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Samber, a ilha da cumbia

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 76-80)

IV. “SENHORAS E SENHORES, BEM VINDOS AO FABULOSO MUNDO DA

4.1. Samber, a ilha da cumbia

Washington Cucurto, em Cosa de Negros, deixa claro o objetivo de seu livro: fazer com que o leitor não só conheça o Samber, que o autor define como “o único lugar desta porra de cidade que vale a pena” (CUCURTO, 2007, p. 12)35

, mas que também possa entrar no universo da cumbia: “às vezes vou, volto, me perco, sou um desastre para contar

histórias, mas daqui você vai direto para o Samber.” (CUCURTO, 2007, p. 12)36

. Em um

35No original: “el único lugar en esta perra ciudad que vale la pena” (CUCURTO, 2012, p. 11) 36

No original: “a veces me voy, entro, salgo, me disperso, soy un desastre pa contar; pero usted de acá va directo al Samber.” (CUCURTO, 2012, p. 10)

tom de uma conversa amigável, às vezes até mesmo em um tom de confidência, depois de informar que o clube se situa perto da estação ferroviária de San Miguel, Cucurto apresenta o Samber da seguinte maneira:

Ah, rapaz, você não imagina como é quando as luzes se acendem... o outro mundo surge, a gente viaja até o centro das estrelas, lá se pode permanecer nu, sem beber água ou comer, ou ter que pagar ingresso ou pedir licença... cara, quando a luzes se acendem para você, acende-se a vida, mas não esta de merda, a outra, a que vale a pena viver. (CUCURTO, 2007, p. 18)37

Essa entrada no Samber lembra a sensação que Soraya Simões (2010) descreve ao ingressar na Vila Mimosa pela primeira vez. Mesmo sem limites definidos, ela percebe, em determinado momento, olhares voltarem à sua direção, indicando que adentrara em um novo e diferente espaço dentro da cidade. Da mesma forma, a entrada no universo da cumbia também está marcada por uma alteração não apenas no espaço, mas nas sensações e atitudes de seus integrantes, marcada pelo acendimento das luzes.

Ao afirmar que nesse espaço ninguém precisa pagar ingresso e que todos podem andar nus sem precisar de água ou comida, Cucurto transforma o Samber em um

Cockaigne, tal como representado por Bruegel: um lugar em que tudo é permitido, com acesso ilimitado a sexo, com a única diferença de que não há a necessidade de bebida ou comida em abundância.

A partir disso, podemos perceber no trecho a ideia de uma boneca gigogne, que possui dentro dela, outras bonecas de tamanhos menores. Como vimos anteriormente, Michel Maffesoli (2010) utiliza esta imagem para demonstrar o modo como a cidade se configura atualmente. Fragmentada, ela apresenta unidades que, apesar de fazerem parte de um todo, apresentam configurações diferentes. Quando as luzes do Samber se acendem, este se torna um mundo distinto, único, universo à parte da cidade na qual está inserido.

Definido por Maffesoli como neotribalização, este processo de fragmentação envolve características do social e da sociabilidade:

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No original:“Ah, Cabro, no sabés lo que es cuando se encienden las luces... Se aparece el otro mundo, uno viaja hasta el centro de las estrellas, uno puede permanecer allí desnudo, sin tomar agua o comer o tener que

pagar entrada o derecho por nada… Cabrón, cuando se encienden las luces se enciende la vida, pero no ésta

De maneira quase animal, sentimos uma força que transcende as trajetórias individuais, ou antes, que faz com que estas se inscrevam em um grande balé cujas figuras, por mais estocásticas que sejam, no fim das contas, nem por isso deixam de formar uma constelação cujos diversos elementos se ajustam sob forma de sistema sem que a vontade ou a consciência tenham nisso a menor importância. (Maffesoli, 2010, p. 133)

Para que seja formado um “nós” na ilha, é necessário que haja uma focalização não em grandes histórias ou acontecimentos, mas naquilo que pertence a situações cotidianas e que é comum a todos. Por isso, teremos uma forte presença de elementos desdiferenciantes, pré-individuais e biológicos, que, por serem naturais, iguala a todos os habitantes da ilha Samber, o que torna possível que, quando as luzes se acendam, possam conviver pessoas de distintas culturas e sociedades: “Luzes, luzes, luzes, que desperdício de beleza! Sensacional, o Samber! (...) O universo é aqui. Todas as raças, todos os tamanhos, todas as cores, todos os penteados, mil coloridos...”(CUCURTO, 2007, p.31)38

.

