antes do seu tempo, tendo que viver na pobreza e doença,

incompreendido e negligenciado em seu tempo e esquecido após a sua morte”. Ainda que hoje seja possível reconhecer algumas correntes italianas que deram continuidade à tradizione vichiana, Vico permaneceu pouco conhecido na Europa e no resto do mundo por muito tempo.

Nos últimos cento e cinquenta anos, a obra de Vico, especialmente sua magnum opus Scienza Nova, vem sendo redescoberta e tornada objeto de estudos relevantes para filósofos, historiadores, filólogos, sociólogos e neurocientistas. O interesse por Vico notabilizou-se um século após a primeira publicação da Scienza Nuova em 1725. No ano de 1824, ao ter acesso à obra de Vico, Jules Michelet declarou: “eu não tenho outro mestre além de Vico”. Michelet publica em 1827 uma edição francesa da Scienza Nova. Robert Flint, um dos primeiros pesquisadores de Vico em língua inglesa, escreveu em 1884 que o nome de Vico era desconhecido para os leitores ingleses e que todo grande filósofo não chega a ser mundialmente conhecido. Na primeira metade do século XIX, Benedeto Croce (Croce, 2006, p.243) escreve que Vico “era nem mais e nem menos do que o século XVII em germe”.

Parte dos motivos para a redescoberta de Vico está em suas influências nas obras de outros pensadores e na atualidade de seus temas. É possível reconhecer encontro com a obra de Vico cem alguns pensadores do século XX. Enquanto que Coleridge elogiava a obra viquiana, Balzac a zombava. Dostoievski pediu obras de Vico enquanto esteve preso e Marx o mencionou em sua correspondência. No campo da literatura, James Joyce registra a presença do pensamento viquiano no ciclo do “Finnegans Wake” e, já na primeira página, informa que o trovão foi o primeiro pensamento:

“bababadalharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawankawntoohoohoor denenthurnuk!” Júpiter falou. (Joyce, 2004, p.3)

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ou Hegel. Todavia, os pensamentos e os problemas postulados por Vico estão presentes em nosso tempo.

Ao ler obras de Dilthey, Husserl, Cassirer, Piaget e Lévi-Strauss é surpreendente a quantidade de ideias viquianas que aparecem nas respostas aos problemas contemporâneos em diversos campos. Tal constatação parece simpática a Otto Maria Carpeaux (Carpeaux, 1999, p.98) quando diz que “Vico influiu poderosamente na filosofia da história romana de

Monstesquieu, no espírito coletivista e ‘populista’ e coletivista de Herder, dos românticos, de

Michelet, nas concepções de Comte, de Marx, de Sorel e de Max Weber, e até na

vulgarização de Spengler”. E também a Alfredo Bosi (Bosi, 2010, p.51): “tradicionalistas como o pré-romântico Herder, românticos progressistas como Michelet, idealistas dialéticos como Hegel, positivistas como Comte, evolucionistas como Spencer, materialistas dialéticos como Marx e Engels, historicistas puros como Dilthey e Croce são, todos, de modo consciente ou não, devedores de um pensamento que postula um sentido desentranhável do

curso aparentemente aleatório dos eventos.”

A produção acadêmica brasileira tem apresentado importantes avanços no estudo de Vico. Assim, contribuir com a divulgação do pensamento viquiano, confirmando sua atualidade e qualidade, face aos desafios de sociedade contemporânea é uma das justificativas para a presente pesquisa. Pretende-se que seu resultado final contribua para ampliação do corpus nacional filosófico e acadêmico sobre Vico.

A maior relevância da obra de Vico é a proposição de uma nova ciência:

“O princípio de tais origens das línguas e das letras comprova-se que foi de fato de os primeiros povos da gentilidade, por uma demonstrada necessidade de natureza, terem sido poetas e falarem por caracteres poéticos; esta descoberta, que é a chave mestra desta Ciência, custou-nos a pesquisa obstinada de quase toda a nossa vida literária, uma vez que, com estas nossas naturezas civilizadas, tal natureza poética desses primeiros homens é, de fato, impossível de imaginar e muito a custo nos é permitido compreender. Esses caracteres poéticos comprova-se terem sido certo gêneros fantásticos (ou seja, imagens, na maioria dos casos de substâncias animadas ou de deuses ou de heróis, formadas pela sua fantasia), aos quais reduziam todas as espécies ou todos os particulares pertencentes a cada gênero” – Scienzia Nuova,§34

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imaginação na forma dos generi ou universali fantastici como base para compreensão do homem e do mundo. Afirma que os gêneros fantásticos são imagens, substâncias animadas de deuses ou de heróis formadas pela fantasia e que estas podem levar a uma reflexão filosófica sobre o locus prevalente e solitário da razão no processo gnosiológico, ou seja, que à razão (em sua concepção moderna) deve-se juntar à imaginação/fantasia como forma criativa de saber.

O que se pretende com essa pesquisa é contextualizar os universais fantásticos na obra viquiana, pontuando suas questões, possibilidades e relevância contemporâneas. Analisar e fundamentar o conceito de universal fantastici e outros que o tangenciam, tais como a fábula e mito, a fantasia, tópica e engenho, o verossímil, entre outros, que sendo a base da Sabedoria Poética, tema do Livro II e fundamento da Ciência Nova, serão objetos de reflexão detalhada.

Emmanuel Kant, em 1781 (cinquenta e um anos após a primeira edição da Scienza Nuova Seconda), no “Prefácio” da primeira edição da Crítica da Razão Pura, descreve as preocupações que Vico tenta responder no contexto histórico de sua época:

“A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões, que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente suas possibilidades (...). Assim, a razão humana cai em obscuridade e contradições, que a autorizam a concluir dever ter-se apoiado em erros, ocultos algures, sem contudo os poder descobrir.” (Kant, 1985, p.3)

O empreendimento viquiano busca iluminar, conforme as palavras de Kant, os “erros,

ocultos algures” trazendo à luz outra faculdade de compreensão do mundo: a imaginação como unidade de conhecimento.

Vico anteviu nossa condição de reféns da técnica, tolhedora da união dos saberes. Foi um dos pioneiros em reconhecer a interdependência de todas as regiões da atividade humana: direito, política, religião, civilização material e espiritual. De acordo com Vico, o momento atual seria a barbárie da reflexão, que pode ser o gatilho de um novo ciclo ou era, tal qual foram a decadência do Império Romano e o advento da Idade Média.

Alfredo Bosi (Bosi, 2010, p.52) escreve que:

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árida, perdendo-se o dom da memória e da fantasia poética. Faz parte da “barbárie da reflexão” uma pedagogia puramente cerebral, a-histórica e geométrica (sempre a polêmica anticartesiana), que leva os jovens estudantes a criticarem tudo antes de aprenderem a fazer o que quer que seja.”

