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4. OS SABERES DAS/OS ENFERMEIRAS/OS DOCENTES NOS CENÁRIOS E

4.3 Saber Disciplinar

Entre os saberes docentes identificados por Tardif (2010, p. 38), o disciplinar é o que causa maiores questionamentos, uma vez que “os saberes das disciplinas emergem da tradição cultural e dos grupos sociais produtores de saberes”, ou seja, os saberes formados em

determinada área de conhecimento geralmente são produzidos por outros pesquisadores, são consolidados em programas e difundidos pela instituição formadora; no caso, pelos docentes que disseminam esses saberes específicos da área.

Como foco de análise, consideramos o contexto da Atenção Básica em que a atuação do docente centralizou no programa de atenção integral a Saúde da Mulher. Nosso olhar inevitavelmente direcionou-se tanto para os conhecimentos produzidos pelos docentes nessa área, quanto para os conteúdos e as formas de abordagem para o aluno e usuária do serviço.

Tendo como referência a consulta de pré-natal de baixo risco, o movimento realizado pelos docentes segue desde as orientações básicas para a gestante no que diz respeito às mudanças corporais causados pela gestação, hábitos saudáveis, alimentação básica, solicitações de exames de rotina; até procedimentos específicos, como cálculos da idade gestacional, data provável do parto, cálculo de IMC, Manobras de Leopold29 para detecção de apresentação fetal, ausculta do Batimento Cardíaco Fetal (BCF), entre outros.

Destacamos que alguns fatores imprevisíveis surgem no campo de estágio, o que requer a criatividade do docente para esclarecer dúvidas, acrescentar alguma informação e estimular a curiosidade do aluno. Por exemplo:

A primeira consulta do dia é de uma gestante que veio do interior, do município de Bailique. Essa informa que já tinha iniciado o pré-natal naquele município, mas como sua gestação era considerada de alto risco veio para a capital mais cedo para ter uma melhor assistência. A gestante trouxe o resultado de vários exames realizados naquele município e informa que tem o útero bicorno30. A professora aproveita essa informação e explica o seu significado, fazendo um desenho esquemático do tipo de útero. Explica que trata-se de uma situação de risco e faz o desenho para melhor visualização, mas ao mesmo tempo tranquiliza a gestante e informa que ela teve uma ótima atitude como prevenção de vir para a capital, caso necessitasse de alguma intervenção cirúrgica (Observação – Diário de campo – Profa. Elizabeth – 12.03.2013)

Verificamos que, a partir dessa situação, a docente aproveita a oportunidade para explicar aos alunos e à gestante o que é um “útero bicorno”, utilizando um desenho esquemático e relatando os riscos que a gestante correria ao ter o parto sem auxílio.

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Trata-se de palpação abdominal para determinar situação, apresentação, posição e tamanho fetal através de quatro manobras: 1ª - palpa-se o fundo uterino procurando identificar o polo fetal que ocupa; 2ª – palpa-se os flancos da mãe para determinar a situação e posição do dorso fetal; 3ª – permite palpar o polo fetal que se apresenta, que normalmente é o cefálico; e, 4ª – permite avaliar o encaixamento da apresentação na pelve e a flexão (BRASIL, 2006).

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É uma má formação uterina em que existe uma membrana dividindo o útero em dois lados na parte interna (ZUGAIB, 2008).

Em outros momentos, os docentes utilizam de recursos específicos da profissão para agilizar o atendimento. No caso da consulta de pré-natal, para ser calculada a idade gestacional e a data provável do parto, utiliza-se o disco gestograma. Caso não tenham esse instrumento acessível, os alunos podem realizar o cálculo de forma manual. Identificamos que alguns alunos tinham dificuldades para realizar o cálculo da idade gestacional com o apoio do gestograma e tampouco tinham habilidade para o cálculo manual. Também presentavam insegurança e nervosismo para iniciar a consulta, sendo que demoravam muito tempo para encerrar o procedimento. Ao final da manhã, o professor reúne com os alunos e comenta:

Prof. Davi: Percebo que vocês estão muito inseguros para realizar os procedimentos durante a consulta, vocês precisam estudar mais, precisam conhecer o roteiro da consulta... [um dos alunos tenta se justificar:]

Aluno: Não sinto à vontade com a sala muito cheia... tem muita gente, a gente não sente à vontade, a gestante não fica à vontade...

