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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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Academic year: 2018

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CORPO E PROCESSO CIVILIZADOR NA CIDADE NARRADA: o humano e o animal na narrativa latino-americana recente

ANA CRISTINA SIMÕES DE ARAUJO

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o humano e o animal na narrativa latino-americana recente

Ana Cristina Simões de Araujo

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos - Literaturas Hispânicas).

Orientador: Prof. Doutor Ary Pimentel

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o humano e o animal na narrativa latino-americana recente

Ana Cristina Simões de Araujo

Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos quesitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas).

Examinada por:

______________________________________________________________________

Prof. Doutor Ary Pimentel (orientador)

______________________________________________________________________

Prof. Doutor Paulo Roberto Tonani do Patrocínio – UFRJ

______________________________________________________________________

Prof. Doutor Raimundo Nonato Gurgel Soares – UFRRJ

______________________________________________________________________

Prof. Doutor Víctor Manuel Ramos Lemus – UFRJ, Suplente

_____________________________________________________________________

Prof. Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira – UFRJ, Suplente

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Araujo, Ana Cristina Simões de.

Corpo e processo civilizador na cidade narrada: o humano e o animal na narrativa latino-americana recente. / Ana Cristina Simões de Araujo. - Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2015.

96 f.: il.; 31 cm.

Orientador: Ary Pimentel

Dissertação (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, 2015.

Referências Bibliográficas: f. 86-96.

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ARAUJO, Ana Cristina Simões de. CORPO E P ROCESSO CIVILIZADOR NA CIDADE NARRADA: o humano e o animal na na rrativa latino-americana recente. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Leras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

Em um contexto de fragmentação da cidade narrada, surge, na literatura hispano-americana das duas últimas décadas, temáticas comumente restringidas ao âmbito do privado e, portanto, omitidas em espaços externos a ele. Nas narrativas produzidas neste período, ganham destaque a miséria, a violência e as temáticas relacionadas ao corpo, como o sexo e a excreção, elementos incômodos que, ao serem narrados de maneira crua e direta, conferem às narrativas o rótulo de literatura pornográfica. A presente dissertação mostra que essa crueza na representação do obsceno, compreendido como o que deveria permanecer fora de cena, é fruto de uma naturalização proveniente de situações-limite e de relações cara-a-cara que se proliferam em territórios específicos, nos quais, ao se sobressaírem necessidades imediatas e voltadas para a sobrevivência, rompem-se normas de condutas pré-estabelecidas que visam ao autocontrole de ações impulsivas e/ou instintivas. O progressivo apagamento de tais regras leva à erosão do padrão de civilidade e faz com que os limites entre o público e o privado se diluam e deixem de ser essenciais para a determinação do que deve ou não ser posto para fora de cena. Além disso, o fato de os personagens serem descritos a partir de aspectos comuns tanto a animais quanto a homens, como o sangue, o sexo, a doença e a morte, faz com que se perca a distinção entre os dois âmbitos. Tais processos foram analisados a partir da comparação entre cenas pré-selecionadas de narrativas publicadas nas duas últimas décadas, produzidas por três autores hispano-americanos: Ana Paula Maia (Brasil), Pedro Juan Gutiérrez (Cuba) e Washington Cucurto (Argentina).

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RESUMEN

ARAUJO, Ana Cristina Simões de. CORPO E P ROCESSO CIVILIZADOR NA CIDADE NARRADA: o humano e o animal na na rrativa latino-americana recente. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Leras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

En un contexto de fragmentación de la ciudad narrada, emergen, en la literatura hispanoamericana de las últimas dos décadas, temáticas por lo general restringidas a la esfera de lo privado y, por tanto, omitidas en espacios externos a él. En las narrativas que se producen en este período, se destacan la miseria, la violencia y las temáticas relacionadas al cuerpo, al sexo y a la excreción, elementos incómodos que, cuando se los narra de manera cruda y directa, se le otorgan a las narrativas el rótulo de literatura pornográfica. En esta tesis se demuestra que la crudeza en la representación de lo obsceno, entendida como lo que debería quedarse afuera de la escena, es el resultado de la naturalización de situaciones-límite en territorios específicos, en los que, por sobresalir necesidades inmediatas y orientadas a la supervivencia, se rompen las reglas y patrones de conductas destinados al auto-controle de acciones impulsivas y/o instintivas. La eliminación progresiva de estas normas da lugar a la formación de un nuevo modelo de civilidad, en el que los límites entre lo público y lo privado se difuminan y ya no es esencial para la determinación de lo que debe o no ser apartado de la escena. Se analizó este proceso a través de la comparación entre escenas pre-seleccionadas de narrativas publicadas en las dos últimas décadas, producidas por tres autores latinoamericanos: Ana Paula Maia (Brasil), Pedro Juan Gutiérrez (Cuba) y Washington Cucurto (Argentina).

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ARAUJO, Ana Cristina Simões de. CORPO E P ROCESSO CIVILIZADOR NA CIDADE NARRADA: o humano e o animal na na rrativa latino-americana recente. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Leras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

In a context of fragmentation of the narrated city emerges, the Latin American literature of the last two decades, issues commonly restricted to the private sphere and therefore omitted it in outdoor spaces. Narratives produced in this period are highlighted by poverty, violence and themes related to the body, such as sex and excretion, troublesome elements that, when recounted raw and direct way, give the narrative the label of pornographic literature. This thesis shows that the representation of rawness obscene, understood as it ought to stay out of the picture, is the result of naturalization from limit situations in specific territories, in which, by excelling immediate needs and geared to survival, break up rules pre-established patterns aimed at self-impulsive and / or instinctive actions. Progressive deletion of these rules leads to the formation of a new standard of civility, in which the boundaries between public and private are blurred and no longer essential to the determination of what should or should not be put out of the picture. This process analyzed from the comparison between pre-selected scenes’ stories published in the last two decades, produced by three Latin American authors: Ana Paula Maia (Brazil), Pedro Juan Gutiérrez (Cuba) and Washington Cucurto (Argentina).

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Deus, a quem recorri nos momentos de fraqueza (que não foram poucos) e a quem agradeci por cada leitura, fichamento e página concluída desta dissertação.

Quero fazer um agradecimento especial à minha mãe, que se emocionou quando soube da minha aprovação, que falou e fala a todos com muito orgulho disso e que sempre fazia a dolorosa pergunta: “E aí? Está escrevendo? Escreveu quantas páginas hoje?”. Obrigada, mãe, por acreditar na minha capacidade de escrever mais de uma página por dia!

Deixo um especial agradecimento também a meu pai, que começou a me incentivar aos estudos desde a infância, quando me mostrava sua listagem de livros lidos e me deixava cheia de inveja e louca para ultrapassar sua marca. Eu chego lá, pai! Obrigada por me apresentar ao universo da leitura. Espero ansiosamente pelo dia em que te darei trote na Faculdade de Letras!

Obrigada também a vocês, minhas irmãs, por me aturarem mesmo quando nem eu mesma consegui tal proeza. Como esquecer dos momentos de sinceridade em que eu vinha toda feliz dizendo: “Olha, gente! Escrevi x páginas!!” e vocês diziam: “Só isso?!” ou um simples “Aham. E daí?”, me mostrando que sempre há mais o que escrever e aperfeiçoar!

Devo minha gratidão também a meu amigo-tio-irmão-namorado por me mostrar que é necessário ter fé, confiar naquilo que se deseja e jamais desistir diante dos obstáculos. Obrigada, Nene, pela paciência ao escutar meus desabafos, por todo o apoio, broncas e conselhos durante essa caminhada!