Esse “excesso” referido por Bosi tem origem em nossa natureza civilizatória decorrente da vitória terrível da técnica, a qual Vico viu nascer e iniciar sua marcha. Em seu esforço, Vico buscou o equilíbrio entre os modernos e antigos, ciência e consciência, crítica e criação, entre o verdadeiro, o falso e o verossímil, entre verum e certum; certeza lógica e o conhecimento pelas causas, bem como entre razão e imaginação.

A pesquisa permitiu identificar a dimensão filosófica do conceito de imaginação, suas fontes, desdobramentos e sua relevância na relação entre a verdadeira natureza civil do homem que, segundo Vico, é ser sociável a viver sob justiça. Contribuiu para essa identificação a análise de características dos deuses, heróis e homens, construídas ao longo das eras, pois que estes traços permeiam conceitos caros à compreensão de uma possível teoria gnosiológica viquiana, cuja base constitui-se na oposição dos binômios “engenho e tópica”, “razão e crítica”, “fantasia e memória”, e também na tríade “iconografia, linguagem e história”. A investigação expôs, também, a relação desses ingredientes regrados pela imaginação, pois que esta condição irão não só é a base da Ciência Nova como a chave de compreensão do corpus conceitual e interpretativo viquiano.

Outra intenção da dissertação é explicitar a (re)definição de humanidade presente na obra de Vico, tanto quanto as definições de conhecimento e dos modos de conhecer para, em última instância, explicitar o que o autor chama de realidade.

No Primeiro Capítulo, faz-se a exploração da figura do Frontispício presente na edição de 1730, a fim de apontar suas possíveis influências e implicações na Ciência Nova. Além disso, o Capítulo procura explicar a relação conceitual entre imagem, conceito e memória, visto que esta relação perpassa toda a obra de Vico.

O Segundo Capítulo busca explicar a mente fantástica, seus elementos e sua linguagem. E apresenta uma reflexão sobre a atual condição de nosso mundo em suas vertentes sociais, legais, morais, espirituais; em suma, trata da dignidade do homem.

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1.

Scienza Nuova: uma análise pictórica

1.1.

A Dipintura: Observações sobre o Frontispício

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Acerca da imagem do Frontispício, Vico observa no primeiro parágrafo da Scienza Nuova: “... la quale serva al leggitore per concepire l’idea de quest’opera avanti de leggerla,

e per ridurla piú facilmente a memoria, com tal aiuto che gli somministri la fantasia, dopo de

averla letta”.1 O recurso à imagem como chave de compreensão da ideia geral da obra de Vico merece destaque por ser uma síntese iconográfica de uma descoberta e o conceito central de sua obra: gli universal fantastici (os universais fantásticos). Sobre sua essência: “erano

formati da fantasie robustissime, come d’uomini di debolissimo raziocionio”, e se manifestavam em: “sentimenti vestiti di grandissime passioni, e perciò piene de sublimità e risveglianti la maraviglia”. 2

Os gêneros fantásticos são imagens, substâncias animadas de deuses ou de heróis, formadas pela fantasia3 que constituíram o tecido dos mitos e que retratam uma verdade civil. A fantasia é um dos elementos centrais no sistema viquiano e nele protagoniza um papel de elemento essencial à primeira forma de conhecimento humano. O que significa fantasia? Algumas concepções do termo são:

Idioma Escrita Significado

Grego Φαυτασία a) Aparição de coisas extraordinárias, ou que provocam ilusão.

b) Imagem que se oferece ao espirito. Latino Phantasia a) Visão, Imaginação, aparência.

b) Sonho

c) Ideia, Pensamento, Concepção do Espirito.

Italiano Fantasia a) Faculdade do espirito de reproduzir ou inventar imagens mentais em representações complexas, em grande parte ou totalmente diferente da realidade.

b) Imagem ou história decorrente da atividade do poeta. Italiano Immaginazióne a) Libera a reprodução ou elaboração abstrata, de dados

experimentais ou fantásticos.

Português Fantasia a) Faculdade de imaginar, de criar pela imaginação. b) Obra criada pela imaginação

c) Coisa puramente ideal ou ficcional, sem ligação estreita e imediata com a realidade.

1§1: “que sirva ao leitor para conceber a ideia da obra antes de lê-la para retê-la mais facilmente na memória,

com tal auxilio que lhe supra a fantasia, depois de tê-la lido.” Alguma edições em português traduziram fantasia

por imaginação.

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Sob o olhar filosófico, os antigos gregos usavam a palavra phantasma para indicar toda imagem surgida da sensação que permitisse posterior elaboração conceitual. Os fatos eram recolhidos através de phantasmas que traziam, em bruto, as formalidades que o intelecto ativamente abstraía e depois as classificava nas séries conceituais. Platão menciona o termo numa passagem de O Sofista4: “logo, se há discurso verdadeiro e discurso falso, e o pensamento se nos revelou como conversação da alma consigo mesma, e opinião como a conclusão do pensamento, vindo a ser o que designamos pela expressão ‘imagino’, uma mistura de sensação e opinião, forçoso é que algumas sejam falsas, dadas suas afinidades com o discurso”.

A relação entre modelo e cópia presente nos diálogos platônicos, proporciona uma reflexão entre fenômenos individuais sensivelmente experienciáveis e a ideia intelectualmente cognoscível.5 É possível entender certa semelhança com a abordagem viquiana: para Vico a cópia são os mitos e as fábulas6 que com seu tecido fantasioso operam as metáforas, fazendo a transferência das ideias, que são os universais fantásticos.

A palavra phantasma é também mencionada por Aristóteles que classifica a fantasia como uma faculdade intermediária entre a sensação e o pensamento, ao fazer uma análise etimológica desta palavra (De Anima, III, 3, 428a-29a): “Posto que a visão é o mais

importante dos sentidos, a palavra ‘imaginação’ (fantasia) deriva de luz (faos), porque sem luz

é impossível ver.”

Vale observar que tanto o significado filosófico grego quanto o italiano se aproximam do que Vico entenderia por fantasia. Para uma correta compreensão da obra de Vico se faz necessário evitar o conceito popular atual de fantasia, algo como o livre jogo da imaginação criadora, não disciplinada por uma lógica, ou como criadora apenas de ficções que se afastam mais ou menos da realidade, sendo irreais sempre. Nas palavras de Alfredo Bosi: “Os fantasmas assomam vivos nas ideias, ensina Vico, e o que outrora foi ímpeto, agora é razão.”7, propondo uma aproximação entre o conceito de fantasma, enquanto imagem que

simboliza uma ideia, evitando o uso popular do termo, e sinalizando, ao mesmo tempo, a fraqueza da imaginação criadora em detrimento da dominância racional. A distinção filosófica

4 PLATAO, O Sofista, 264 a. (trad. Carlos Alberto Nunes). 5 SCHAFER, Léxico de Platão, p. 165.

6Vico não faz distinção entre eles, como se observa no §403: “portanto, as mitologias devem ter sido os falares próprios das fábulas (pois tal significa essa palavra)”.

