• Nenhum resultado encontrado

SALVANDO A HONRA

No documento Toni Bentley a Entrega (páginas 164-172)

Entretanto, eu estava agora fazendo outras conexões.

Quando enfrentei a morena quieta naquele dia, perguntei se ela amava o Homem‐A. Eu não tinha planejado perguntar, mas acho que queria saber. Bem, na verdade eu já sabia. Mas eu queria, assim como ela, confirmação. Meu sadismo (com ela) e meu masoquismo (comigo mesma) estavam — talvez mais do que em qualquer outro ponto da minha vida — cada um lutando para dominar o outro. Seus grandes olhos castanhos se encheram de lágrimas e ela murmurou: "Eu tento não amar." E nesse momento todas as minhas tentativas desesperadas de me separar dela se dissolveram.

Ao contrário dela, eu era muito orgulhosa para admitir ciúme ou deixá‐la ver meu sofrimento, mas os dois estavam ali, tanto como os dela. Ela não era mais diferente de mim, ela era eu, e subitamente reconheci o que estava procurando a minha vida inteira — o rosto por trás da banana, o rosto de uma garotinha esmagada e humilhada pelo amor. Minhas lágrimas estavam rolando pelo rosto dela. E foi horrível. Durante semanas fui assombrada por aquele reflexo de mim mesma que eu jamais tinha visto antes.

Mas aí a percepção mais surpreendente gradualmente entrou em minha consciência. A morena tinha sido, como eu, incapacitada, tornara‐se incapaz de agir em seu próprio benefício; ela não conseguia — não ainda — deixar sua própria dor para trás. Mas eu não era mais incapaz. Eu podia tomar a decisão por nós duas, eu podia agir, porque agora eu tinha a força para deixar o triângulo, como nunca tive antes. Era meio que um milagre.

Que presente estranho essa mulher me deu, a habilidade para executar o que toda a minha busca espiritual, no fim das contas, não podia — a habilidade de quebrar a corrente da dor, bem aqui, bem agora. Não apenas

por mim, mas por meu frágil eu de 4 anos de idade. Que, afinal, ainda vive comigo. Era tempo de limpar seu rosto e levá‐la para casa.

DEPOIS

DEPOIS

CONTANDO

4/3/3/3/1/2/4...

A contagem acima é a das penetrações anais por semana no ano três. Todos os zeros representam um de nós fora da cidade. A não ser os cinco últimos. A n° 298 foi nossa última. As paredes que eu tinha tão cuidadosamente construído em torno de nosso amor haviam se rachado e se escancarado. O mundo estava lá dentro, e nós tínhamos terminado. Mandei o Homem‐A embora. Era Hora.

Sim, foi assim de repente. Inesperadamente. Totalmente sem planejar. Hora de acabar com a dor, hora de acabar com a beleza; eles tinham se tornado inseparáveis, um adágio sadomasoquista.

Então a busca pelo fim de meu fim terminou tão abruptamente quanto tinha começado três anos antes. Uma simetria de classificações. Um corte único, rápido e certeiro. Sem negociações, sem pedidos, sem manipulações, sem culpa. Depois da n° 298 — foi novamente uma sexta‐feira à tarde —terminei com o Homem‐A enquanto tudo ainda estava quente como um vulcão e bonito como arte. Tente ter essa coragem.

Embora por mim não tivesse sido coragem, e sim necessidade. Eu nunca teria tido coragem de mandá‐lo embora.

É engraçado como outra mulher sempre foi a catalisadora para nós dois: a pré‐rafaelita nos tinha juntado e agora a moreninha tímida nos separou. Eu devia ter muitos assuntos mal‐resolvidos com mulheres, com minha mãe. Mas esta é a história de Papai, não de Mamãe — ou pelo menos eu achava isso.

!

Comecei a contar os zeros semana após semana após semana, como se fossem somar outra coisa que não zero. Zeros marcando o espaço vazio em mim onde a dor quase insuportável da perda crescia e crescia. Eu apodreci. E morri.

O centro de mim que ele tinha tocado morreu.

Senti que ficaria de luto por causa dele pelo resto da vida. E estou. Venho chorando por ele desde a primeira vez que ele entrou no meu cu; por que parar agora apenas porque ele não estava mais ali?

Se o paraíso é um gosto de eternidade num instante de tempo real, então o inferno é uma eternidade de perda num instante de tempo real.

REPARAÇÃO

Depois de muitos meses sem o Homem‐A, a bolha de amor na qual eu tinha vivido por tanto tempo começou a esvaziar. Eu não podia continuar vivendo assim. Antes eu era uma sodomitazinha feliz; agora eu era uma sodomitazinha desgraçada, com apenas memórias para me provocar.

