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Como vimos anteriormente, nossos(as) entrevistados(as), em sua maioria, vivenciam uma solidão doméstica cotidiana que se torna especialmente perceptível quando falam da presença da mesa e da televisão ao comer e do desânimo de cozinhar apenas para si.

Comer, principalmente à mesa, para algumas pessoas é simbolicamente convivial e por isso faz lembrar os ausentes e o estar só. O hábito de ver televisão durante as refeições, que para muitos(as) deles(as) é tido como errado, já que compromete o respeito com o momento e pode até mesmo fazer mal, é mais comum entre as pessoas maiores de 80 anos. Tanto para elas, quanto para a faixa de 70 anos, uma expressão comum foi considerar a TV como companhia, forma de não se sentir só, de ter a noção de algum movimento na casa, ter estímulo para comer, como podemos observar nas citações abaixo:

[...] é costume agora, eu falo vou comer lá na sala sozinha, ao menos tem a companhia da televisão, que aí me dá apetite, entendeu? (Hortência, 78 anos).

[...] ligo a televisão da copa pra me fazer companhia, é o hábito das vozes que a gente carrega. (Rosa, 79 anos).

[...] televisão é só pra ter um movimento, assim, dentro da minha casa, pra num ver que eu tô tão sozinha, né? [...] a gente sozinha, sentá numa mesa sozinha é sem graça demais [...] a gente sozinha num tem graça pra nada. (Judite, 85 anos).

Embora homens também vejam ou ouçam a TV enquanto comem, sua utilização como companhia foi relatada apenas por mulheres.

Cozinhar também não é um ato egoísta, fazer comida apenas para si pode ser desanimador, “sem graça” e trazer desperdício. Não há por que fazer comida em casa, é mais barato comer fora, seja só ou com o(a) esposo(a), evita trabalho e desperdício, embora possam gostar de cozinhar quando há mais pessoas.

Comer sozinho(a) muda hábitos. Não se pode mais comprar muita coisa, um frango inteiro, por exemplo. Podem adiar o momento das refeições, desistir de fazê-las por não gostar

de cozinhar só para si, ou mudar a quantidade e qualidade do que ingerem, o que nem sempre significa se alimentar melhor. Por outro lado, a busca por hábitos mais saudáveis se dá também pelo fato de, morando sós, sem os(as) filhos(as) por perto, correrem o risco de passarem mal e não terem ninguém para socorrê-los. Percebemos ao menos em dois relatos uma relação entre parar de jantar, ou comer menos à noite, e o receio de passar mal sozinho(a), sem ninguém para ver e ajudar.

Quando perguntávamos com quem comiam, foi corrente a expressão “eu e Deus”. Assim, em alguns casos, as crenças religiosas93 de certo modo amenizam o sentimento de solidão. Como podemos visualizar na citação seguinte, e já fizemos menção anteriormente, alimentar-se pode ser um ritual sagrado de comunhão com a divindade94:

[...] eu como com Jesus, falando com Jesus Cristo. O meu amigo na hora das minhas refeições, em qualquer lugar que eu estou, é Jesus Cristo, é a Trindade Divina [...] Televisão? Não! Na hora da minha refeição é sagrado, eu sinto que eu não estou sozinha porque quando Cristo partiu o pão, e falou assim: esse é o meu corpo, eu acho que aquela refeição é de alimentar o corpo e a alma, e naquele momento que estou comendo eu lembro a ceia de Jesus e sinto a presença dele ali, durante as refeições. (Fátima, 63 anos). Todos(as) têm familiares, seja filhos(as), irmãos(as), ou pais e mães vivos, mas, como vimos anteriormente, nem sempre o encontro de toda a família é possível. Em alguns casos, viúvos(as) apontam que, com o(a) esposo(a) vivo(a), havia maior presença de outros(as) em suas casas:

Meu marido era muito festeiro, muito alegre, ele cozinhava, chamava todo mundo, além da família, sempre tinha convidado, a minha vida em família foi muito boa, quando ele vivo, entendeu? Reunia todo mundo, minhas mesa era tudo enorme, era essas mesa de dois metros [...] agora acabou. (Hortência, 78 anos).