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entre fantasia e imaginação inicia-se a partir do século XVIII, sendo que no presente trabalho não se adota distinção entre esses termos.8

A dipintura é apresentada pela primeira vez na edição de dezembro de 1730, ou Scienza Nuova Seconda, como a substituição de um novella letteraria de aproximadamente oitenta e seis páginas, conforme comenta Vico em sua biografia: “ e, ’n suo logo, proporre la dipintura al frontispizio di quei libri, e della di lei Spiegazione scrivere altrettanti fogli

ch’ empiessero il vuoto di quel piccioli volume”.9 O “ingenoso pintore”10, autor do desenho foi Domenico Antonio Vaccaro (1681-1750). Vaccaro era autor dos altares das igrejas napolitanas com grande expressão barroca e foi aluno de Francisco Solimona (1657-1747). Ele pertencia a uma família napolitana de designers e, contra a vontade de seu pai, tornou-se um excelente arquiteto e pintor, além de designer. A gravura de impressão foi feita por Antonio Baldi (1692-1773) que também foi discípulo de Solimona. O desenho foi feito, seguindo as instruções de Vico. Obras de Antonio Baldi:

8 A palavra immaginazióne foi incluída para referência.

9 Em, Vita scritta da se medesimo, GV Opere, p. 80 ou “ For this advertisment he now substituted an engraved

frontispiece and an explanation of it long enough to fill the void” – Vico, Autobiography 10 §24.

Podalirius Leads the Young Nymphs Preparing the Hot Springs

de Antonio Baldi, 1726.

Allegory:Papado deClemente XIvence a Heresia de Domenico

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O uso de um Frontispício alegórico e sinótico era consenso nos livros do século XVIII.11 Todavia, não era comum que tal alegoria fosse explicada e muito menos na extensão que Vico o fez12: os primeiros 43 parágrafos são dedicados a isso. Fisch13 sugere que Vico teve a influência do mesmo procedimento utilizado na obra Characteristicks of Men, Manners, Opinions, Times de Shaftesbury14 (a partir da 2ª edição). Nicolini confirma que Shaftesbury passou os últimos quinze anos de sua vida em Nápoles, período no qual frequentava a casa de Giuseppe Valleta (1636-1715), erudito e bibliógrafo,

juntamente com “seus amigos eruditos”, dentre os quais Vico.15 A obra de Shaftesbury começa com uma gravura seguida de uma parte intitulada Ideia da Obra, assim como no inicio da Ciência Nova.

Nicolini não exclui a possibilidade de que Vico também tenha tido acesso à edição original do Leviathan hobbesiano e à função exercida pela memória com relacão à figura alegórica que ilustra o Frontispício. Nele, o Leviathan auto- devorante, rodava a cabeça com a coroa real e brandia a espada com mão direita, enquanto a esquerda indicava o pastoreio; esses gestos simbolizam a onipotência, de intensa materialidade, do Estado. Todavia, tal Frontispício sugere, por contraposição, uma ampliação em sua figuração alegórica, a da Metafísica, indicando que os valores espirituais são os mais refinados. A função de memória é ativar essa ampliação, que, em termos de significado, vai além da mensagem de intensa materialidade, decodificada pictoricamente.

11 BATTISTINI, n. 4, p. 1312. 12 MARCUS, p. 210

13 Max Harold Fisch, pesquisador americano de Vico e tradutor da Autobiografia e Ciência Nova para o inglês. 14 Autobioghraphy, p. 81. Nota complementar: Shaftesbury (1671-1712) a segunda edição, com mais gravuras,

foi póstuma.

15§ 1 e NICOLLINI, Commento Storico Alla Seconda Scienza Nuova e pp. 33 e 35 e p. 81 para o texto de Fisch.

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Andrea Battistini adiciona16 o livro Novo Organum de Francis Bacon à lista que Vico teria tido acesso, mas afirma que essa não seria uma prática exclusiva dos “modernos” e que Atanasio Kircher (mencionado no § 605), em sua obra Ars magna lucis et umbrae em 1646, utiliza no Frontispício um jogo de reflexão luminosa por meio de raios e espelhos convexos que nos remete à passagem : “O raio que emana da divina providencia (...)” (§5).

Fausto Nicolini sugere que a senhora com têmporas aladas teve como provável motivo de inspiração duas passagens dos “Cânticos XXIII e XXVIII” do Paraíso, de Dante:

CONTEMPLAÇÃO DE BEATRIZ

Tal ave que, passando, em meio à fronde, ao pé do ninho, a noite prolongada, cujo pesado véu a tudo esconde, ansiosa por rever sua ninhada e ministrar-lhe a próvida ração - na dura faina sempre renovada -

revoa ainda em plena escuridão a ramada mais alta, e nela assenta, a espreitar do dilúculo o clarão

- assim Beatriz erguia o rosto, atenta àquele ponto ali da plaga imensa em que a marcha do sol se faz mais lenta.

16 BATTISTINI, n. 9, p. 415.

Novo Organum – 1620 Ars Magna Lucis e Umbrae – 1646

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Mas pouco demorou, na realidade, da expectativa ao fato a transição; e vi tomar-se o céu de claridade. Minha dama exclamou:

‘Eis a legião do triunfo de Cristo,

o fruto opimo que sazona à celeste rotação!’

O trecho “aquele ponto ali da plaga imenta” refere-se ao poeta (Dante) que observa Beatriz a fitar atentamente o alto como que esperando por algo.17 Uma descrição que remete à posição da metafisica de Vico, contemplando o olhar divino. O olhar atento pode ser compreendido como a “atitude extática, a metafisica o contempla sobre a ordem natural das

coisas naturais( ...)”.18

Nesse cântico, é possível perceber o caráter do despertar. Um renascer para um saber divino, a providência divina como um “triunfo de Cristo”. Uma possível referência à metafísica, que Vico reconfigura na Ciência Nova, incorporando o elemento civil e as transformações nas mentes dos homens. É possível notar uma semelhança descrita em outra figura que também representa a metafisica e está na edição de 1744 da Ciência Nova com a seguinte legenda: Ignota Latebat.19

E ainda nos versos de Dante:

Paraíso, Canto XXVII 10-21

Dos quatro archotes via-se o esplendor; E o que primeiro abrira ali passagem, recrudescendo em súbito fulgor,

ia-se transformando em sua imagem, qual se tornara Jove, se ele e Marte

17 A Divina Comédia, tradução Cristiano Martins, n. 11, p. 741. 18 §2.

19 Ver p. 32.

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permutassem, como aves, a plumagem.