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Na verdade, o CPV teve um papel ainda mais importante em minha jornada... Foi nele em que conheci aquele que viria a ser meu orientador, o professor Ary Pimentel. Tudo começou em uma aula-campo no Museu Nacional, em que um desconhecido começou a falar muito, mais do que qualquer outro professor ali presente. E então, veio a pergunta: "Quem é esse que não deixa mais ninguém falar?" Essa pequena indignação foi se transformando em uma profunda admiração, quando, ao nos reencontrarmos na universidade, ele me olhou com carinho e disse: “Parabéns, Aninha!” e, logo depois, me presenteou com aqueles que seriam os primeiros livros de minha biblioteca acadêmica. “Lê e ficha esses livros aqui, Aninha!” E, assim, foi me inserindo no universo hispânico, até que veio o convite para participar do grupo de pesquisa “Orillas”, no qual aprendi muito e fiz amigos valiosos! Obrigada, Ary, por confiar na minha capacidade como pesquisadora e por me mostrar, com sua paixão, o quanto a literatura hispânica, especialmente as das duas últimas décadas, é fascinante!

Sou grata a todos os professores que tive durante a graduação por me fazerem ter a certeza de que fiz a escolha certa ao optar pelo curso de Letras. Obrigada por me despertarem paixões às quais espero um dia poder me dedicar.

Meu agradecimento também aos professores que conheci ou reencontrei nas disciplinas da pós-graduação por compartilhar, além de conhecimentos, seus questionamentos e lições de vida. Obrigada por ampliar meus horizontes e aprofundar minhas leituras e percepções.

A gratidão não poderia deixar de atingir aos amigos das melhores conversas, conselhos e passeios, que foram capazes de perdoar minhas faltas nos encontros e ausência nas redes sociais. Obrigada pela compreensão e, sim, temos que comer uma pizza! E aos meus alunos, que fazem meu dia sempre mais especial após cada aula ministrada. Obrigada por aliviarem meu estresse, mesmo causando outros...

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DEDICATÓRIA

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INTRODUÇÃO...13

I. FRAGMENTOS E FRAGMENTAÇÕES: IDENTIDADE, CIDADE E CORPO..16

1.1. O arquipélago narrado: identificação das ilhas latino-americanas selecionadas...32

II. CORPO EM CENTRO HAVANA: INCIVILIDADES EM TRILOGÍA SUCIA DE LA HABANA, DE PEDRO JUAN GUTIÉRREZ...34

2.1. Da cidade para a cobertura: debilitação do corpo e da cidade...38

2.2. O corpo e o edifício em ruínas: os restos e o excesso...50

III. ENTRE DEJETOS, GADOS E HOMENS: AS ILHAS INVISÍVEIS DE ANA PAULA MAIA...60

IV. “SENHORAS E SENHORES, BEM VINDOS AO FABULOSO MUNDO DA CUMBIA”: SEXO, SANGUE E VIOLÊNCIA NA NARRATIVA CUCURTIANA....74

4.1. Samber, a ilha da cumbia...76

4.2. o caso das múltiplas identidades e a pornografia cucurtiana...80

CONSIDERAÇÕES FINAIS...83

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INTRODUÇÃO

Todo orden social produce y reproduce un orden

corporal específico.

Préjean

“Os moradores de um apartamento (...) não devem escutar quando outro morador acionar a descarga do banheiro”1. “Antes de ir fazer o que você tem que fazer, basta dar 4

borrifadas do produto na água do vaso sanitário. Os óleos criam uma barreira na água que não permite que o odor ruim se propague. (...) Para sua boa saúde, perfume seus flatos”2. É cada vez mais frequente a preocupação em se ocultar elementos referentes ao corpo que denunciam sua existência através das excreções. Em julho de 2013, houve uma edição na NBR 15.575, Norma de Desempenho de Edificações, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), determinando a diminuição de decibéis entre apartamentos vizinhos, de modo a ocultar sons constrangedores, como o da descarga. No entanto, o fator sonoro parece não ser o único incômodo. Em outubro deste ano, foi divulgado pelas redes sociais o Poo-Pourri, produto que promete acabar com o constrangimento provocado pelo mau-cheiro que pode vir a ser deixado na casa de estranhos. Basta dar algumas borrifadas dentro do vaso sanitário e a essência de óleos cítrica é ativada de acordo com a movimentação da água. E se a preocupação é com os odores que podem ser liberados antes de ir ao banheiro, a solução já foi criada: o francês Christian Poincheval inventou a Fart Pill, pílula que promete “deixar os gases das flatulências (vulgo pum) com odor de chocolate ou de rosas e deixem de ter o cheiro usual.”. Essas são apenas algumas das várias medidas que se tem tomado para que os elementos corporais, especialmente aqueles vinculados à excreção e ao sexo, permaneçam ocultos ou presentes apenas em ambientes privados.

Para se compreender esse processo, faz-se necessário pensarmos sobre o próprio conceito de vida privada, que é apresentada por Antoine Prost (2009) como “uma realidade histórica, construída de diversas maneiras por sociedades determinadas” (PROST, 2009, p. 15). Para a burguesia da Belle Époque, a forma de não se expor ao público era o

1

Disponível em: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/07/nova-norma-para-construcao-civil-pode-reduzir-reclamacoes-por-barulho.html Acesso em: 11/06/2014.

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distanciamento construído na relação com os convidados, desconhecidos ou vizinhos. Para que isso ocorresse, as visitas eram abrigadas em locais específicos, nos quais só tinham acesso ao que era considerado apresentável pelos anfitriões. No entanto, quando nos referimos aos camponeses, a divisão entre o que deve ou não ser exposto não se constitui tão facilmente. Os cômodos de suas casas eram de múltiplos usos, tanto alimentícios quanto profissionais, chegando a habitar uma família inteira em cada um deles. A falta de espaço interno, provocada por essa situação, fez com que a rua se tornasse uma expansão da casa, espalhando-se não só seus móveis, mas também sua intimidade. Nesse contexto, a vida privada se integra à pública e torna-se impossível sua diferenciação, podendo ser constituída apenas no final do século XX, quando se democratiza a possibilidade de se ter uma casa com a devida separação entre os dois universos.

A concepção do que seria “apresentável” ao público, no entanto, não depende apenas do espaço físico. Nobert Elias (1993) aponta para uma série de fatores sócio-históricos que a determinaram. A partir do momento em que se torna necessária a integração de um indivíduo a um grupo social, criam-se e são impostas, mesmo que não de forma totalmente racional e/ou planejada, normas de convivência para que os laços formados se mantenham. Para isso, se estabelece uma espécie de sistema de escambo, no qual os integrantes deste grupo são protegidos em troca do autocontrole e da consequentemente repressão de seus impulsos emocionais, já que esses poderiam, em algum momento, ocasionar uma desestabilização entre eles. Com o passar do tempo, essas normas são interiorizadas a tal ponto que se tornam automatizadas, fazendo com que o indivíduo modere de forma mais sistemática e contínua suas paixões e sentimentos.

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Essa pesquisa segue uma espécie de Método Morelliano3 ao se debruçar sobre esses fatores que não costumam receber visibilidade. A partir deles, pretende-se rastrear o que parece ser uma nova forma de se narrar o corpo, que aproxima o homem do animal, processo proveniente de um momento específico do processo civilizatório diferente do padrão que se costuma postular como o ideal.

Frente, porém, à grande quantidade de obras que tematizam o corpo e à impossibilidade de, mesmo com a escolha de um corpus especifico, analisá-las por completo de forma satisfatória, foram recortados apenas alguns capítulos ou cenas que funcionam como textos autônomos no interior das obras produzidas por três autores latino-americanos nos últimos vinte anos: Ana Paula Maia (Brasil), Pedro Juan Gutiérrez (Cuba) e Washington Cucurto (Argentina).

Assim como o médico observa os sintomas de cada paciente, e o detetive analisa os indícios de cada crime, essa pesquisa quer estudar os indícios de cada obra ou até mesmo de um determinado capítulo, sem a pretensão de, através deles, chegar a ideias ou leis aplicáveis a toda e qualquer narrativa hispano-americana produzida no mesmo período, embora diversas características aqui apresentadas possam ser pertinentes quando falamos de inúmeras outras obras produzidas nos últimos vinte anos.