Prof. Davi: Nesse momento é necessário deixar outros alunos na sala, não podemos perder a oportunidade, pois não estamos tendo muitas consultas na unidade (Observação – Diário de campo – 05.04.2013)

Quando nós perguntamos sobre por que dar prioridade para o uso do gestograma durante as consultas de pré-natal, o professor assim justifica:

Na verdade, eles [alunos] são orientados com relação a esse cálculo. O gestograma ele é utilizado pelo Ministério da Saúde. Mas, quando não tem o gestograma a gente realiza a regra básica manualmente [...] Só que ainda tem alguns acadêmicos que confundem, às vezes a gente coloca essa relação logo no início para tirar as dúvidas que surgem durante o estágio, e ir se familiarizando com o gestograma. Eu sempre gosto de associar, fazer o cálculo com e sem o gestograma. Eles precisam saber [calcular] sem o uso do gestograma; pode ocorrer de não ter no local onde eles irão trabalhar e fazendo manualmente eles aprendem mesmo (Entrevista – Prof. Davi – 05.11.2013)

Ao ensinar as duas formas de cálculo, o professor considera em sua prática pedagógica o conhecimento da realidade regional. No caso de esses futuros profissionais atuarem em municípios que não dispõem de todos os recursos, como o gestograma, eles têm outro modo de desenvolver suas atividades utilizando outros meios – no caso o cálculo manual para a data provável do parto.

Nessa direção, a atuação dos docentes proporciona ao aluno, fundamentação teórica e prática para aquisição de competências técnico-científicas e socioeducativas no sentido de “promover estilos de vida saudáveis, conciliando as necessidades tanto dos seus

clientes/pacientes quanto às de sua comunidade, atuando como agente de transformação social” (BRASIL, 2001, p. 3).

Nesse contexto, o que vai distinguir a atuação de cada docente, são as formas de abordagem e prioridade estabelecidas por eles, a partir das diversas situações que vivenciam no cenário de estágio. Extraímos alguns excertos nos quais os docentes esclarecem as dúvidas das gestantes de forma simples, objetiva e com domínio da área de conhecimento.

Gestante: Por que a gente sente tanta dor de cabeça?

Profa. Elizabeth: É preciso investigar, pois os sintomas pode ser de várias causas, pode estar relacionado a hipertensão, a insônia, alimentação deficiente, entre outras causas. Vamos solicitar alguns exames para podermos investigar (Observação – Diário de campo –11.03.203).

Prof. Felipe: O que a senhora tem sentido nessa gravidez?

Gestante: Para mim, essa é uma gestação ao contrário, sinto cansaço, dor nos seios, será que vai piorar?

Prof. Felipe: No início da gestação aumenta a quantidade de hormônio, traz uma série de sintomas e mudanças para a mulher, isso é considerado normal. Na verdade acontece, mas vamos solicitar alguns exames para verificar se tem anemia ou alguma doença associada. Gravidez não é doença, mas em alguns casos precisamos ficar atentos quanto o surgimento de algumas doenças (Observação – Diário de campo – 06.06.2013).

Ao mesmo tempo em que os docentes respondem aos questionamentos das gestantes utilizando termos mais acessíveis, a abordagem com os alunos é diferenciada, eles lançam mão de termos técnicos, novos questionamentos, estimulando-os a refletirem sobre a prática. Temos, a seguir, um exemplo de dois diálogos entre o professor e aluna, durante a realização do exame físico de uma gestante.

Profa. Elizabeth: Quais os encaminhamentos para uma gestante que se encontra em baixo peso? Qual será nossa conduta nesses casos?

Aluna: Ela será encaminhada para avaliação com a nutricionista para receber orientações quanto à alimentação adequada e fazer o acompanhamento. Como ela está apenas com nove semanas, ainda não dá para avaliar a altura uterina (Observação – Diário de campo – 01.04.2013).

Prof. Felipe: Quais são os sinais presuntivos da gravidez e quais as alterações no corpo da mulher que os identifica?

das aréolas das mamas, aumento dos seios e do quadril da mulher.

Prof. Felipe: O que você observou de diferente? Me diga os termos técnicos dos sinais presuntivos da gravidez?

Aluna: Nas mamas, as aréolas estão escurecidas, há presença de Tubérculo de Montgomery31, não há presença de Rede de Haller32, não há presença de

linha nigra.

Prof. Felipe: Isso mesmo, esses são os sinais presuntivos da gravidez. Como a gestante está no início da gravidez, apenas com oito semanas, não dá para verificar a altura uterina; só vai estar palpável a partir de dez a doze semanas (Observação – Diário de campo – 06.06.2013)

Ao analisar os excertos acima citados, é possível dizer que os docentes articulam adequadamente o saber teórico e o saber da prática. A cada consulta, as informações fluem conforme a necessidade, principalmente quando o docente possui uma experiência na área.