A Providência, que no céu reparte tarefas e honrarias, à canção impusera silêncio em toda parte.

“Não te surpreendaa minha mutação”, foi começando, “pois ao que direi verás nos mias igual transformação.

Nessa passagem observam-se elementos que permeiam a Ciência Nova: Júpiter, Marte e a Providência (divina). Abaixo uma comparação do desenho que Botticelli fez no século XV para o Cântico XXVII e o Frontispício da Scienza Nuova, de 1744.

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Vico afirma em sua Autobiografia20 que leu Dante. Também é possível estabelecer analogias entre as imagens e os referidos textos, dentre as quais se destacam:

Vico

(Frontispício) Metafisica Têmporas Aladas Triangulo com olho Metafisica Olhando para o Providencia

Raio luminoso

Dante (Divina Comedia)

Beatriz Pássaros e asas Providencia

Divina Olhos atentos a contemplar o firmamento

Brilho e raio

“D’i Serafin colui che più s’india”21, trecho do Paraiso (4.28), contém a palavra

indiarsi que significa participar de uma glória divina, uma felicidade inefável ou de um destino sobre-humano. Vico, no §938, usa a mesma palavra com o significado entrar na mente22 de Deus. Não se pode constatar se Vico teve acesso à edição da Divina Comedia, Canto a Canto, ilustrada por Sandro Botticelli, que fora finalizada possivelmente em 1485, aproximadamente duzentos anos após a primeira publicação da Divina Comedia. Todavia é sugestiva a similaridade entre a imagem de Beatriz, criada por Botticelli, e a da Metafisica criada por Vico.

Paolo Rossi sugere que a fonte para simbologia da metafisica apresentada por Vico está na combinação das imagens da Metafisica e da Matemática, tal qual está descrito na obra Iconologia de Cesario Ripa (1593), autor do manual utilizado por aqueles que desejavam personificar mitos, alegorias e ideias abstratas 23:

“Metafísica: mujer que tiene un globo y un reloj debajo de los pies, apareciendo además con los ojos vendados, y llevando una corona en la cabeza. Con la diestra hará algún gesto con el que indica su entrega a la contemplación, mientras sostiene un cetro con la siniestra; pues en efecto, siendo ésta la reina de todas las Ciencias que con la sola ayuda de nuestras luces naturales pueden alcanzarse, y despreciando por entero todas aquellas cosas sujetas a mutación y sometidas al curso y variación de los tiempos, claro que es que solo trata las cosas superiores, empleando exclusivamente la fuerza de su intelecto y no cuidándose en absoluto de cuanto informan los sentidos. Matemática: mujer de mediana edad vestida con un blanco e transparente velo, que ha de llevar alas en la cabeza,…”

Reforçando o ponto de vista de Rossi, e com mais exemplos da obra de Ripa, Frankel24 aponta para uma representação da Vida contemplativa que se encontra em Ripa:

20 AB, p. 120.

21 O Serafim que a Deus esta mirando mais perto ou o Serafim da máxima hierarquia. 22 A questão da mente e sua transformação é um tema de presente no obra de Vico. 23 RIPA, Iconologia II, pp. 44 e 86.

24 Margareth Frankel, no estudo “The Dipintura ans the Strucute of Vico’s New Science as a Mirror of the

(25)

“Pintaban los Antiguos la Vida Contemplativa en figura de mujer, con el rostro levantado hacia los Cielos, humildísimo gesto y actitud, y un rayo de luz resplandeciente que, bajando hasta ella, la ilumina y alumbra. Lleva además la diestra tendida hacia lo alto y la siniestra baja y cerrada en un puno, poniéndose por último dos alas muy pequeñas que coronan la cabeza de la presente figura.”25

A única variação entre as duas imagens é a mão esquerda que está aberta. Isto é explicável pelo fato de que o punho fechado simbolizava o discurso rigoroso da lógica e a palma aberta correspondia à retórica, o que remeteria os leitores às eras dos deuses e dos heróis.26 Para Papini, porém, a donna em questão não pode figurar a vida contemplativa, lembrando que para Vico a verdade consiste no factum, no fazer.27 Tal observação leva à definição de Ciência na Iconologia: Mujer que tiene alas em la cabeza. Sostiene con la diestra un espejo e con la siniestra una bola, sobre la cual se ha de ver um triangulo.28

O raio que atravessa o Frontispício forma uma serpentina em ziguezague, prolongando-se sobre a linha que chega até o arado, obedecendo ao gosto figurativo do maneirismo. 29 Exemplo de obras do maneirismo30 europeu:

Maarten Heemskerck: O saque de Roma de 1527

25 RIPA, Iconologia II, p. 406 tradução do autor. 26 Ver p.82 a explicação sobre as diferentes eras. 27 BATTISTINI, p. 415, notas 9 e 10.

28 RIPA, p. 188

29 BATTISTINI, p. 418, notas 1 e 2.

30 O Maneirismo foi um estilo e um movimento artístico que se desenvolveu na Europa aproximadamente

(26)

Michelangelo: O Juízo Final, 1534-41. Capela Sistina.

A convexidade (do espelho convexo que reflete o raio) sugere contornos e voltas típicos do maneirismo e da obra Autoritratto in uno specchio convesso de Parmigianino.31 Simbolicamente representa a passagem de uma unidade para a multiplicidade e as deformações que a luz metafisica sofre ao adentrar o mundo físico.32 Representa, ainda, a habilidade de não se limitar a si em seu próprio raciocínio filosófico abstrato, mas o esforço de lançar luzes nos grandes eventos da história humana.33

No De Antiquíssima34 observa-se uma passagem que remete à teoria platônica das ideias, indicando uma conexão das formas metafisicas com

31 Pintor italiano do Maneirismo, 1503-1540.

32 A reflexão do raio representa a nova metafisica, que também irá observar as instituições civis. 33 PAPINI, p. 68.

34 De antiquíssima Italorum sapientia, Cap II.

(27)

as físicas: “portanto, os antigos filósofos da Itália devem ter opinado que os gêneros são formas infinitas, não por sua extensão, mas por sua perfeição, e, que tais infinitos, existem apenas em Deus; e a espécies ou coisas particulares, são simulacros feitos à imagem dessas formas”.

O Frontispício, ao mesmo tempo em que ajuda na ilustração do pensamento viquiano é também uma representação gráfica de sua doutrina na Ciência Nova. O uso de uma imagem seguido da instrução de que ela “ sirva ao leitor para conceber a ideia desta obra antes de a ler

e para, com a ajuda lhe faculte a imaginação, trazê-la mais facilmente à memória, depois de a

ter lido” (§1) sugere que Vico teve acesso à tradição da arte da memória. Frankel, em seu artigo35 (e com ele também Paolo Rossi como Giorgio Tagliacozzo) menciona que Vico segue os princípios da memória artificial36 que eram conhecidos na Itália renascentista.