Apesar de a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) postular que as citações em idioma estrangeiro devem ser apresentadas no original, com a tradução indicada em nota de rodapé, optou-se aqui por fazer o processo inverso, pondo-se as citações do corpus literário em língua portuguesa. Essa escolha tem como finalidade facilitar a compreensão daqueles que possuem pouca proficiência no espanhol e tornar o processo de leitura do texto mais fluido, visto que muitas expressões utilizadas no original podem causar estranhamento, mesmo para os leitores que dominam o idioma. Para isso, foram utilizadas traduções oficiais, sinalizadas nas referências bibliográficas.

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CAPÍTULO I. Fragmentos e fragmentações: identidade, cidade e corpo

Supongamos que el mundo bipolar ha terminado y que estamos

en otra era. Han cambiado no tanto las imágenes en sí sino la

forma en que se agrupaban, dividían y oponían.

Josefina Ludmer, em Aquí América Latina

Se em algum momento foi possível estabelecer limites fixos e precisos para classificar ou definir categorias, o que parece se destacar nas duas últimas décadas é o apagamento destes limites, que pareciam ser intocáveis e imutáveis. Para caracterizar este momento de frequentes mudanças, Zygmunt Bauman (2001) utiliza o conceito de fluidez, um processo de liquefação de estruturas, códigos e regras que se constituíam como unidades estáveis de referências e orientações.

Conceitos como tradição e modernidade, norte e sul, local e global, centro e periferia, que pareciam facilmente caracterizáveis, agora aparecem em fusão, hibridizados. Isso faz com que as formas de analisar a identidade e cultura também se modifiquem. Frente a esse contexto, Néstor García Canclini (2011) propõe que se pense não em uma busca pela diferenciação entre tais conceitos pré-estabelecidos, mas sim em um processo no qual eles se mesclem para serem geradas novas estruturas, objetos e práticas. Além disso, este mesmo autor nos apresenta outras ações que exemplificam o processo de liquefação: os monumentos, que eram elementos de lembranças sólidas, ressignificam-se frente a protestos, cartazes, pichações e grafites do universo contemporâneo, e as coleções especializadas, que se constituíam como bens simbólicos, deixam de prevalecer, assim como a própria organização fixa, que fora, em outro momento, essencial.

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apresentasse também uma essência interior, essa não era autônoma, mas formada a partir da interação do “eu” com a sociedade e dos significados e valores do espaço exterior, ou seja, do mundo público.

Em ambos os casos, o indivíduo era composto por uma identidade fixa, unificada e estável. Na pós-modernidade, porém, este não se constitui apenas de uma, mas de inúmeras identidades, que se fragmentam, se multiplicam e se adaptam a distintos sistemas de significação e representação cultural. Essa alternância reflete uma sociedade descentralizada e de constantes rupturas e fragmentações, que tampouco traz em si um todo unificado e delimitado.

Este contexto determina o fim de uma identidade central, capaz de abarcar de forma segura todos os interesses e atitudes do indivíduo e entra em seu lugar uma pluralidade de identidades, ativadas de acordo com o que se apresenta como mais conveniente e/ou adequado a determinado momento ou espaço, como se fossem máscaras, que podem ser trocadas inúmeras vezes sem, necessariamente, trazer consequências negativas ao indivíduo.

Alguns autores relacionam a identidade diretamente a espaços específicos. Essa relação pode ser observada, por exemplo, no conceito de bairro popula r dado por Jesús Martín Barbero (2008), que o define como lugar de constituição e valorização de determinadas identidades. Nesse local, de comum existência nas periferias, as individualidades do cidadão pertencente às classes populares ganham destaque e importância, construindo-se distintas redes de sociabilidade. Tais características fazem com que o ambiente familiar do bairro se oponha ao ambiente profissional, onde o indivíduo não tem nome e tampouco importa se é homem ou mulher, jovem ou adulto, casado ou solteiro, sendo considerado apenas como um trabalhador, um empregado. As individualidades de um cidadão ganham destaque e importância apenas quando ele está no bairro, seu ambiente familiar, onde se constroem distintas redes de sociabilidade.

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“nós” que se opõe diretamente a “eles”, os quais devem ser mantidos a uma distância segura. No entanto, isso não quer dizer que o primeiro grupo seja homogêneo, mas que nele são valorizadas mais as semelhanças que as diferenças. Da mesma forma, “eles” não diferem totalmente do “nós”, mas possuem alguma diferença que se sobressai diante de outras possíveis afinidades, o que, por si só, impede sua integração.

A formação de um “nós” para a constituição do pertencimento também é indicada por Bendict Anderson (2008) ao explicitar as estratégias utilizadas para se construir o conceito de nação, definido como uma comunidade imaginada, limitada e soberana. É uma comunidade porque possui uma estrutura horizontal, abarcando pessoas de diferentes classes e posições sociais; imaginada porque se cria entre seus membros um sentimento de comunhão, embora a maioria não se conheça; limitada porque possui fronteiras, visto que não é possível que toda a espécie humana faça parte de uma única nação; e é soberana por trazer a sensação de uma liberdade a antigas estruturas de dominação.

O bairro periférico também se relaciona à comunidade real, que, por ser menor do que a sinalizada anteriormente, possibilita uma aproximação face-a-face entre os integrantes e a constituição mais efetiva de laços de interdependência, tal como ocorre na concepção de comunidade apresentada por Bauman (2003).

Nesta, não habitam estranhos. Sempre com conotação positiva, a comunidade promete a proteção de seus integrantes dos perigos externos a ela, trazendo-lhes um ambiente seguro, confortável, aconchegante e de ajuda mútua. Paraíso perdido da modernidade, ela “é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, ao nosso alcance – mas no qual gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir.” (BAUMAN, 2003, p. 9). Para a realização dessa comunidade imaginada/sonhada seria necessário privar-se da liberdade, afastando-se e protegendo-se de tudo o que for estranho ou externo a ela, o que poderia, em pouco tempo, torná-la opressiva.

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Torna-se necessário, então, o estabelecimento de um grupo de habilidades denominado por Richard Sennet (1978, apud BAUMAN, 2001) como “civilidade”, um conjunto de ações que objetivam a proteção mútua entre os indivíduos ao priorizar a situação social no lugar das necessidades e desejos individuais. Em nome de um bem comum, são ativadas as identidades públicas, que deixam transparecer apenas aquilo que não vá, de alguma maneira, constranger ou prejudicar aos demais.

É justamente a necessidade de um bom convívio social que proporciona a existência de um contínuo processo civilizatório. Conforme a estrutura das relações humanas vai alterando-se, modificam-se também as condutas ditas como adequadas. Nobert Elias (1993) indica que em outra época, quando predominavam as disputas entre cavaleiros, a moderação dos impulsos ou afetos tornava-se impossível e desnecessária, posto que, em meio a um contexto no qual a violência apresenta-se de forma constante e diária e em que os guerreiros sobreviviam do que era produzido em sua própria terra, não havia a necessidade de se formarem extensos laços de dependência entre os indivíduos. Essa vida dava aos guerreiros a “extraordinária liberdade para dar forma concreta a seus sentimentos e paixões, à alegria selvagem, a uma satisfação sem limites do prazer à custa das mulheres que desejasse, ou ao ódio na destruição ou tortura.” (ELIAS, 1993, p. 199)

No entanto, a partir do momento em que começa a constituir-se um monopólio central de violência, regido pelo Estado, torna-se necessária uma pacificação entre os indivíduos, já que atos violentos contra o outro podem ser mais severamente punidos que outrora. Além disso, um progressivo avanço da formação e distribuição de funções sociais acarretou no desenvolvimento de laços de interdependência entre os indivíduos, tornando-se inevitável uma integralização e sincronização das ações a tornando-ser alcançada a partir de uma postura uniforme e estável.