Ainda na perspectiva de análise da relação teoria/prática no curso de Enfermagem, verificamos a fragilidade no planejamento das atividades curriculares, pois os professores informam que não conversam entre si para discutir os conteúdos a serem trabalhados:

Na verdade pelo campo que você vai atuar, principalmente nessas aulas práticas, relacionar a teoria com a prática, mas não vou mentir, não tenho contato com o professor que dá a teoria. Eu pergunto para os alunos “o que vocês estão vendo?” (Entrevista – Profa. Sofia – 01.11.2013)

Conforme o relato, a professora trabalha de forma isolada. Na verdade, muitos conteúdos existentes nos currículos formais sofrem alterações no decorrer do curso. Ao perguntarmos se já tinha ocorrido alguma situação em que não se sentiu preparada para atuar no estágio supervisionado e qual a conduta considerada mais adequada diante dessas situações, destacamos os depoimentos que se seguem:

[...] eu acho assim, que o enfermeiro ele é o profissional capacitado para acompanhar em qualquer setor, mas eu acredito que vai muito da afinidade. Se eu pudesse sempre seguir uma questão de afinidade, acho que o desempenho seria muito melhor (Entrevista – Profa. Elizabeth – 01.11.2013) Sim, é limitador, muitas vezes você tem a formação, mas você não tem a experiência devida. Com relação ao estágio isso limita, tem que estar sempre correndo atrás do conhecimento [...] Essas experiências vão melhorando gradativamente [...] Eles [coordenação do curso] não querem saber da sua especialidade, infelizmente, era para ser direcionado de acordo com a tua área de atuação ou a tua experiência (Entrevista - Prof. Davi - 05.11.2013)

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Presença de pequenos nódulos na aréola mamária.

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Refletimos por meio desses relatos que a atividade profissional, assim como o ensino não é uma “atividade para amadores” como nos fala Guimarães (2006). Daí a preocupação expressa pelos docentes de que há necessidade de conhecer suas limitações, investir nas suas habilidades, proporcionar momentos de Educação continuada, pois nem sempre a formação recebida na universidade prepara o suficiente para atuar nas diversas áreas da profissão.

A construção da identidade da/o enfermeira/o docente, fazendo uma analogia com a identidade do professor proposta por Pimenta e Lima (2009, p. 62) “é construída ao longo de sua trajetória como profissional do magistério”. No caso da Enfermagem essa construção se dá durante sua atuação nos diversos espaços de atuação profissional. No entanto, é no espaço da formação que se fortalecem “as opções e intenções da profissão”; ou seja, o período de estágio torna-se apropriado para definição de ser e estar na profissão, associando competências, habilidades, saberes, afinidades, atitudes e compromisso profissional.

Os professores declararam que durante a formação, as disciplinas da Licenciatura foram imprescindíveis para iniciar suas atividades na área da docência como o primeiro emprego:

[...] então, o meu primeiro emprego foi como professora no Ensino Médio, eu dava aula todos os dias à noite, de biologia, [...] foi primeiro emprego propriamente dito, tudo direitinho, tudo assinado, contrato administrativo (Entrevista – Profa. Elizabeth – 01.11.2013)

O estado tinha carência de professor de ciências, não tinha o curso de Biologia em Macapá até então [...] Fiquei no Ensino Médio trabalhando biologia desde 98. Concursado, ficava no curso técnico e Ensino Médio, mas na época eu comecei pelo contrato administrativo em biologia (Entrevista Prof. Davi – 05.11.2013)

Na verdade eu sempre me identifiquei com a docência. Logo quando eu formei, no estado tinha contrato para professor de ciências, então os enfermeiros podiam dar aulas de ciências; hoje em dia não pode mais [...] Fui me inserindo na questão da docência e depois dessa fase do ensino fundamental eu passei para a fase de técnico de Enfermagem (Entrevista – Profa. Sofia – 01.11.2013)

Conforme os relatos, a inserção na docência ocorrida nos ensinos Fundamental e Médio, devido à carência de professores da área no estado, proporcionou subsídios para atuação no Ensino Superior. Nessa perspectiva, é no período de formação, por meio das disciplinas da Licenciatura que se abrem novos campos de atuação nas quais a/o enfermeira/o docente se atenta para a área do ensino aprimorando suas habilidades como educador e adquirindo competências que o habilite para a uma Educação permanente.