Os mecanismos de memória são originários da Grécia antiga. Em Roma, foram desenvolvidos por Cícero e Quintiliano. Na Idade Média foram modificados por Alberto Magno e São Tomás de Aquino e eventualmente expandidos por outros autores do Renascimento até o século XVII. Após o século XVII, tais mecanismos começam a perder relevância cultural.

Escrevendo entre 1720 e 1740, período no qual a arte da memória já estava entrando no esquecimento, Vico demonstra a grande importância dessa arte.37 Nas palavras de Yates

“É curioso e significativo que a arte da memória, no século XVII era conhecida e discutida por pensadores que se voltam a novas direções: Francis Bacon, Descartes e Leibniz. A memória nesse momento passava de um método para memorizar a enciclopédia do conhecimento e refletir o mundo na memória, para uma ferramenta de auxilio que permite investigar a enciclopédia e o mundo, com o objetivo de descobrir um novo conhecimento. A arte da memória sobrevive como um fator do desenvolvimento do método científico.”38

Tal afirmação de Yates demonstra o papel que a arte de memória teve na revolução metodológica no Renascimento e que culminaria com o Discours de la methode, em 1637. Mas esse foi um caráter instrumental ao qual a memória foi relegada após o modernismo. Vico era contra esse tipo de uso da memória e também contra o método

35

Margareth Frankel, no estudo “The Dipintura ans the Strucute of Vico’s New Science as a Mirror of the World” em TAGLIACOZZO, Vico: Past & Present, p. 44.

36 A memória natural provém apenas do dom da natureza, sem qualquer ajuda artificial. A memoria artificial é a auxiliar e assistente da memória natural. Artifical vem do termo “arte”, porque ela é encontrada artificialmente, pela sutileza da mente. YATES, p. 81.

37 Margareth Frankel, no estudo “The Dipintura ans the Strucute of Vico’s New Science as a Mirror of the

(28)

científico aplicado irrestritamente. Para ele, a arte da memória sobrevive como elemento indissociável da sua nova arte crítica, pautada pela imaginação. Em seus ensinamentos a memória segue a tradição de “refletir o mundo na memória” e não a

como uma “ferramenta de auxílio” para ajudar na investigação do mundo.

Bacon tinha um profundo conhecimento da arte da memória e Descartes também refletiu sobre ela. Ambos foram autores que Vico estudou a fundo. Bacon é um dos quatro autores39 que Vico cita em sua Autobiografia na condição de influenciador de sua obra. Verene40 sugere que o título Ciência Nova foi concebido para lembrar duas obras: O Novum Organum de Bacon, que conforme observado acima (p. 22) possui um Frontispício que pode ter influenciado o da Scienza Nuova, e Dialoghi dele nuove scienze de Galileu. Quanto a Descartes, vale lembrar que Vico publicou a Scienza Nuova no século XVIII (1725), mas nascera em 1668 e assumiria o posto de professor de retórica em 1699 onde permaneceria até aposentar-se, logo a obra de autor tão importante do século XVII, certamente, fora estudada por Vico. Era fundamental conhecer profundamente a obra de Descartes para criticar seu método e sua metafísica.41

O século XVII foi marcado por trabalhos científicos e pseudocientíficos que eram publicados sob o anúncio de termos como “nova” ou “inédito”. Os tratados deste século eram, em sua maioria, de matemática, física, biologia, ciências e medicina. Vico, por outro lado, desejava criar uma ciência da sociedade humana que fizesse pelo “mundo das nações”, o que Galileu e Newton fizeram pelo “mundo da natureza”. Vico não menciona que seu trabalho é a primeira tentativa de estabelecer tal ciência, mas que é a primeira que tem sucesso. Sobre seus predecessores ele menciona os teóricos do direito natural Grócio, Selden e Pufendorf (§394) e Hobbes.

O uso do Frontispício não está limitado apenas a uma função mnemônica. Ao escrever no primeiro parágrafo que a imagem “sirva ao leitor para conceber a ideia desta obra antes de

e a ler”, Vico revela que a imagem também está conectada com os conceitos que ele exporá. Não utiliza a imagem por convenção e artificio, mas por estabelecer relação vital de analogia e semelhança entre a imagem e suas ideias. Vico acreditava que o elemento visual das imagens não era para ser meramente usado como um fortalecimento da memória, mas para

39 Os quatro autores são: Platão, Tácito, Bacon e Grócio. 40 VERENE, Keys to New Science, p. 8.

(29)

uma compreensão espiritual e intelectual de conceitos42: “... porque, sempre que quisermos do

entendimento extrair coisas espirituais, devemos ser socorrido pela fantasia para podermos explicar e tal como pintores, fingi-las imagens humanas.”43

O uso de imagens com esse propósito tem origem nas tradições renascentistas do emblema. Imagens as quais, segundo os primeiros propositores da arte da memória, eram destinadas a aparecerem somente na mente. Durante o Renascimento, porém, tornaram-se representações visuais tanto para propósitos mnemônicos como para dar forma corporal, material, para conceitos abstratos, exigindo que a memória e a compreensão ocorressem num nível superior.44

Sobre o emblema, Bacon escreveu a seguinte passagem: “os emblemas reduzem

concepções intelectuais em imagens sensíveis; porque objeto sensorial sempre atinge a memória com mais força e é mais facilmente registrado nela do que um objeto do intelecto”.45

Esse conceito expresso por Bacon oferece uma compreensão da intenção de Vico ao incluir o Frontispício na edição de 1725 de CN e a Ignota Latebat (p. 33) na edição de 1744. Vico considera o poder da imagem de provocar maior impacto na memória porque irá gerar a construção de objetos mentais ou caracteres poéticos. Tais caracteres poéticos possuem suas bases na lingua mentale comum (§161) e na topica sensibile (§495 e n. 249 e 345) . Bacon foi profundamente influenciado pela obra Magia Naturalis, de Giovanni Battista Porta, publicada em 1558. Porta (1535-1615), célebre mágico e um dos primeiros cientistas, havia se estabelecido em Nápoles, cidade de Vico, em 1560, e publicou um tratado sobre a arte da memória. Nesta obra encontram-se tópicos referentes à memória como: a imaginação desenha imagens na memória como se tivesse um lápis; figuras humanas servem como imagens de memória de acordo com sua capacidade de impressionar, sendo belas ou ridículas; e o uso dos hieróglifos egípcios, letras e números como imagens de memoria.46 Não é conhecido se Vico teve acesso à obra de Porta, mas o fato deste autor ter influenciado Bacon e este a Vico, além de o conteúdo aproximar-se do que se que observa na a gravura do Frontispício (mesmo não

42

Margareth Frankel, no estudo “The Dipintura ans the Strucute of Vico’s New Science as a Mirror of the World” em TAGLIACOZZO, Vico: Past & Present, p. 44.