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É importante destacar que o processo civilizador, como o próprio nome adverte, não é fixo ou finito:

A civilização a que me refiro nunca está completada, e está sempre ameaçada. Corre perigo porque a salvaguarda dos padrões mais civilizados de comportamento e sentimento em sociedade depende de condições específicas. Uma destas é o exercício de autodisciplina, relativamente estável, por cada pessoa. Isto, por sua vez, está vinculado a estruturas sociais específicas. Estas incluem também, sobretudo, a resolução pacífica de conflitos intra-estatais – isto é, a pacificação social. Mas a pacificação interna de uma sociedade está sempre correndo perigo. Ela é ameaçada por conflitos tanto sociais quanto pessoais, que são atributos normais da vida humana em comunidade – os próprios conflitos que as instituições pacificadas estão interessadas em dominar. (ELIAS, 1997, p. 161)

Nobert Elias indica diversos fatores que podem fazer com que este se reconfigure ou ocorra de maneira distinta em determinadas regiões ou estratos: o estágio de desenvolvimento da sociedade, a função que o indivíduo assume na cadeia de interdependência e as mudanças na organização do tecido social.

A inconstância desse processo pode ser verificada a partir da análise de manuais de conduta realizada pelo autor, que mostra o avanço de sentimentos como o nojo e a vergonha em relação a hábitos como o de escarrar ou assoar-se e a mudança na conduta à mesa quanto ao uso de utensílios. Com o passar do tempo, a maioria das normas de convivência tornam-se automatizadas, comprovando-se que a civilização é uma “ordem mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõem” (ELIAS, 2011, p. 195). Quanto mais cedo o indivíduo aprende a controlar ações e moderar as paixões, maior é a sua vantagem social frente aos demais. Aos poucos, as funções corporais começaram a adquirir caráter privado, sendo domesticados e fechados ao âmbito do individual e do pessoal.

Alguns controles comportamentais também são formados no ambiente profissional e financeiro. Rafael Huertas, no livro organizado por Miranda & Sierra (2009), aponta a ação moralizante que o trabalho e o uso do salário assumiram no século XIX, período em que higienistas consideraram a miséria, a doença e a dificuldade de integração dos trabalhadores como problemas morais que precisavam ser corrigidos através de uma mudança nos costumes e comportamento das classes populares.

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necessidade de se lidar com horários, prazos e atividades regulares no trabalho faria com que sua vida fosse também disciplinada e ordenada, inserindo-se o ritmo laboral em seu ritmo biológico.

O incentivo à administração correta do salário também era, para os higienistas burgueses, uma forma de se acabar com problemas como a miséria e o alcoolismo, pois, se o empregado deixasse de gastar seu dinheiro com a compra de bebidas, este não seria levado à pobreza. Esse pensamento transformava o problema econômico em um problema moral, culpabilizando ao trabalhador que, ao fazer mau uso de seu salário, traz pobreza para toda a sua família. Através deste discurso de subjetivação da norma e do uso da ciência e da medicina como instâncias de autoridade, tenta-se convencer a população de que o autocontrole é necessário para a construção de uma sociedade harmônica e ordenada, na qual “el sujeto debe hacer suyas las normas que se le imponen.”(HUERTAS, 2009, p. 40).

Enrico Ferri nos dá uma mostra de como a internalização de normas de conduta separam o indivíduo de sua animalidade quando, em 1893, diz que “delincuentes en su tipo más común y peligroso, reproducen en nuestra civilización los caracteres del hombre salvaje y primitivo.” (FERRI, 1893, apud SIERRA, 2009, p. 45). Aqueles que não se inserem nos moldes comportamentais que visam ao convívio harmônico entre os seres, não podem receber o rótulo de “civilizados” ou mesmo de “humanos”.

Da mesma forma, Giogio Agambem (2013), a partir de considerações de Kojève sobre o devir animal do homem, nos leva a refletir que o homem não é biologicamente formado a partir de substâncias que integram sua condição, mas a partir da capacidade de transcender sua animalidade, transformá-la, dominá-la e, eventualmente, destruí-la, negando-se elementos que possam unir humanidade a animalidade.

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Sem a presença de um diferenciador natural e decisivo, o homo parece estar suspenso entre o animal e o humano, destituído de essência e identidade. Por isso, para recuperar ou conquistar sua humanidade, o homem deve manter em latência a sua animalidade, governando-a e conservando-a dentro de si.

Podemos vincular essa estratégia à definição de corpo como um significante ficcional ou uma construção simbólica, postulada por Le Breton (2011), já que este, apesar de ser um atributo pessoal, físico e biológico, está intimamente relacionado e formado por uma série de sentidos e de valores que determinam suas condutas e etiquetas em relação a lugares ou a tempos distintos.

A etiqueta corporal, assinala Le Breton (2011), provém de um conjunto de normas implícitas que guiam o indivíduo a controlar a imagem que transmite ao outro. A maneira de cumprimentar, a permissão ou não do toque, as formas de lidar com a perda de seu controle muscular (referindo-se a tropeçar, arrotar, bocejar, “emitir ventosidades”) são diferentes em cada sociedade e variáveis dentro dos grupos a que pertencem, tal como já nos mostrara Nobert Elias (1993).

A constante necessidade de autocontenção produzida pelo processo civilizatório pode causar no indivíduo uma sensação de aprisionamento, fazendo com que se inicie uma busca por um espaço no qual ele possa transparecer seus desejos e sentimentos inatos que são, constantemente, reprimidos no convívio social. Ezra Park (1979) denomina como região moral esse ambiente “nos quais os impulsos, as paixões e os ideais vagos e reprimidos se emancipam da ordem moral dominante” (PARK, 1979, p. 65), como o são as casas de jogos e prostituição. Elas surgem como uma resposta às restrições impostas pela vida urbana ao priorizar os interesses individuais mais imediatos e fundamentais que são comumente reprimidos em nome de uma convivência social harmônica.

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2010, p. 31). Nela, novas identidades são ativadas a fim de se manter o anonimato ou, simplesmente, se assumirem os papéis proibidos nos espaços ditos “normais” e, ao sair dali, o indivíduo pode reassumir a função pela qual é reconhecido na sociedade.

Apesar de não possuir portas ou uma entrada certa, diz a autora que, ao fazer sua pesquisa de campo, percebeu sua entrada nesse pequeno mundo quando os olhares das pessoas que o integravam se voltaram para ela imediatamente. Além disso, mesmo sem uma divisão demarcada fisicamente, estabeleciam-se neste espaço condutas diferentes das que se costuma expor ao público. Dentro dele, o ato sexual constituía-se de uma mera relação carnal, algo que seria condenável em outros ambientes, o mesmo ocorrendo com a exposição do corpo feminino, que se mostra coberto apenas por ínfimas peças de lingerie utilizadas pelas prostitutas para atrair seus clientes.

A presença de espaços como estes, que possuem normas próprias, diferenciando-se de tudo o que o convívio citadino exige, aponta para uma liquefação não apenas das identidades, mas também da urbe. Mais do que uma cidade que pode ser observada por distintos ângulos e perspectivas, como propõe Beatriz Sarlo (2009), o que parece estar se configurando é a fragmentação deste espaço que já tivera um único centro, bem demarcado e facilmente identificável.

Com uma imagem semelhante à do mosaico, proposta por Ezra Park (1979), Michel Maffesoli (2010) compara a cidade a uma boneca gigogne4 por ter em seu interior várias outras microlocalidades autônomas, com centros próprios e, portanto, desvinculadas umas das outras mesmo que, muitas vezes, não se apresente uma clara separação física entre elas.

Cada microlocalidade relaciona-se ao que Maffesoli chamou de tribo, universo no qual, mais do que por razões políticas ou econômicas, se entra pelo prazer de estar junto, por uma identificação com o espaço e/ou com seus integrantes. Forma-se uma comunidade de relação face-a-face, na qual são superados os traços da individualidade e enfocados os aspectos comuns a todos os seus integrantes, como o corpo, com seus orifícios, protuberâncias, secreções, excreções e odores. Tais elementos que os une e que lembram o

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lado animal do humano tornam esse um espaço bárbaro e selvagem, no qual podem se destacar o cotidiano, as emoções, as paixões coletivas e o corpo.

