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Saberes da saúde e dons espirituais

3 DESCRIÇÃO DOS TRÊS MODELOS EDUCATIVOS NA ALDEIA INDÍGENA NOVA VIDA.

80 FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO FUNAI /DEPARTAMENTO DE DOCUMENTAÇÃO DEDOC

3.3 Educação comunitária indígena

3.3.2 Saberes da saúde e dons espirituais

Os saberes sobre saúde e dons espirituais, são envoltos na mística do segredo certamente por algum tipo de proteção para com a memória ainda viva do grupo. Atribui-se valor de coisa sagrada, e busca-se preservar o status interno de quem conhece os segredos da natureza e das histórias do grupo.

93 Este trabalho tem caráter mais doméstico, tendo participação da família ou de membros da família. Existe

Tais saberes vivem o conflito que há entre o antigo território tradicional, onde o cotidiano estava relacionado a um ecossistema ainda não tanto degradado, e o território atual, organizado em conseqüência da chegada do grupo à área da Fazenda Bahiana, em 1985, e das condições de sobrevivência em face à degradação ambiental local.

Esta esfera de saberes, transmitida pelos mais velhos aos mais jovens, reflete-se no conhecimento e aplicação de algumas plantas para rezas, beberagens, banhos; observa-se todavia a necessidade de adaptação desses saberes às características da região onde passaram a viver, visto que plantas e animais do antigo ambiente nem sempre se encontram ali.

Tais saberes envolvem conhecimento da etnomedicina, práticas de cura, conhecimentos sobre doença, nascimento e morte.

Ainda que todos os membros do grupo possam ter conhecimentos sobre plantas por tradição, cabe às mulheres o principal papel da cura no âmbito doméstico e no âmbito comunitário.

Aprende-se que o trabalho está relacionado à saúde e dons espirituais, daí tentam correlacionar tais necessidades.

Nos arredores de cada casa criam abelhas, das quais se extrai o mel, a cera; ali existem também várias plantas que são utilizadas com fins curativos e algumas com fins nutritivos, além do que possuem um terreiro onde podem realizar tarefas diversas de trabalho e laser- onde se aprende a lidar com o que podemos chamar de recursos, ou mesmo estratégias de ensino.

Nesta categoria de saberes, transmitem-se informações sobre as plantas e animais, além de outros recursos utilizados na medicina tradicional do grupo94.

Aprende-se e ensina-se, através da convivência- seja pela observação, ensino-

aprendizagem, ou fazer junto- por exemplo, que saúde é o completo bem estar físico e

espiritual, e não apenas a ausência de doença (CIMI, s/d, p. 28-29); e que a condição de estar saudável está inteiramente ligada efetivação de melhor atuação política para as comunidades e terras indígenas por parte do Estado Nacional. Tal condição é explicitada em reuniões internas, do grupo, como naquelas abertas à outros segmentos de outras comunidades/sociedades.

Conversando com as índias velhas, como eles assim chamam:

a doença quer dizer duas coisas, ou pegar alguma dessas doenças do mundo dos brancos, ou perder a ligação com os espíritos protetores da natureza, e que antigamente no tempo em que nosso povo vivia no mato, não havia nada disso. Tinha sim, cobra e outros bichos, mas doenças assim não.95

Ensina-se que para os Pataxó Hãhãhãi, assim como para diversos grupos indígenas, o corpo, o espírito e a natureza, são um só, logo a doença implica uma espécie de desencontro entre o corpo, o espírito e a natureza, e a cura é sua harmonização, ou o reencontro conosco e com o universo (CIMI, s/d, p.38-39).

Informa-se, a partir da educação doméstica, que esse reencontro ou harmonização, deve-se a uma série de rigores que implicam em entender melhor o funcionamento da natureza, aprender quais as plantas que devem servir de alimento ou de remédio, mas afirmam, que para isso é preciso ter a terra assegurada com algum tipo de auxílio que lhes garantam a sua manutenção no local conforme depoimento a seguir:

a gente vive no mundo, na natureza, e a gente precisa ter saúde, mas só tem saúde se as coisa da natureza tiver tudo bem, por isso é que tem que se ensinar desde as crianças, em casa mesmo, para aprender a força da planta, a cura, nos bichos também, das coisas de deus, mas isso se aprende devagar, com muito respeito, que tem coisa que cura e que também mata se não sabe usar direito...mas

para isso tem que ter a terra boa, tem que ter ajuda para a terra dar alguma coisa... aí a gente pode ficar de pé96 na natureza...97

A planta como alimento tem que ser observada se está verde, de vez, ou madura, se é mesmo boa para comer, ou se faz mal à saúde. Assim como se observa isso, a tradição diz que tem momentos específicos para lidar com as plantas, seja no seu aspecto nutricional, de comida mesmo, ou no seu aspecto medicinal- que não deixa de ser nutricional.