43 §402.

44 Margareth Frankel, no estudo “The Dipintura ans the Strucute of Vico’s New Science as a Mirror of the

World” em TAGLIACOZZO, Vico: Past & Present, p. 45.

(30)

havendo hieróglifos egípcios na imagem, Vico chama a todos os objetos na gravura de hieróglifos) sugere uma proximidade entre as obras.

Frankel47 e Rossi sugerem que autores do Renascimento combinaram a arte da memória com imagens, ambicionando construir um “espelho do mundo”: uma teia de relações e formas que refletissem a estrutura da realidade. O propósito de tal combinação é de se atingir o conhecimento total, decifrando os segredos e significados do universo. A crença de a unidade do universo poder ser refletida numa unidade de conhecimento gerou a esperança de que o homem pudesse obter a experiência e compreensão total da realidade pelas imagens que exploram relações ideais entre objetos e símbolos. A unidade do universo e do conhecimento é mencionada em diversos parágrafos, mas particularmente no parágrafo 332:

“... uma vez que este mundo de nações foi feito pelos homens, vejamos em que coisas perpetuamente concordaram e ainda concordam todos os homens, por que tais coisas poderão fornecer-nos os princípios universais e eternos, tal como devem ser de toda a ciência, sobre os quais surgiram todas as nações e todas se conservam.”

Vico lidará em sua obra com quase todos os aspectos da ciência humana, o que sugere uma crença na unidade do conhecimento e a habilidade do homem em obtê-lo. Tagliacozzo defende que o conhecimento e sua unidade são a quintessência do pensamento viquiano48 e usa a expressão Árvore da Sabedoria Poética baseando-se na passagem em que Vico compara sua Sabedoria Poética (ver segundo capítulo desse trabalho) com a figura de um tronco de árvore:

“...e as origens de todas as coisas devem por natureza ser grosseiras: devemos, por tudo isso, dar início na sabedoria poética a partir de uma sua metafisica grosseira, da qual, como um tronco, se difundam, por um ramo a lógica (límbica), a moral, a economia (governo/educação familiar), e a politica, todas poéticas; e por outro ramo, todas também poéticas, a física, que terá sido mãe da sua cosmografia e, portanto da astronomia, que nos assegurará acerca das suas filhas que são a cronologia e a geografia.” 49

Uma análise do Frontispício pode lançar luzes na forma pela qual Vico concebeu a gravura e mostra que ele procurou ativar a imaginação e a memória do leitor a fim de passar

47 Margareth Frankel, no estudo “The Dipintura ans the Strucute of Vico’s New Science as a Mirror of the

World” em TAGLIACOZZO, Vico: Past & Present, p. 45. Ver também Teoria da Imitaçao, que teve seu início com os pitagóricos e que no Renascimento fora, sobretudo, estudo e invenção: desde uma cópia irrefletida da natureza à representação do universal.

48 Tagliacozzo, An International Symposium p. 599-600 e também The Arbor Scientiae Reconceived and the

History of Vico’s Ressurection, p. 1.

(31)

conceitos de diferentes épocas e linguagens, ao mesmo tempo em que desvelava o modo do pensar característicos daquelas épocas.

O Frontispício também representa as linguagens das diferentes eras.50 Obviamente que a linguagem da primeira era, muda, feita de gestos, apresenta desafios para ser expressa na linguagem escrita. Vico soluciona a questão usando uma imagem visual, composta de objetos físicos ou hieróglifos. Simultaneamente a isso, apresenta um emblema, recurso característico da segunda era de linguagem humana. Esses elementos que resumem as linguagens das duas primeiras eras, dos deuses e heróis, antecedem as explicações que Vico fará em palavras, usando o modo de expressão característico da terceira era, a dos homens ou da razão. A imagem e suas explicações sugerem que Vico formulou a introdução da obra como uma estrutura que representaria graficamente as origens e desenvolvimento da humanidade pelas três eras e suas três linguagens.51

Frankel sugere que a gravura não estaria limitada à Introdução da Obra, mas que é extensível a toda à obra, o que demandaria de Vico a criação de um padrão previamente estabelecido para ativar a memória do leitor. Esse padrão pode ser compreendido como uma espécie de roteiro de escrita e, por conseguinte, como uma explicação técnica do modo de produção escrita de sua Ciência Nova: muitas vezes tida como repetitiva, de pensamento confuso e descuidada. Vico talvez tenha composto sua obra como uma espiral de reiterações desenhada para ser o modelo de escrita de sua teoria cíclica da história e também do desenvolvimento das nações.52

Além da dipintura, a Scienza Nuova Seconda, na edição de 1744, apresenta uma impresa53 menor, com um número menor de elementos e com a inscrição de Ignota Latebat (ela, que deitada, está escondida).54 Não há explicações de Vico sobre a Ignota. Notam-se nessa impresa elementos presentes na dipintura: a figura feminina com as têmporas aladas, o espelho convexo, o altar e o mundo. Estudos55 mencionam que ela representaria o estágio da metafísica antes do seu despertar perante a providência divina e o mundo civil. As analogias

50 Ver p. 82 maiores detalhes sobre as eras: deuses, heróis e homens.

51 Teoria defendida por Margareth Frankel, no estudo “The Dipintura ans the Strucute of Vico’s New Science as

a Mirror of the World” em TAGLIACOZZO, Vico: Past & Present, pág 49.

52A teoria cíclica da história, corsi e ricorsi, e a historia ideal eterna são temas propostos por Vico no campo da

filosofia da história, apresentados nesta pesquisa, mas que justificam uma pesquisa dedicada. (N.A)

53 Uma representação simbólica de uma linha de conduta, constituída por palavras e figuras que se interpretam

mutuamente (heráldica). (N.A)

(32)

com a obra de Ripa estão presentes na Ignota, especialmente com a figura da Ciência.56 A interpretação e possíveis estudos sobre a gravura, em especial sobre a metafísica, são em grande quantidade e continuam a entusiasmar em razão de configurarem-se em uma chave para compreensão de Vico.

O exposto permite dizer que não é incorreto afirmar que Vico teve acesso a outros modelos de livros e frontispícios que utilizavam a memória e a imaginação como chave de compreensão. Esses livros podem ter sido fonte de inspiração para o Frontispício da Ciência Nova. A questão relevante para compreensão desta obra, porém, não é o ineditismo de Vico em termos pictóricos, mas sim a relevância da fantasia ou imaginação em suas ideias e teses gerais.

56 Ver nota 25 capítulo 1.

(33)

1.2. Hieróglifos de Vico: Os Signos da Humanidade - comentários

sobre a “

Ideia

da Obra” e “Explicação da Pintura Preposta no

Frontispício Que Serve Para Introdução da Obra”

presentes no

início da Ciência Nova.