Aqui, o retorno ao bárbaro não pode ser visto como algo negativo, mas como o regresso das ações ou instintos da natureza humana que foram sendo “domesticados” e reprimidos com o passar do tempo por um constante processo civilizatório. Afastado das condutas pré-estabelecidas, o relacionamento com o outro nessa “mini-comunidade” pode se realizar de uma maneira mais aproximada entre todos os que dela participam, mesmo que sejam diferentes em aspectos políticos e/ou econômicos.

No tribalismo, as trajetórias individuais são substituídas por uma relação em rede, na qual cada indivíduo representa papéis e funções diferenciados, dependendo da tribo a que pertence. Assim, tal como afirma Stuart Hall (2005) sobre a identidade pós-moderna, torna-se comum a existência de várias identidades a serem ativadas de acordo com o dia e o local em que o indivíduo se encontra. Ademais, dentro da tribo, prevalecem as histórias cotidianas ao invés do relato da nação do protagonismo das grandes personalidades históricas. Com isso, tudo o que, em outros contextos, seria insignificante, como rituais, odores ou ruídos, recebe destaque, se ressignifica e se torna determinante por ser compartilhável com todos os seus integrantes.

Organizadas em torno de territórios, sejam estes reais ou simbólicos, as tribos indicam um retorno do investimento afetivo, da relação com o outro, mas, ao mesmo tempo, traz em si uma rede de relacionamento efêmera, pois o fato de o pertencimento a determinado grupo ser condicionado a interesses do momento faz com os sentimentos de afastamento e proximidade se misturem, produzindo-se uma constante movimentação.

Frente a essa instabilidade, Maffesoli (2010) determina a existência não de uma tribo somente, mas de uma “multidão de aldeias”, que se entrecruzam, se opõem, se entreajudam, ao mesmo tempo em que permanecem elas mesmas” (MAFFESOLI, 2010, p. 224), multidão da qual um mesmo indivíduo pode participar desde que se adapte a cada uma delas de forma devida.

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busca manter em relação às outras pessoas de acordo com um conjunto complexo e sutil de regras culturais internalizadas. Espontaneamente, criam-se barreiras simbólicas que impedem a aproximação física do outro durante o convívio social, tal como ocorre no espaço externo à tribo, onde esse distanciamento é priorizado, tornando-se incômoda sua violação. Internamente, no entanto, esse distanciamento diminui, permitindo uma relação mais íntima entre seus integrantes e um consequente prolongamento do corpo, deixando-se transparecer elementos que pertenceriam ao âmbito do individual e, portanto, do íntimo e privado.

Diante de tantas concepções relacionadas ao processo de fragmentação da cidade, escolheu-se aqui a imagem proposta por Josefina Ludmer em Aquí, America Latina (2010). A concepção de “ilha urbana” parece abarcar a maioria dos aspectos vistos anteriormente e se mostra de extrema importância para a análise do corpus previamente selecionado.

A autora parte de uma constatação já feita por Bauman (2001): a formação de um novo mundo social, que se diferencia estrutural e politicamente do anterior. Frente a esse novo contexto, tornam-se necessárias também novas palavras e noções capazes de dar conta de modos de narrar o presente que se reconfiguram em um efêmero e constante movimento. São diluídas as fronteiras entre o individual e o social e entre o público e o privado, proporcionando uma externalização do particular e da intimidade, além de uma consequente reconfiguração da proxemia pré-determinada. O apagamento ou a superposição dessas categorias estende-se às narrativas produzidas na América Latina nos últimos anos, nas quais dificilmente consegue-se distinguir a realidade da ficção, formando-se o que Ludmer (2010) denomina de “realidadficción”, um termo que, ao ser escrito sem espaço ou hífen, concretiza a fusão entre os dois conceitos.

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Nos últimos anos, a evolução tecnológica e sua democratização tem tornado possível a existência de um “tempo zero”, no qual as relações interpessoais se realizam imediatamente, não importando a distância entre os envolvidos. Com isso, apaga-se a oposição entre inúmeras fronteiras pré-estabelecidas, como “longe” e “perto” ou “presente” e “futuro”.

Tal como a temporalidade, a territorialidade também é um conceito capaz de apagar ou tornar imprecisas determinadas fronteiras. Definido como “una delimitación del espacio y una noción electrónica-geográfica-económica-social-afectiva-de género-y-de sexo, todo al mismo tempo” (LUDMER, 2010, p. 122), cada território no qual os indivíduos transitam ou ao qual pertencem ajuda a compreender o novo mundo.

Junto às alterações já mencionadas, surgem também novos territórios e sujeitos, além de uma nova configuração narrativa, na qual a literatura urbana já não se diferencia da rural, assim como caem também as diferenciações entre literatura pura ou social. Ademais, alteram-se as temáticas abordadas, formando-se uma literatura “cargada de droga, de sexo, de violencia y miseria” (LUDMER, 2010, p. 128)

A própria cidade latino-americana da literatura não se mantém a mesma. Assim como a cidade-mosaico de Ezra Park (1979) e a cidade-gigogne de Maffesoli (2010) apresentam uma característica insular por dividir a urbe em microlocalidades, Josefina Ludmer (2010) aponta para a existência de um regime territorial dividido internamente em “islas urbanas”, espaços que, embora efêmeros, apresentam limites precisos, sejam estes físicos ou simbólicos.

Tal como o espaço apresentado por Soraya Simões em sua pesquisa (2010), a ilha urbana também está aberta e se pode adentrá-la, embora possua fronteiras, regras e leis específicas que determinam o comportamento de seus integrantes. Nesse território, que está dentro da cidade por estar nela localizado e, ao mesmo tempo, fora por se diferenciar da mesma, forma-se uma comunidade capaz de sincronizar e fundir categorias pertencentes a distintas classes ou funções sociais.

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corpo é posto em sintonia com o território e perde-se não apenas a separação entre urbano e rural já mencionada, mas também a diferenciação entre animais e humanos. Isso ocorre porque essas diferenças são amalgamadas e superpostas dentro desse regime de significação para que as classes e funções sejam apagadas e se possa formar um todo, com habitantes igualados por suas características de “fundo natural”, como o sangue, o sexo, a idade, as doenças e a morte, que pertencem a todos, humanos e animais, independentemente de sua história ou situação político-social.

Esse “fundo natural” ativa os mesmos elementos que eram enfocados durante o carnaval da Idade Média, estudados por Bakhtin (2010) ao analisar o contexto e a obra de François Rabelais, que fora apelidado como “poeta da carne” e “do ventre” por destacar “o princípio da vida material e corporal: imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de necessidades naturais e da vida sexual” (BAKHTIN, 2010, p. 16).

Denominado como “realismo grotesco”, esse destaque não era visto de forma isolada ou negativa na Idade Média. O princípio material e corporal recebia um caráter cósmico e universal por pertencer não apenas a um indivíduo, mas a um corpo coletivo, popular e genérico, e seu exagero denotava festividade e alegria. Por isso, era comum na literatura renascentista e, especialmente, em Rabelais, que os valores elevados, espirituais, ideais e abstratos fossem transferidos para o âmbito do concreto, do plano material e corporal, em um processo designado “rebaixamento”, também encontrado em festas populares, como o Carnaval na praça pública.

O termo “rebaixamento” é utilizado pelo fato de este mudar o foco do alto, representado pelo rosto ou pela cabeça, para o baixo, representado pelos órgãos genitais, o ventre e o traseiro. Feito como forma de (re)nascimento, esse processo leva a uma aproximação com a terra, símbolo da fertilidade e do crescimento, e com a parte inferior do corpo e atos a ela relacionados, como o sexo, a concepção, a gravidez e o parto, que também proporcionam um novo nascimento. No contexto de Rabelais, “o baixo é sempre o começo” (BAKHTIN, 2010, p. 19) e o corpo recebe um enfoque e uma função diferenciados:

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órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz. É em atos como o coito, a gravidez, o parto, a agonia, o comer, o beber, e a satisfação de necessidades naturais, que o corpo revela sua essência como princípio em crescimento que ultrapassa seus próprios limites. (BAKHTIN, 2010, p. 23)

No realismo grotesco, o corpo apresenta-se sempre aberto e inacabado, e, como não está fechado em seus próprios limites, (con)funde-se com o mundo, com os animais e as coisas, enquanto que em épocas posteriores, o corpo começa a ser visto de maneira isolada e pronta. Consequentemente, seus orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências são omitidos, assim como as referências às necessidades naturais do indivíduo. Diante do cuidado em se manter esses elementos fora de cena, o corpo aberto e inacabado torna-se monstruoso e repugnante.

