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OBSTÁCULOS À FIXAÇÃO DE UM NÍVEL DE SALÁRIO MÍNIMO CONDIZENTE COM A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

4.1. SALÁRIO MÍNIMO E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

economia nacional, e portanto, na possibilidade de fixação de determinado patamar de salário mínimo; e

ii) a questão da concentração da renda no Brasil, a qual impede que mais recursos possam ser disponibilizados para o pagamento de salários mínimos mais expressivos.

4.1. SALÁRIO MÍNIMO E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Para a análise da relação entre o nível do salário mínimo e o princípio da dignidade da pessoa humana, esta seção terá como fundamento, sobretudo, as discussões reunidas em Muniz (2010), autora que apresenta uma interessante abordagem sobre essa temática, tendo o “direito” como perspectiva de observação. Em alguns casos, foram consultadas diretamente as fontes citadas pela referida autora79.

Consoante Muniz (2010), estabelecer o significado de dignidade da pessoa humana é uma tarefa difícil, considerando-se que se trata de um termo indeterminado, não tendo, assim, definição consensual e universal. Tratar-se-ía também de um conceito em permanente construção e desenvolvimento. Tendo isso em vista, para Muniz (2010), dignidade é mais facilmente compreendida quando são consideradas as situações em que ela se mostra ausente. Nesse sentido, segundo Sarlet (2008, p. 62):

O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.

Nessa mesma linha de raciocínio, Barcellos (2008) afirma que uma pessoa não tem sua dignidade respeitada se não tiver o que comer, o que vestir, se não tiver a oportunidade de ser alfabetizada e se não dispuser de alguma forma de abrigo.

Destarte, na Constituição Cidadã a dignidade da pessoa humana foi logo incluída na seção dos “princípios fundamentais”. Em seu artigo 1º, assim dispõe a Carta Magna:

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TÍTULO I

DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania; II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;80

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Uma vez conferida à dignidade da pessoa humana o atributo de princípio fundamental do ordenamento constitucional brasileiro, ela passa a orientar a interpretação e a compreensão do sistema constitucional como um todo. De acordo com Sarlet (2006), a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental significa que o disposto no artigo 1º, inciso III, da Carta Magna, não é apenas uma declaração de conteúdo ético e moral. Segundo o autor, trata-se de uma norma jurídico-positiva com status constitucional, sendo assim, dotada de eficácia, constituindo-se em valor jurídico fundamental da comunidade. Assim, a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem constitucional, razão pela qual se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológica-valorativa (SARLET, 2006).

Nesse mesmo sentido, sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, segundo Rocha (1999, p. 35) apud Muniz (2010, p. 116):

Este princípio vincula e obriga todas as ações e políticas públicas, pois o Estado é tido como meio fundado no fim que é o homem, ao qual se há respeitar em sua dignidade fundante do sistema constituído (constitucionalizado). É esse acatamento pleno ao princípio que torna legítimas as condutas estatais, as suas ações e suas opções.

194 Desta sorte, para Muniz (2010), “considerando que toda a Constituição há de ser compreendida como uma unidade e como um sistema que privilegia determinados valores sociais, pode-se afirmar que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade da pessoa humana como um valor essencial, que lhe dá unidade de sentido” (MUNIZ, 2010, p. 118).

Dito isso, na interpretação do art. 7, inciso IV, da Constituição de 1988 - o qual define que o salário mínimo deve ser capaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social -, depreende-se a vontade do constituinte em estabelecer que o atendimento às mencionadas necessidades deve ocorrer de maneira digna. Assim, para o constituinte, não basta que quem receba salário mínimo apenas sobreviva. Estes não podem, por exemplo, passar fome, nem mesmo ficarem preocupados com a possibilidade de não se ter o que comer; nem estarem impedidos de obter uma alimentação saudável e variada por motivos de insuficiência financeira; nem dormirem ao relento ou em domicílios improvisados ou rústicos (insalubres) etc. Portanto, para o constituinte, o salário mínimo tem de ser condizente com a dignidade da pessoa humana.

Ademais, o artigo 170 da Constituição de 1988 frisa que “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos

existência digna81, conforme os ditames da justiça social...”. Ou seja, a livre iniciativa

deve visar a assegurar a todos uma existência digna. Esta deveria ser a sua finalidade, segundo a Constituição.

Entremos então na discussão da eficácia social da norma, de sua efetividade, de sua aplicação no mundo dos fatos, na vida real: o cumprimento da lei na realidade concreta. Conforme Barroso (2009), a ideia de eficácia social da norma confunde-se com a de efetividade, conceituada por esse autor como a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. A eficácia social da norma representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto seja possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social (BARROSO, 2009).

Tendo isso em vista, entre o salário mínimo previsto na Constituição, cujo valor deve condizer com a dignidade da pessoa humana, e aquele efetivamente pago no mundo fático, surge a condição da “reserva do possível” (termo jurídico). Em outras palavras, o salário

195 mínimo concreto será equivalente ao salário mínimo constitucional, “na medida do possível”, a depender da disponibilidade de recursos.

A respeito da “reserva do possível”, de acordo com Muniz (2010), a concretização dos direitos fundamentais sociais - onde se inclui o salário mínimo - depende do volume de recursos disponíveis pelo poder público. Assim:

...há uma estreita relação entre as circunstâncias econômicas e a efetividade dos direitos sociais, sendo que a onerosidade de sua implantação faz com que seu processo de implantação acabe condicionado por aspectos financeiros, subordinando-se às possibilidades orçamentárias do Estado. A esse condicionamento deu-se o nome de “reserva do possível” (MUNIZ, 2010, p. 208).