A compreensão do pensamento viquiano exige o reconhecimento de múltiplos pontos de referência conceituais dentro de seu próprio sistema. O objetivo deste capítulo é prover uma visão dos elementos chave da Ciência Nova pela explicitação de suas conexões.

Todos os livros da Ciência Nova seguem um mesmo padrão estrutural. Vico explica detalhadamente a composição do Frontispício e passa a desenvolver em profundidade os temas e ideias de sua ciência.

Nos primeiros quarenta e dois parágrafos da Ciência Nova, Vico explica a figura do Frontispício acompanhada de uma explicação de alguns conceitos que constituem sua nova ciência. Destes parágrafos, os primeiros trinta, explicam os símbolos presentes no Frontispício, foco da análise que se fará neste capítulo do presente trabalho.

Vico inicia a obra citando o tebano Cebes57, discípulo de Sócrates, para tomar a Tábua de Cebes como referência de elaboração da sua Tábua das Coisas Civis. O mundo civil — o comportamento antropológico do homem em seu contexto social — é a tessitura principal da composição viquiana. Essa tábua será desenvolvida nos cinco livros que constituem a Scienza Nuova:

1. Do Estabelecimento dos Princípios

2. Da Sabedoria Poética

3. Da Descoberta do Verdadeiro Homero

4. Do Curso que Fazem as Nações

5. Do Retorno das Coisas Humanas no Ressurgimento das Nações.

A dipintura representa os cinco livros da Scienza Nuova.

57 Cebes foi discípulo de Sócrates e assistiu seus últimos momentos no cárcere; era também discípulo do

pitagórico Filone. Cebes está presente nos diálogos Criton e Fédon de Platão. Tábua das Coisas Civis: ver no diálogo Pinax, Tavola de Cibete. Talvez não por acaso, Cebes tem um capítulo a ele dedicado na obra

(34)

A providência divina e a Metafísica.

Vico inicia a explicação da dipintura apresentando a providência divina58, representada pelo triângulo luminoso que contém, no centro, o olho de Deus. Uma mulher de têmporas aladas contempla Deus e nele o mundo das mentes humanas (ou o mundo metafísico), desse modo, mostra-se que a providência divina incide sobre o mundo civil (almas humanas).

A metafísica busca a compreensão da mente humana (ou da própria metafísica) pela providência divina. Sem a providência não é possível aproximar-se de um conhecimento da mente humana. Essa metafísica, ao contemplar em Deus o mundo das mentes humanas, anuncia que há uma providência divina sempre presente, embora passiva, necessária à criação do mundo civil.

Vico denuncia a incompletude da metafísica de seu tempo, que enfatizava apenas temas do mundo natural. Para ele, a metafisica também deveria ser contemplada à luz da marcante característica humana de ser social. Portanto, a metafisica, sempre a contemplar a providência divina, deve tratar tanto de questões de ordem natural como de ordem civil. Vico utiliza um globo, sobre o qual está apoiada a metafísica, para representar o mundo natural e usa hieróglifos para representar o mundo civil. O globo, apoiado parcialmente sobre o altar, indica que, até aquele momento, o foco principal dos filósofos era o mundo natural, demonstrando que metafisica não contemplava, na providência divina, o mundo civil:

“Por isso o globo, ou seja, o mundo físico ou natural está apoiado apenas numa parte do altar; os filósofos, tendo até agora, contemplado a providência divina só através da ordem natural, dela somente demonstraram uma parte, pela qual os homens oferecem a Deus, como Mente soberana, livre e absoluta de natureza (porquanto, com o seu eterno conselho, nos deu naturalmente o ser, e naturalmente no-lo conserva), as adorações com sacrifícios e outras honras divinas; mas não a contemplaram já pela parte que era mais própria dos homens, cuja natureza tem esta propriedade principal: a de serem sociáveis.”59

(35)

O mundo natural criado por Deus e o mundo civil, ou das nações, criado pelos homens é uma distinção fundamental para Vico. Outro conceito chave para Vico é o homem estar ocupado em conhecer tão somente o mundo de Deus:

“Mas, nessa densa noite de trevas de que está coberta para nós a primeira antiguidade, aparece esta luz eterna, que não declina esta verdade, que de modo nenhum se pode pôr em dúvida: que este mundo civil foi certamente feito pelos homens, pelo que se podem, porque se devem, descobrir os princípios dentro das modificações da nossa própria mente humana. O que, a quem quer que nisso reflita, deve causar admiração, como todos os filósofos se esforçaram seriamente por conseguir a ciência deste mundo natural, do qual, porquanto Deus o fez, só ele possui desse a ciência; e negligenciaram o meditar sobre este mundo das nações, ou seja mundo civil, da qual porque o haviam feito os homens dele podiam os homens conseguir a ciência.” (§ 331)

Globo dividido: metafisica do mundo natural Hieróglifos que representam as instituições civis

Na Scienza Nuova o comportamento antropológico do homem está imerso em um contexto social e o que foi feito pelo homem, pode e deve ser conhecido por ele. O mundo civil é produto do homem e, portanto, pode-se conhecer sua gênese e desenvolvimento. Ao legitimar os fatos, aproxima-se da verdade (§331): “que este mundo civil foi certamente feito pelos homens, pelo que se podem, porque se devem, descobrir os princípios dentro das modificações da nossa própria mente humana.”

Mondolfo60 afirma que Vico se apropria de uma premissa histórica: verum et factum convertuntur (a verdade e o fato se convergem) e esse conceito importa como fonte metodológica para a sua obra. Segundo ele, Fílon de Alexandria (25ac-50dc) faz uma antecipação desse conceito em seu texto Quod Deus sit immutabilis. Haveria ainda uma referência anterior a Fílon em um tratado pseudo-hipocrático, no qual o autor parte do pressuposto de que as técnicas humanas são imitações inconscientes dos processos naturais e

(36)

nessas imitações, portanto, estariam as chaves para a compreensão dos mistérios da natureza. Dai segue-se a passagem pesquisada por Mondolfo: “(os homens) conhecem o que fazem,

enquanto não conhecem o que imitam”. O “fazer” como fonte e condição do conhecimento é o princípio gnosiológico defendido for Fílon, retomado por Vico, dezoito séculos mais tarde.