Mesmo considerando que Bakhtin (2010) trata de um autor e contexto específicos, podemos contrastar essa aversão ao corpo humano/animal (em particular ao baixo corporal) inacabado com uma espécie de “pornografização” que expõe o corpo narrado na literatura latino-americana das últimas duas décadas.

Dominique Maingueneau (2010) analisa o discurso pornográfico a partir da significação do vocábulo “pornografia”, que, apesar de ser comumente definido como um termo que “remete o homem àquilo que ele tem de mais evidente e de mais elementar” (MAINGUENEAU, 2010, p. 13), quando apareceu na literatura pela primeira vez, provavelmente no século XVIII, referia-se somente à prostituta e à prostituição, até designar, como conhecemos hoje, a “qualquer representação de ‘coisas obscenas’” (MAINGUENEAU, 2010, p. 13).

Devido ao fato de a pornografia ter um tom pejorativo e, às vezes, agressivo para algumas pessoas, Maingueneau (2010) a coloca em uma dupla impossibilidade: é impossível ela não existir, já que pode ser encontrada em diversos contextos da sociedade (literatura, cinema, artes de maneira geral) e, ao mesmo tempo, sua existência é impossibilitada, visto que é frequentemente camuflada.

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contrapartida, o pornográfico está mais associado à obscenidade, à evocação de um prazer partilhado, como a alimentação, a bebida e a festividade proporcionada pela inversão de valores, típico do contexto outrora analisado por Mikhail Bakhtin (2010).

A pornografia está associada ao obsceno por “dar visibilidade máxima a práticas às quais a sociedade busca, ao contrário, dar visibilidade mínima, quando não, para algumas delas, visibilidade nenhuma” (MAINGUENEAU, 2010, p. 39). Ela se propõe a mostrar, sem eufemismos, tudo o que o processo civilizatório tentou ocultar ao máximo, fazendo da atividade sexual um espetáculo performático do qual o espectador é também participante e pode compartilhar da satisfação sexual narrada.

Algumas cenas da recente narrativa latino-americana poderiam ser denominadas pornográficas justamente por apresentarem e exporem o corpo sem restrições nem ocultamentos, por trazerem à tona aspectos comumente silenciados que deveriam permanecer restritos a espaços privados ou às festas populares de praça pública como o Carnaval da Idade Média, onde o “rebaixamento” do espiritual não era considerado negativo.

No entanto, é interessante observar que, embora esse corpo seja narrado de forma crua, parece estar situado no grupo a que Maingueneau (2010) classifica como “pornografia canônica”, que seria a configuração menos agressiva do discurso pornográfico. Esse grupo abarca todas as atividades que condizem com as normas que regem os relacionamentos sociais, visto que todos os participantes da cena sexual saem satisfeitos por haver, entre eles, uma mútua permissividade e um desejo compartilhado, o que não aconteceria, por exemplo, em um caso de estupro.

Na verdade, o que temos na literatura latino-americana das duas últimas décadas seria apenas a presença de “sequências passíveis de uma leitura pornográfica” (MAINGUENEAU, 2010, p. 43), nas quais as ações sexuais aparecem sempre previamente motivadas e entre parceiros voluntários que cooperam entre si para que haja uma relação sexual bem sucedida. Mesmo sem se aprofundar nessa problemática, Maingueneau aponta para a existência de uma “tentação pornográfica” nas produções literárias recentes:

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fenômeno que vai paralelamente ao surgimento de textos que são dados como uma espécie de testemunhos, de autoficções nos quais o autor narra suas experiências sexuais. (MAINGUENEAU, 2010, p. 109)

O autor apresenta três justificativas possíveis para este impulso: o interesse da literatura em aproveitar materiais disponíveis, posto que a pornografia e o corpo exposto estão cada vez mais frequentes nos meios midiáticos, a necessidade de dar visibilidade a uma literatura que parece não causar mais tanto interesse ao público leitor e a natureza transgressora da pornografia. Esse último fator, talvez o mais essencial para essa pesquisa, confere à literatura que recorre ao pornográfico um caráter de escândalo ou ruptura com os códigos dominantes, dando ao discurso literário o poder de contestação, funcionando como uma “máquina de guerra” do artista engajado.

Para que possamos desenvolver melhor esse aspecto transgressor, é essencial ampliarmos o sentido de “pornografia” para além da exposição das práticas sexuais. A partir de uma entrevista na qual Rubem Fonseca se diz pornográfico por escrever livros “cheios de miseráveis sem dentes”, Karl Erik Schollhammer (2013) define como literatura pornográfica aquela que revela “temas e objetos ligados a tudo o que é excluído e proibido em nossa cultura – não só o sexo, que hoje já não recebe o mesmo estigma cultural, mas a miséria, a violência, a loucura e a morte.” (SCHOLLHAMMER, 2013, p. 122-123).

Devido ao fato de serem apresentados, nas narrativas das últimas décadas, temas já expostos pelo Realismo no século XIX, muito tem se discutido sobre a relação entre as produções literárias destes dois momentos. De fato, elementos considerados pornográficos, tanto aqueles correspondentes à definição de Maingueneau (2010) quanto os que correspondem à de Scholhammer (2013), já estiveram presentes na prosa brasileira, porém, para que se faça esta comparação, torna-se necessário ampliar ou redefinir determinados conceitos, como a própria noção de “real”.

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Em grande parte destes artigos, é proposto que se pense o realismo para além de uma simples relação entre signo e referente ou de uma ingênua apropriação da realidade humana. Seguindo-se uma concepção mais abstrata do termo “real”, baseada na concepção de Lukács, é denominado como realista aquele que capta e expressa de forma única as forças latentes de uma sociedade. Assim sendo, mais do que uma aproximação ao que foi escrito sobre o que ocorre ou ocorreu em determinado contexto sociocultural, é importante analisar como se deu o processo narrativo, dando atenção especial aos procedimentos e pontos de vista utilizados por cada autor para a invenção da realidade. (CONTRERAS, 2013, p. 07).

Sem o comprometimento de retratar fielmente os acontecimentos, o autor realista evidencia hoje uma constante tensão entre o natural e o construído ao narrar novas imagens da realidade social, cultural e política que nos cerca. “Novas” não por nunca terem sido mencionadas, mas por serem postas a partir de um paradigma específico, determinado por aquele que as selecionou e reinventou em seu texto.

Izabel Margatto (2012) aponta também uma série de características que tem feito com que o conceito de realismo se distancie de sua concepção inicial. Em busca do que acreditava ser a “verdade absoluta”, em oposição ao sentimentalismo romântico, o Realismo do século XIX pretendia criticar diretamente a burguesia e, através de uma evidente referencialidade advinda de um processo de observação e experimentação, “estabilizava e ordenava uma determinada visão de mundo, construída a partir de um ponto de vista preciso e determinado.” (MARGATO, 2012, p. 10).

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É interessante observar que a presença de corpos violados ou inumanos costuma não gerar estranheza dentro do contexto em que são inseridos. Renato Cordeiro Gomes (2012) destaca cenas literárias e cinematográficas nas quais a violência urbana, marcada pela presença de corpos mutilados e de sangue, parece estar passando por um processo de naturalização/banalização. Para ele, “a crueldade estaria então não só no tema, ou na realidade a que remete, mas também na enunciação, expressa pelo explícito” (GOMES, 2012, p. 77) e é justamente essa que dá ao “real” um caráter violento, sem mediações ou eufemismos, dando indícios do desenvolvimento de um “realismo brutal e cruel”.