As depoentes também afirmaram que:

se é para curar, para fazer remédio, tem que ver a hora de colher a planta- a hora que o cheiro da planta está mais forte, mais concentrado- de manhãzinha cedo, ou de tardinha, e principalmente à noite. Cada remédio tem sua cura, mas não pode deixar ficar velho, tem que ser remédio novo... tem uns que demora fazendo, uns dias, mas tem que ser remédio novo...e quem toma tem que ficar de resguardo, se proteger do vento, não pode sair no sereno...98

Das plantas medicinais, algumas têm o poder da cura do corpo, outras do corpo e do espírito, por isso eles afirmam que algumas vezes se precisa rezar também com as plantas,

para tirar as coisas ruins. Têm plantas que tem o poder de chamar os encantados, espíritos bons, curadores, aí eles vêm, desce e ajuda a gente99.

Para que as curas através de plantas e animais tenham efeito, dizem que são observados também alguns tabus, o que não foi de todo confirmado pelo grupo100_ proibição no consumo da carne de tamanduá, pois o corpo ficaria todo com chagas. Outros disseram que,

96 Nota do autor: ficar de pé é uma expressão que eqüivale a ser gente, posicionar-se, estar firme. 97 Depoimento recolhido entre as índias Dona Santa e Dona Rosa.

98 Depoimento recolhido entre as índias Dona Santa e Dona Rosa. 99 Depoimento recolhido entre as índias Dona Santa e Dona Rosa.

pelo fato de os índios Pataxó Hãhãhãi se originarem da “orelha de pau”101, eles não podem

comer tartaruga, que teria sido a grande instrutora dos primeiros Pataxó Hãhãhãi102, pois teriam sido as tartarugas que lhes ensinaram sobre as coisas da vida e a natureza.

Grande parte das doenças que atingem o grupo são relacionadas à condições de degradação ambiental oriundas do modelo dominante de exploração do território: baixa qualidade alimentar, verminoses, e qualidade questionável da água.

Relacionados à situação do homem no mundo, cabem também observações sobre nascimento e morte. Acredita-se que cada família deve ter cachorros em casa, pois eles seriam os guardiães do espírito daquele que chega, daquele que nasce.

Acredita-se que a concepção é fruto da relação sexual entre homem e mulher, daí cabe se preparar para o nascimento da criança, que ultimamente tem saído do poder da parteira, indo nascer em hospital.

Mesmo tendo nascido em hospital, a família tem obrigação de fazer uma bebida chamada

temperada, bastante conhecida na área rural local, que é feita a partir da infusão de diversas

plantas aromáticas e que tem a função de limpar o organismo, servindo também de elemento de socialização, pois é servida para os pais e aos visitantes que vão ver a criança.

A mãe recém chegada deve estar submetida aos preceitos de cuidar da criança. Afirmam que nos tempos que eles viviam na mata, “a mãe logo que terminava de parir, demorava

um pouco e ia trabalhar”, e hoje descansam no hospital. Quando o parto ocorre na própria

aldeia, a mãe retorna às atividades domésticas de imediato, e gradativamente à vida comunitária.

O crescimento é guiado pelas atividades de socialização das crianças no grupo- acompanhando os pais, os mais velhos, nas brincadeiras e jogos, auxiliando no convívio doméstico e comunitário- pois compete ao homem desde criança também “aprender sobre

101 Espécie de cogumelo que ocorre na madeira. 102 Informação recolhida com Valdemir Ribeiro.

o mundo dos espíritos, pois todos iremos morrer um dia”. Daí o cuidado com a morte, e

com os mortos.

Tendo confirmado a morte, eles vão enterrar o defunto no cemitério, e deixam lá. Podem celebrar missa cristã e mesmo dançar um Toré. Depois de algum tempo retornam para ver como está o morto mas, dizem, nem todo mundo pode ir lá. Daí deve soltar o espírito do

morto para a casa dos espíritos- o que segredam.