Havia algumas coisas para arrumar. Coloquei as poucas roupas dele que estavam comigo dentro de muitos sacos plásticos e os joguei fora. Resisti a cheirá‐las pela última vez, e fazendo isso eu sabia que teria a força de fazer o que fosse necessário para seguir em frente. Os poucos bilhetes e fotos que eu tinha escondi numa gaveta, junto com o pequeno saco plástico com seus pêlos púbicos, o pêlo daquela primeira raspada. Nada foi jogado fora, tudo foi cuidadosamente preservado. Você joga as coisas fora quando o amor se transforma em ódio. Não foi isso que aconteceu comigo.

E havia a Caixa. Guardada em minha penteadeira, transbordando com a evidência de tudo o que eu estava tentando superar e deixar para trás. Percebi que precisava de uma caixa maior — e com chave. Ali estava ela, esperando por mim na loja de antiguidades: quadrada, com uma tampa curva, forro de cetim vermelho e um pequeno cadeado com chave. Folheada a ouro. Perfeito. Fiz a transferência, dei um último, longo e abrasador olhar, fechei o cadeado e o tranquei.

Joguei a chavinha fora. O caixão estava selado — com lágrimas, K‐Y e uma piscadela para quem a encontrasse no futuro.

Esse santuário de relíquias sagradas era meu monumento à divindade do meu masoquismo, à grande alegria que uma vez cruzou com tanta freqüência meu caminho, a um estado de consciência que não posso mais acessar, a uma conexão química que ia muito além de qualquer lógica ou racionalidade, à insanidade sagrada que tão abençoadamente impregnava meu ser. Agora,

onde colocar aquilo? Perto... mas fora do alcance. Como o último maço de um fumante, perto... mas fora do campo de visão. Disponível.., mas proibido.

!

Saindo fora do amor por ele, me senti como um pelicano tentando sair de um derramamento de óleo: avançando, caindo, me levantando, tentando novamente. Mas mesmo se o pássaro se liberta, suas penas continuam manchadas, marcadas para sempre. Percebi que, até que a dor de amá‐lo não me interessasse mais, eu não seria capaz de seguir em frente. Por que a dor era tão interessante? Parecia que a chave para a minha alma estava enterrada ali dentro. A enormidade incomparável da ferida implorava por atenção.

Arrumando consolo em outras compulsões, fiz muitas listas. Listas de prós e contras. Listas do que eu perdia perdendo‐o e do que perderia se tivesse ficado com ele. Listas do que ganhei, do que alcancei, com quem me encontrei. Elas não significavam nada, essas listas, mas me davam algo para fazer enquanto chorava. Percebi que eu tinha que mudar a fim de não querê‐ lo. Quem eu tinha me tornado queria apenas ele. Eu tinha de me tornar outra pessoa, novamente.

Foi assim que meu antigo eu morreu, foi assim que o matei. Mas ele não partiu em silêncio pela noite. Não, ele se enfureceu até o aniquilamento com uma última explosão de dor ardente. Dor para parar a dor. Mas talvez o masoquismo nunca se cure, apenas troque de forma. Objetos diferentes, manifestações diferentes. Eu tinha medo de não conseguir ser feliz sem minha dor. Mas eu tinha de direcioná‐la para fora de mim agora; por dentro eu estava ensopada até os ossos.

Depois de um tempo comecei a trepar com homens de novo — um por um. Não sendo mais obediente, comecei a dizer a eles como fazer — "assim", "assado" — e eles faziam. Tendo sido escrava do Rei, era totalmente Rainha com eles, dando ordens a meus bobos da corte, mesmo quando fechava os olhos e fingia que eles eram ele. Às vezes funcionava. E quando funcionava, era horrível: as lágrimas corriam pelo meu rosto enquanto eles achavam que eu estava em êxtase. Qualquer caso depois do Grande Primeiro não é apenas outro estado de luto, prolongado e disfarçado como alguma forma de continuidade ou bravura, quando não há nem uma nem outra?

Mas eu não deixei mais ninguém — e alguns tentaram — entrar em meu jardim sagrado dos fundos. Agora um túnel de desespero, ele tinha se

tornado solo sagrado, um campo de batalha quieto, mas cheio de fantasmas. Se aquelas paredes falassem... Imaginei que ninguém mais jamais entraria ali. Como eles poderiam conquistar esse direito? Quem jamais seria merecedor? Quem, em sã consciência, jamais ousaria?

No documento Toni Bentley a Entrega (páginas 164-172)