É importante destacar que a crítica ou redefinição do termo “real”/“realismo” não objetiva afirmar que tudo seja simulacro/ficção na produção recente, em oposição a um momento no qual houve a tentativa de se apreender o real, mas que é possível ou necessário se pensar em um rompimento das dicotomias realidade e ficção ou objeto real e simulacro, e considerar, assim como nas especulações de Ludmer (2010), a presença de uma realidadficción.

Posto que o processo criativo da realidade é formado de acordo com os procedimentos aplicados por cada autor, inviabiliza-se a invenção de uma categoria capaz de abarcar distintas produções literárias e torna-se necessário utilizar estes artifícios como centro de análise da narrativa recente, permitindo-nos falar não em Realismo como escola literária, mas em “realismos”.

Dessa forma, diante da compreensão do real como múltiplo, não se pretende aqui buscar uma forma estável de análise ou de classificação, mas pensar as produções latino-americanas a partir de elementos que são nelas recorrentes, como a cidade fragmentada e o corpo interdito.

1.1. O arquipélago narrado: identificação das ilhas latino-americanas selecionadas

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desse arquipélago apresenta características e regras de convívio próprias e traz em si habitantes que se identificam com tais particularidades, indivíduos estes, que por apresentarem não apenas uma, mas inúmeras identidades (HALL, 2005), podem pertencer também a inúmeras ilhas, desde que se adaptem adequadamente a cada uma delas.

Considerando, portanto, que um mesmo personagem pode formar seu próprio arquipélago ao pertencer a distintos territórios e que seria inviável analisarmos todos na presente dissertação, torna-se necessário definir sobre quais ilhas esta pesquisa pretende se debruçar em meio a diversidade delas que aparecem nas obras dos autores selecionados.

Muitas pesquisas sobre Pedro Juan Gutiérrez e seu livro Trilogía sucia de La Habana (1998) analisam a forma como Cuba é narrada. Aqui, porém, o enfoque será dado a um lugar menor, mas igualmente significativo: o edifício em que o personagem-narrador reside em Centro Havana, que parece refletir uma Cuba em crise. A autora Ana Paula Maia, por sua vez, terá duas ilhas analisadas, que, embora estejam presentes em obras diferentes, possuem características bem semelhantes: o depósito de lixo e o matadouro de gado, que figuram, respectivamente, nos livros Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009) e De gados e de homens (2013); e, no caso de Washington Cucurto, iremos, seguindo o convite do próprio narrador, abordar o Samber, casa de espetáculos e dança onde se respira o universo da cumbia, lócus da narrativa que abre o livro Cosa de negros (2003).

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CAPÍTULO II. Corpo em Centro Habana: incivilidades em Trilogía sucia de La Habana, de Pedro Juan Gutiérrez

Creo que la noción de moral no puede englobar en su totalidad los problemas de nuestro tempo. Por el momento, no hay más que dos dominios que incumben directamente, digamos, a la actividad humana, cuando es a la vez colectiva e individual. Esos dos dominios son la política y la sexualidad.

Michel Foucault, em ¿ Qué es usted, profesor Foucault?

O livro de contos ou de relatos5Trilogía sucia de La Habana foi escrito entre 1994 e 1997 pelo escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez e publicado em 1998 pela editora espanhola Anagrama. Composto pelos volumes Anclado en la tierra de nadie, Nada que hacer e Sabor a mí, faz parte do chamado Ciclo de Centro Habana ou Ciclo Habanero6, conjunto de cinco livros que relatam o cotidiano miserável de Havana em um momento de crise econômica iniciada em dezembro de 1991, quando, devido à dissolução da União Soviética, Cuba perdeu seus principais laços comerciais, o comércio teve uma redução de 80% e as condições de vida da população chegaram a um nível crítico (GOTT, 2006).

O governo declarou o início do Período Especial em Tempos de Paz, que incluía cortes nos serviços de transporte e no fornecimento de eletricidade, e inclusive racionamento de combustíveis e de comida para tentar fazer frente ao grave desabastecimento. Pedro Juan Gutiérrez não nega o impacto desta crise em sua obra e conta, em uma entrevista a Stephen Clark, o que estava ocorrendo neste período:

Trilogía es un libro de catarsis que yo escribo entre el 94 y el 97, en un momento en que yo estoy saliendo de un divorcio muy traumático en que tuve que separarme de mis dos hijos, con el país y todo un proyecto político en crisis. (...) todo vino junto en tres o cuatro años: el país cae en una crisis tan terrible y empieza a haber mendigos por la calle, niños pidiendo limosna en las calles a los turistas. La crisis fue muy violenta (...) Entonces cuando yo empiezo a escribir la Trilogía necesitaba una catarsis y por eso esos cuentos son tan duros. Escribí con mucho rencor, con mucha furia dentro de mí. Son cuentos muy furiosos. (GUTIÉRREZ, 2000b)

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Os termos “livro/coletânea de contos” e “livro/coletânea de relatos” são comumente utilizados tanto pela crítica literária quanto pelo mercado editorial para definir Trilogía sucia de La Habana”. Também foram encontrados, embora em menor quantidade, o rótulo de “série de novelas” ou a categoria geral de “romance”. 6

O Ciclo de Centro Habana é composto pelos livros Trilogía sucia de La Habana (1998), El Rey de La

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Devido à presença de uma Cuba decadente e de personagens que sofrem com as consequências da crise econômica, enfrentando cotidianamente situações-limite, Trilogía sucia de La Habana é vista como uma forte crítica ao governo cubano, embora o escritor se declare como alguém que não possui interesse em narrar a vida política diretamente. Em uma entrevista concedida à revista Playboy em 2001, o escritor afirma que, se é possível identificar a realidade de Cuba em sua obra, é porque “a literatura se contamina com o ambiente do escritor, ainda que ele não queira.” (GUTIÉRREZ, 2001)

Essa “contaminação” justificaria o fato de termos uma obra repleta de personagens em situação-limite que utilizam o sexo, o rum e o tabaco como forma de fuga da caótica realidade cubana desses anos. Narradas de forma crua e dura, através de uma linguagem cotidiana, sem preciosismo ou barroquismos, sem adornos ou adereços, as paixões, aventuras, decepções e alegrias presentes na trilogia parecem fazer parte do que Cordeiro Gomes (2012) denomina como “realismo brutal e cruel” ao recusar-se o uso de palavras que possam amenizar a realidade apresentada: “Yo hago una escritura muy cruda, muy visceral, un strip-tease de mi alter ego. Trato de ser sincero al escribir. (…) Siempre he sido un tipo corrosivo y ácido y eso se ve en la escritura.” (GUTIÉRREZ, 2002)

Este contexto de recessão e anomia que marca a dura realidade cubana assim como o interesse de Pedro Juan em narrar o presente de maneira crua e visceral faz com que o escritor cubano seja frequentemente considerado como um dos nomes mais destacados do realismo sujo, uma categoria crítica, mas também uma etiqueta comercial que, segundo Anke Birkenmaier (2004), é utilizada para definir uma série de recentes escritores latino-americanos que apresentam em suas obras o pornográfico, a linguagem sexual explícita e o politicamente incorreto.

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que aparece em quase todas as obras do Ciclo Habanero. Lajolo e Zilberman (2006 apud Medeiros, 2010) usam ainda a expressão “soco no estômago” para referir-se a essa estética utilizada por Pedro Juan Gutiérrez em obras nas quais se narra de maneira crua e incisiva a realidade social.