[...] depois que a esposa faleceu, inclusive a gente sente, que a gente vai ficano sozinho, a família vai afastano, cada um vai cuidano de si, eu sinto falta dos parente, que eu que tenho o hábito de visitá-los, lá em casa vai pouca gente. (Murilo, 85 anos).

Entendemos que, além de estarem viúvos(as), nesses casos perderam a pessoa festeira e agregadora, que cozinhava e trazia outros(as) para o convívio doméstico. Notamos também algumas situações em que cedem sua casa maior para um dos(as) filhos(as) e passam a morar

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Obtivemos esta resposta entre pessoas de religião católica.

94 O fato de não ser católico(a), não interfere na concepção de sagrado das refeições, presente entre pessoas de outras religiões.

em apartamentos pequenos que não comportam grande quantidade de pessoas, impossibilitando receber até mesmo os(as) filhos(as):

[...] eu ainda não tenho meu espaço, que eu queria ter, assim, um lugar certo pra falar assim: hoje eu vô receber fulano. Mas acontece que num dá certo, entende? (Hortência, 78 anos).

Receber familiares e filhos(as) modifica a alimentação, que se torna variada, pode ser preparada pelo(a) anfitrião(ã), servida à mesa, sem televisão. Há um clima diferente quando estão reunidos, sentem carinho e conversam, contam histórias. Sentem-no como um momento mais festivo, alegre. Nesse sentido, a fala de Rosa, 79 anos, é significativa: “[...] parece que a gente sente o carinho, aumenta o sabor da refeição, o sabor não é só a refeição”.

No entanto, como dissemos em capítulo anterior, o encontro nem sempre é visto como positivo, pois pode trazer desconforto e constrangimento:

A gente chega lá, es faz, a festa que es faz pra gente quando a gente chega lá em Roraima é matar uma tartaruga de 200, 150 quilos, pra fazer festa pra gente, aí eu fico sem graça porque eu não tô comendo mais, sabe assim, mas eu belisco cá, belisco lá, só pra num fazer desfeita, fico sem graça, né, que fez pra gente. (Vânia, 76 anos, viúva, mora só).

[...] às vez a gente vai assim numa reunião, pode ser até de família, uma festa, eu me abstenho de comer [...] é porque eu sei que vai agredir, né? (Rosa, 79 anos, viúva, mora só).

[...] eu passo apertado que o almoço deles é tarde. (Sindoval, 74 anos, viúvo e mora só).

Carla e Ana, perguntadas se com o encontro é modificado o significado da refeição, respondem:

Eu até gosto de fazer, mas eu não vejo diferença não [...] acho que alguns vão até por obrigação... é, porque eu ligo e falo: _ “oh cê tá convidado pra vir almoçar aqui em casa” [...] Eu acho que filho num precisava ser convidado pra almoçar na casa de mãe, bastava ligar e falar: _ “oh, mãe nós tamo inu p’aí, cada um de nós vai levar um prato e a gente vai almoçar com você aí na sua casa”. Então não precisava da mãe convidar os filhos pra almoçar em casa [...] então, eu acho que pra mim num tem significado algum (Carla, 64 anos, viúva, mora só).

Muda, eu não gosto da comida deles mais, né? Eu gosto do meu tipo de comida [...] não gosto também da reunião, dos assunto, dos papo, das coisa, já não gosto mais, porque a mãe tá muito velha, tá doente e tudo mais, então é uma energia muito pa baixo. Aí, quando a gente encontra, encontra só pa falar de doença, então eu num gosto (Ana, 62 anos, solteira, mora só).

Pudemos notar nessas citações que as pessoas que se constrangem com o encontro moram sós, a maior parte é viúva e possui hábitos mais individualizados devido à própria solidão, como já analisamos anteriormente.

Tratamos até o momento de algumas mudanças alimentares relativas ao envelhecimento, fundamentais para a compreensão das alterações no hábito de jantar. Para trabalhar essa refeição, traçamos três fases da vida em que situações particulares influenciam a estrutura diferenciada das refeições.