Todo e qualquer indivíduo pode fazer parte desta ilha/tribo, mas deve-se levar em consideração que, por haver configurações específicas, determinadas ações podem ter consequências diferentes dentro deste espaço. Cucurto, em uma de suas “aventuras” no Samber, presencia sua mulher dançando e descobre que ela o está traindo com outro homem: “Suculentos, azedos, beijos pornô de língua entre minha rainha e o verdureiro.” (CUCURTO, 2007, p. 61)39. Diante do ocorrido, Sente-se perdido, morto, e chora: “Chorar até inundar o salão. Chorar até que se apaguem para sempre as luzes dessa pocilga. Tomara que a música morra. Hoje a cumbia morreu para mim, mas também morre o Samber e morro eu.” (CUCURTO, 2007, p. 61)40

. Logo em seguida, há uma espécie de justificativa para tal reação:

Uma pessoa pode perder dinheiro no banco, ser assaltada e assassinada na rua. Até aí tudo bem, é normal, é coisa digna. Sua mulher pode traí-lo com o verdureiro. Tudo bem. Mil

tragédias, mil vidas; a cada vida sua tragédia. Mas… perder no baile?! Isso é o mais humilhante. Não tem nada igual em matéria de fracasso. (…) perder no baile é a coisa mais

ignominiosa. Não existe nada que um homem possa fazer para evitar e superar isso. Nessa

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No original: “Luces, luces, luces, ¡qué encastre de belleza! Sensacional el Samber. (…) Esto es un universo.

Todas las razas, todos los tamaños, todos los colores, todas las teñidas de pelo, coloraciones…” (CUCURTO, 2012, p. 24)

39No original: “Jugosos, jocosos besos pomo de lengua entre mi reina y el verdulero” (CUCURTO, 2012, p. 45)

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No original: “Llorar hasta inundar el baile. Llorar hasta que se apaguen para siempre las luces de esa inmundicia. Ojalá se muera la música. Hoy muere la cumbia para mí, pero también muere el Samber y muero

hora o cara desce até o fundo do poço. O homem vira um verme, um rato, uma barata, uma lacraia. (CUCURTO, 2007, p. 61-62)41

Uma perda fora do espaço do Samber pode ser considerada normal. Perder dinheiro ou perder a mulher é apenas uma tragédia como qualquer outra e não atinge de forma negativa a honra do indivíduo. No entanto, perder no baile é inadmissível. Provavelmente, Cucurto deveria ter reagido frente a esta situação. Porém, como apenas observa e sai, rompe com o que se espera da atuação de um homem traído no interior do Samber. Desta forma, ele se sente morto e, para ele, morre também o próprio clube, ao qual não mais pode pertencer. Diante dos outros habitantes da ilha, ele se tornou um animal insignificante e indigno de continuar frequentando-a.

É importante observarmos que, enquanto Pedro Juan, Edgar Wilson e Erasmo Wagner perdem sua humanidade ao integrarem espaços degradados e em crise econômica e/ou social e ter aspectos que os desdiferenciam dos animais, Cucurto, no caso apresentado, se animaliza ao sair em desvantagem no processo de conquista.

Ver sua mulher trocando carícias com outro e não reagir frente a isso faz com que ele perca a identidade de mulherengo e de conquistador infalível das dançarinas de cumbia, colocando-o na posição de animal insignificante, “um verme, um rato, uma barata, uma lacraia”. Agambem (2013) nos diz ser a competência de transcender a animalidade um fator essencial para se constituir a humanidade, mas se, conforme é sinalizado pelo narrador, essa condição é irreversível dentro do Samber, ele não pode mais integrá-lo, e resta apenas aguardar que as luzes se apaguem.

Ao mostrar a perda de dinheiro, da mulher ou da própria vida como normal quando em espaços externos (banco/rua), mas como um fator humilhante e animalizador dentro do Samber, Cucurto nos mostra mais uma vez que a ilha cucurtiana possui configurações específicas que determinam seus acontecimentos internos e possíveis consequências.

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No original: “Uno puede perder dinero en el banco, ser asaltado y asesinado en la calle. Eso está bien, eso es normal, es digno. Su mujer lo puede engañar con el verdulero. Y está bien. Mil tragedias, como mil vidas hay; a cada vida su tragedia. ¡Pero, perder en el baile! Eso es lo más humillante. (...) Perder en el baile es la cosa más ignominiosa. No hay nada que pueda hacer un hombre para evitar y superar eso. Ahí el hombre

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 76-80)

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