O próprio escritor Pedro Juan Gutiérrez, na entrevista dada a Stephen Clark, reconhece que sua obra está inserida em uma linha de realismo sujo, mas a define como uma estética que busca chegar ao limite, seja dos personagens ou da própria literatura e não apenas de uma escrita sobre a sujeira e o sexo:

Yo creo que ese libro está dentro de una línea muy fuerte del realismo sucio, entendido como una manera de llegar siempre al límite de la literatura, al límite de los personajes, de no esconder nada de los personajes. Eso es lo que yo entiendo del realismo sucio. Hay quien cree que el realismo sucio es hablar de la suciedad material que puede haber en Centro Habana o describir escenas sexuales. Pero para mí, escribir de esta manera es llegar al límite de cada personaje, no esconder. (…) Estoy haciendo literatura, no periodismo ni testimonio, pero con mucha sinceridad, tratando de decir lo que nadie se atreve a decir. Y a la editorial que no le guste, que no publique mi libro. (GUTIÉRREZ, 2000b)

Esta fala nos indica a presença da pornografia em um sentido mais genérico do que a simples exposição do baixo corporal. O que temos é a visibilização da obscenidade compreendida como tudo o que costuma ser obscurecido, o que abarca tanto os elementos referentes à alimentação, à excreção e ao sexo, que foram sendo restringidos ao âmbito do privado no decorrer do processo civilizatório, quanto à violência e à miséria, temáticas sistematicamente excluídas do projeto de formação de uma sociedade harmônica e civilizada, bem como temas que anunciam o fracasso do projeto utópico da Revolução Cubana.

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Diante da diversidade de definições na crítica literária, Horne destaca três características consensuais utilizadas para se definir o realismo clássico. A primeira seria uma narrativa direta, cotidiana e ostensiva. A segunda, uma busca pela representação fiel da realidade ou pela construção de um “efeito de real” e a terceira, uma localização espaço -temporal contemporânea e a ambição de fazer um testemunho da própria época.

Há, no entanto, na produção literária recente, uma tendência cada vez mais generalizada que se destaca por adotar uma estética realista para expor uma crescente marginalidade e mostrar a cidade como um espaço degradado, sujo e em ruínas, sem o objetivo de ser representacional ou verossímil, mas de “señalar o incluir lo real en forma de indicio o huella y, al mismo tiempo, producir uma intervención en lo real” (HORNE, 2011, p. 12).

Como resposta àqueles que poderiam considerar o não comprometimento com o verossímil como uma característica capaz de anular o termo “realista”, Horne afirma que a ambição realista pode ser vista justamente no rompimento simbólico e racional que as narrativas tem feito com a verossimilhança, demonstrando que há uma transformação daquilo que se considera como realismo clássico, produzindo-se um realismo de outro modo.

A busca pela verossimilhança e pela verdade nas narrativas recentes é tão constante que Pedro Juan Gutiérrez escreve, em 2001, um texto sobre a verdade e a mentira/ficção na literatura. Neste, o escritor diz que, desde a primeira apresentação do livro Trilogía sucia de La Habana, a pergunta que mais o tem perseguido é a se tudo o que escreve é verdade. De fato, isso é tão comum que, em uma das entrevistas pesquisadas por nós, o jornalista lhe pergunta sobre a possibilidade de se contrair doenças provenientes da quantidade de orgias narradas:

ÉPOCA: Pedro Juan, personagem de Trilogia, é o da vida real? Gutiérrez: O livro é autobiográfico. Eu diria 90%, talvez.

ÉPOCA: Você narra orgias. Não temeu contrair doenças como Aids?

Gutiérrez: Foi um período específico. A situação do país piorava e o sexo era um escape

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Pedro Juan Gutiérrez não recusa a ideia de que a narrativa tenha muito de autobiográfico, ou de que ele lance mão de suas próprias experiências para contar a história do Pedro Juan narrador-personagem da Trilogia, mas indica que “un escritor lo único que puede hacer es coser una gran pieza con trozos de realidad y trozos de ficción. La gracia consiste en que no se vean las costuras.” (GUTIÉRREZ, 2001b) Isso nos mostra que, conforme propõe Sandra Contreras (2013), é essencial que se pense não na porcentagem em que a narrativa retrataria, de fato, a vida do autor ou a crise de Cuba, mas na forma como esse realismo sujo, brutal e cruel é narrado.

Portanto, essa dissertação não se propõe a apresentar respostas que indiquem se as referências políticas foram ou não propositais, se representam uma crítica ao governo cubano ou se a Trilogia é, de fato, 70, 80 ou 90% autobiográfica e representativa da realidade, mas sim que é importante observarmos como o cenário de uma cidade em crise contribui para o aparecimento de determinadas “incivilidades” na fatura da obra em análise.

2.1. Da cidade para a cobertura: debilitação do corpo e da cidade

A mí me interesa el superviviente y sus dramas. Ver el mundo desde abajo, desde el barrio. Quiero escribir como pintaba Brueghel, el Viejo. En sus cuadros no aparecen los ricos y poderosos, sino la gente común. Y él vivía como ellos. Gente sucia, desnutrida, borracha y desagradable. Era un hombre culto, pero escondía todo lo que sabía. Pintaba fotografiando lo que veía.

Pedro Juan Gutiérrez, em entrevista a La Tercera

Sabemos que a presença de elementos do cotidiano não é exclusiva do século XXI, tampouco seu uso, único da literatura. O pintor Pieter Bruegel, no século XVI, já apresentava personagens que integram grupos frequentemente excluídos de protagonismo nas artes plásticas. Também dava destaque para elementos do baixo corporal, em especial, a alimentação. Logicamente, não foi o único nome a fazê-lo,7 mas recebe aqui destaque pela

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possibilidade de se estabelecer relações entre as duas obras selecionadas (ver Imagens 1 e 2) e a de Pedro Juan Gutiérrez, numa perspectiva que ressalta uma semelhança entre sua narrativa e as escolhas artísticas de Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569).

Imagem 1: The Peasant Wedding8

Imagem 2: The Land of Cockaigne9

esse tipo de olhar que privilegia o baixo corporal pode ser encontrada na pintura de José Malhoa (1855-1933),

apropriadamente intitulada “Festejando o S. Martinho”, mas que se tornou mais conhecida como “Os Bêbados”. No quadro, podemos ver um detalhe do ambiente sórdido de uma taberna na qual se destacam seis de aldeões bêbedos, sentados à volta de uma mesa com sardinhas, castanhas e vinho.

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BRUEGEL, Pieter. The Peasant Wedding (1567). Óleo sobre tela. Viena, Kunsthistorisches Museum. 9

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A primeira imagem, conhecida como “O casamento camponês” ou “Bodas de Caná”, chama a atenção por colocar em primeiro plano não os noivos ou a celebração do casamento, mas o momento do banquete, com seus integrantes levando a comida ou a bebida à boca. Elias (2011) já nos mostrou o quanto, desde a Idade Média, os hábitos à mesa foram privilegiados nos manuais de etiqueta. Beber grandes goles de bebida diretamente da jarra ou colocar os dedos sujos no vasilhame, ações que aparecem retratadas por Bruegel em seu quadro, surgem como particularmente criticáveis desde o século XIII nos manuais de conduta.

Apesar de não se ter muitos dados biográficos a respeito de Pieter Bruegel, sabe-se que ele tinha o hábito de frequentar casamentos e outras festas vestido de camponês para ter contato com as classes populares e, assim, inspirar-se para as suas criações. Talvez tenha sido a escolha por representar essa população em específico que lhe tenha proporcionado a possibilidade de mostrar um aspecto do baixo corporal sem os filtros instaurados pelo processo civilizador. Isso ocorre porque a classe camponesa, como nos indica Antoine Prost (2009), por muito tempo sofreu uma restrição de espaço em suas habitações, não sendo possível a instauração de uma divisa clara entre o público e o privado. A mescla, pois, entre os dois âmbitos proporcionou um entrosamento maior entre os indivíduos integrantes de diferentes grupos, fazendo com que a exposição do íntimo se naturalizasse a ponto de se tornar desnecessário o desenvolvimento da noção de obscenidade de certas condutas perante os outros.

No segundo quadro, a presença de homens caídos ao chão, provavelmente dormindo após comer e/ou beber demasiadamente, também não aparece de maneira isolada. Não há uma indicação clara de que se esteja retratando o universo camponês, mas sabemos que a atitude dos homens está relacionada a um ambiente específico: Cockaigne, um país mitológico no qual não há trabalho e todos podem desfrutar de modo desmesurado da comida, bebida e do sexo sem que sejam acusados de gula ou luxúria.

Referências

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