A ciência natural, que até então era matéria de estudo filosófico, só pode ser verdadeiramente entendida por seu Criador, pois só ele pode possuir essa ciência. Do mesmo modo, o mundo civil pode ser verdadeiramente conhecido pelos autores dessa obra: os próprios homens: “... que este mundo civil foi certamente feito pelos homens, pelo que se podem, porque se devem, descobrir os princípios dentro das modificações da nossa própria

mente humana.”61

No Capítulo I do Antiquissima62 (1710), intitulado De Vero & Facto, Vico inicia o parágrafo com o mesmo conceito: “Latinis verum, & factum reciprocantur, seu, ut Scholarum vulgus loquitur, convertuntur;”.63 Vico utiliza como base o princípio verum-factum para construção conceitual de uma de suas ideias matriciais: a nova arte crítica que busca na conjunção da verdade filosófica e do fato filosófico, a possível leitura de reconstrução da história. Ao conhecer as causas cria-se o fato e ao criar o fato conhecem-se as causas. Portanto, não existe um fato puramente objetivo e nenhuma verdade absoluta.64 A síntese entre o ideal e real, entre o verdadeiro e o certo, ocorre ao encontrar o fato no verdadeiro e o verdadeiro no fato. Na passagem “pelo que se podem, porque se devem,

descobrir os princípios dentro das modificações da nossa própria mente humana” (§331) e em várias outras da CN, Vico demonstra grande interesse pelas transformações da mente e sua relação com o tipo de pensamento, antecipando em forma germinal, as bases da neurologia, ciência que seria desenvolvida duzentos anos depois. As relações entre o tipo de mente e pensamento serão explicadas nas diferentes eras da humanidade (cap. II p. 78).

Retomando a questão da sociabilidade humana, Vico toma como prova de sua inerência o fato de os homens após a queda (após o pecado original) ainda vagarem como bestas selvagens; condição a ser alterada por ordenação e disposição de Deus que os fez viver

61 §331.

62 Vico concebeu o Antiquissima Italorum sapientia como uma trilogia: I Metafisica, II Física e III Ética. Apenas

o livro da Metafisica é conhecido. O livro da Física foi publicado postumamente, mas perdeu-se e o livro da Ética não chegou a ser escrito.

63 Para os latinos, a verdade e o fato são recíprocos, ou como é comumente dito pelos Escolásticos, eles são

conversíveis entre si.

(37)

em sociedade e com justiça, celebrando sua natureza social como prova da natureza civil do homem. Justifica-se assim a existência de um direito natural. Essa “pseudo-conduta” (ou

conduta passiva) da providência é explicada por Vico como uma teologia civil refletida na providência divina, importante tema da Ciência Nova. A verdadeira natureza civil do homem é sua natureza social e seu pendor para a vida em sociedade. No parágrafo 135, Dos Elementos (ou Princípios), Vico afirma: “... o gênero humano, desde que há memória no mundo, viveu e vive convenientemente em sociedade”.

É possível inferir dessa concepção que há uma potencial relação de causa e efeito entre a pseudo-ação da providência divina e a mente dos homens caídos, resultando dela o resgate da natureza do homem que é a de viver em sociedade e não como bestas errantes. Para ser digno, o homem precisa se estabelecer, convivendo em sociedade.

Hércules, a Virgem e Saturno.

Vico faz referência ao Leão e à Virgem desenhados no escudo. É uma referência a Hércules que matou o leão nemeu, vomitador de chamas. Nessa referência, o leão seria a grande floresta incendiada sem o que a terra poderia ser cultivada e não teria início a agricultura, façanha primordial de Hércules. Toda nação humana possui seu Hércules, típico herói político que antecede os militares e simboliza os fundadores das nações.

Na imagem, a Virgem usa uma coroa de espigas, cujos grãos que são alimento para o homem correspondem em valor ao “ouro”. A contagem do tempo, por conseguinte, dava-se pela sucessão das colheitas dos grãos, do “ouro”.

Para os latinos, Saturno (Cronos para os gregos) está associado à ação de semear (satio) e à contagem do tempo. Não é possível semear fora do tempo.65 É nessa idade,

(38)

chamada de idade do ouro, que, segundo os poetas, os deuses conviviam na terra com os heróis. Esses primeiros homens, simples e rudes, por engano de robustíssimas fantasias, repletas de superstições acreditavam ver deuses na terra. Essa uniformidade fantasiosa da realidade ocorreu entre diversos povos — orientais, egípcios, gregos e latinos — sem que houvesse entre eles conhecimento uns dos outros.

Considerando o exposto até o momento pode-se definir alguns elementos constitutivos da tese viquiana:

1) Toda a nação teve na figura de um tipo poético, um fundador, cuja primeira realização foi iniciar o cultivo da terra. Este herói político precede os heróis de guerra (Vico cataloga alguns no curso das nações, como veremos adiante).

2) O alimento foi o primeiro “ouro” da humanidade.

3) A mente do homem, rude e simples, contava com o elemento fantástico e imaginativo como plataforma de compreensão do seu entorno. Seu raciocínio era débil e a razão se encontrava em fase germinal.

Hércules e o Leão e Virgem e o Leão que subiram aos céus66

Segundo Vico, a presença de elementos semelhantes em nações diversas e estranhas entre si é mais uma demonstração da existência da providência divina.

(39)

Em relação ao altar presente na imagem, Vico explica que não deve parecer indecoroso que o mesmo esteja sob o globo (algo que se pode entender como desrespeitoso ou herético na tradição judaico-cristã): “... os primeiros altares do mundo foram erigidos pelos gentios, o primeiro céu dos poetas;”.67 Esse mesmo altar, mais tarde, subiria aos céus na forma de

estrelas, assim como Deuses e Heróis:

A constelação de Altar, de acordo com os mitógrafos clássicos, representava o altar no qual os deuses do Olimpo, fizeram um juramento de fidelidade, antes da batalha contra os Titãs.68

Sobre os primeiros homens, afirma:

“(os poetas); os quais, nas suas fabulas, nos transmitiram fielmente ter o Céu reinado na terra sobre os homens e ter deixado grandes benefícios ao gênero humano, no tempo em que os primeiros homens, como crianças do nascente gênero humano, acreditaram que o céu não estaria mais acima do que a altura dos montes (como ainda agora as crianças o creem como pouco mais alto que o telhado)”. 69

Para Vico, a criança é o exemplo de compreensão baseada na poesia, ou seja, um modo de compreender cuja base é o sentimento, a fantasia e uma razão débil. Os primeiros homens eram como crianças, recém-nascidas, do gênero humano. Na seção segunda Dos Elementos observam-se as seguintes dignidades (ou axiomas):

“É da natureza das crianças, que com as ideias e nomes dos homens, mulheres e coisas que pela primeira vez conheceram, a partir delas e com eles aprendem depois e denominam todos os homens, mulheres e coisas que têm com as primeiras alguma semelhança com a relação”.70

“O mais sublime trabalho da poesia é dar às coisas insensatas sentido e paixão, e é propriedade das crianças tomar coisas inanimadas entre as mãos e, divertindo-se falar-lhes como se elas fossem pessoas vivas”.71

67 § 4.

68 CELLARIUS, Apêndice. 69 § 4.

Referências

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