Desse modo, em conformidade com a “reserva do possível”, o salário mínimo digno só poderia ser pago na medida em que houvesse recursos econômicos suficientes para tanto. Todavia, a alegação da “reserva do possível” para efeito da fixação de determinado patamar de salário mínimo envolve questões assaz complexas, tanto no âmbito do orçamento público quanto no das relações de trabalho na iniciativa privada.

No tocante ao orçamento público, levando-se em conta a “reserva do possível”, o fato de haver ou não recursos nos cofres governamentais para a fixação de determinado nível de salário mínimo tem a ver, em larga medida, com a orientação das políticas de gastos públicos e tributária82. Quanto à política de gastos, existe estreita relação entre o valor fixado para o salário mínimo e o nível das demais despesas orçamentárias, como o pagamento de juros da dívida pública, os subsídios ou isenções fiscais para determinados setores, os patamares salariais de servidores públicos, os gastos com infraestrutura, saúde, educação, etc, e até mesmo as despesas geradas pela corrupção. Esclarece-se: consignar recursos mais generosos para determinada despesa pública pode significar contenção de verbas para outros dispêndios, que com ela competem pela mesma fonte de financiamento. Por exemplo, se o pagamento de juros da dívida pública for elevado ou houver certo número de servidores públicos com salários exorbitantes e outros privilégios, podem faltar recursos para um nível de salário mínimo mais generoso. Portanto, haver ou não recursos

82 A capacidade de geração de renda da economia, que impacta na receita pública, será analisada quando

196 para certo nível “razoável”83 de salário mínimo depende do grau de prioridade conferido a

essa política pública.

Por sua vez, a política tributária pode arrecadar mais ou menos recursos de determinados grupos de pessoas ou setores econômicos, a depender de sua orientação, proporcionando maior ou menor margem para a definição de um salário mínimo mais expressivo84.

Desse modo, considerando-se tanto o lado da despesa quanto o da receita pública, dizer que há ou não recursos para pagar determinado nível “razoável” de salário mínimo envolve eleger prioridades, sabendo-se da luta travada pelos grupos de interesse na disputa pelos recursos públicos ou nos processos decisórios que resultam na cobrança de mais ou menos tributos.

Acerca da “reserva do possível”, e levando-se em conta a prioridade que deveria ser atribuída ao salário mínimo devido à sua relação visceral com o princípio da dignidade da pessoa humana, conforme Muniz (2010, p. 209):

Pondera-se que o investimento dos recursos deverá estar vinculado juridicamente às prioridades eleitas pela Constituição. Se os meios financeiros não são ilimitados, deve-se privilegiar o atendimento dos fins considerados essenciais pela Constituição, ou seja, aqueles decorrentes da dignidade da pessoa humana (mínimo existencial), até que eles sejam realizados. Se ainda houver recursos remanescentes, estes serão destinados de acordo com as opções políticas que o pluralismo democrático reputar adequadas em cada momento.

Deixando o orçamento público de lado e entrando na análise das relações de trabalho na esfera privada, a alegação da “reserva do possível” para a fixação de determinado valor de salário mínimo deve ser observada à luz: da capacidade econômica dos empregadores de arcar com tal despesa; e do padrão de distribuição da renda. Destarte, não há como pagar salários mínimos generosos se o processo produtivo não gera renda suficiente para honrar essas despesas, lembrando que além das remunerações dos trabalhadores que recebem baixos salários (inclusive aqueles que recebem o “mínimo”), os processos produtivos geralmente também têm de proporcionar outros tipos de renda, tais como lucros, juros, aluguéis, salários dos trabalhadores qualificados etc. Assim, além da pujança

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Razoável no sentido de ser compatível com a capacidade de geração de renda pela economia e com um grau aceitável de desigualdade de renda.

84 No entanto, deve ser ponderado que a elevação da carga tributária do país, se, por um lado, proporciona

maior margem para as despesas públicas, por outro, pode reduzir a margem do setor privado para pagar determinado valor de salário mínimo a seus empregados.

197 do processo produtivo, o valor fixado para o salário mínimo também depende do poder de cada agente econômico de se apropriar de parcela da renda gerada, ou seja, o nível do salário mínimo também é determinado pelo padrão de distribuição de renda. Exemplificando: quanto maiores as parcelas de juros, de lucros e de salários dos trabalhadores qualificados, menor a fração da renda que pode ser destinada para os trabalhadores com baixa qualificação (normalmente, mal remunerados).

No caso dos trabalhadores domésticos, a reserva do possível tem de levar em consideração a renda obtida pelo empregador e também qual a parcela dessa renda ele está disposto a despender com a contratação.

Em suma, dada a previsão da Constituição Federal de que o salário mínimo tem de ser condizente com a dignidade da pessoa humana, quando se invoca a condicionalidade da “reserva do possível”, deve-se analisar não somente a capacidade de geração de renda da economia, mas também o padrão de apropriação dos rendimentos produzidos, pois, a fixação de um salário mínimo mais generoso pode ser financiada, em alguma medida, pela redução das apropriações dos demais agentes econômicos. Esses temas serão investigados, para o caso brasileiro, nas próximas duas seções.

4.2. A FORMA DE INSERÇÃO DO BRASIL NO SISTEMA-MUNDIAL E SEUS