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Passamos agora a analisar o subevento ‘Recitação do poema: As Borboletas’, ocorrido no dia 11/4/2006, segunda aula filmada do ciclo de alfabetização, construído na atividade-guia ‘Arquivo Poético’. Esse evento nos interessa por ter acontecido no início do 1ociclo e pelo fato de que, nele, Samuel ressalta algo relevante para nosso objeto de estudo: sua posição enquanto membro da sala de aula.

Essa atividade-guia tinha como base o trabalho com poemas e poesias e se constituiu em uma espécie de espinha dorsal do trabalho da alfabetização na sala de aula de Samuel. Essa atividade contou com várias oportunidades de vivências de práticas letradas pelos alunos e professora. O esquema apresentado a seguir (FIG. 14) mostra o caminho

percorrido por alunos e professora na construção dos ciclos de atividades, eventos e subeventos que constituíram a atividade-guia ‘Arquivo Poético’.

FIGURA 14 – Construção da atividade-guia ‘Arquivo Poético’ em ciclo de atividades Fonte: Elaborada pela pesquisadora.

Nesse dia, a professora chegou à sala e organizou a turma em pequenos grupos. Em seguida, chamou a atenção de algumas crianças que estavam usando a mão para apagar o quadro. Depois disso, escreveu a rotina no quadro. Vejamos a seguir a disposição dos itens dessa rotina: ROTINA: 11/4/2006 1. CHEGADA 2. ARQUIVO POÉTICO 3. RODA DE HISTÓRIA 4. HORA DE ESCREVER 5. PARA CASA

6. TI22

7. MERENDA 8. RECREIO 9. TI

10. SAÍDA

O segundo item da rotina era a atividade-guia ‘Arquivo Poético’ (QUADRO 3). Durante a análise do evento, vamos poder identificar, pelo ponto de vista dos participantes, o porquê dessa denominação para a atividade. A professora solicitou que a turma iniciasse a recitação pelo primeiro poema que aprenderam. As crianças começaram a recitar “Mistério de Amor”, de José Paulo Paes, e, em seguida, a professora pediu que recitassem “A Casa”, de Vinícius de Moraes.

Após recitarem o segundo poema, a professora faz suas considerações sobre a recitação das crianças e, em seguida, propõe à turma aprender uma poesia nova:

QUADRO 3

Sequência Interacional 001-084

Subevento ‘Recitação do poema: As Borboletas’ – Data: 11/4/2006

Linhas Professora Colegas Samuel Pistas de Contextualização

001 002 003 004 005 006 007 008 009 010 011

Tem gente que não tá sabendo esse de

cor...

tem gente que ainda... tá falando embolado... ou então... tá fazendo graça neh? quem quer aprender uma poesia nova... pra ir pro nosso arquivo?

onde que é nosso arquivo? nosso arquivo... nossa memória de poesias... Criança: eu sei quem é... POÉTICO...

Os alunos, organizados em grupos, estavam recitando algumas poesias que a professora já havia trabalhado em sala de aula. Professora observava as crianças recitando as poesias.

Crianças levantam o braço com sinal de afirmação para a proposta da professora.

Crianças apontam para a cabeça mostrando o lugar do arquivo poético

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Disciplina de Tópicos Integrados, que correspondia na época da pesquisa às disciplinas de História, Geografia e Ciências.

Linhas Professora Colegas Samuel Pistas de Contextualização 012 013 014 015 016 017 018 019 020 021 022 023 024 025 026 027 028 029 030 031 032 033 034 035 036 037 038 039 040 é uma outra poesia de Vinícius de Moraes... Chama As Borboletas... quem já conhece? Escuta... pode ir... escuta...

vocês duas sabem recitar?

Peraí... peraí Ceci... peraí só um pouquinho...

quem sabe recitar a poesia das borboletas levanta a mão... quer vir aqui na frente recitar?

então vem só um pouquinho... fala só o que você sabe...

vem...

quer João Pedro? vem junto Cecí...

Crianças: Vinícius de Moraes... Heitor: como é que chama? As Borboletas? Heitor: eu já ouvi...

eu sei qual que é...

Cecília: as borboletas... Cecília e Ana Cecília: Vinícius de Moraes... Cecília: brancas... Amarelas e pretas... brincam... Cecília: Eu sei só um pouquinho... Cecília: Eu sei só um pouquinho... Cecília: eu sei...

Crianças começam a recitar a poesia pelo nome de autor, mesmo sem saber qual seria.

Cecília e Ana Cecília começam a recitar o poema.

Professora pede para que os alunos não as interrompa.

Professora convida todos os alunos que sabem o poema para irem recitar a frente da turma.

Linhas Professora Colegas Samuel Pistas de Contextualização 041 042 043 044 045 046 047 048 049 050 051 052 053 054 055 056 057 058 059 060 061 062 063 064 065 066 067 068 069 070 071 072 073 Então vamos... Alegres... as borboletas azuis... muito bem... vamos bater palmas pra eles? vamos aprender?

você sabe essa também?

você quer vim recitar?

NÃO?

não quer recitar não?

mas eu não quero ir... Ana Cecília e Keslisson: as borboletas... Vinícius de Moraes... Brancas... As... Amarelas... Brancas... Azuis... amarelas e pretas... brincam na luz as belas borboletas... as bor... borboletas brancas são amarelas e são... são... são alegres e brancas... as borboletas azuis... gostam muito de luz... as borboletas amarelinhas... são tão bonitinhas... e as pretas então? OH... que escuridão.... Samuel: eu sei... eu sei... eu tenho

Ana Cecília e Kelisson aceitaram o desafio de recitarem o poema.

Samuel levanta a mão e diz que sabe o poema.

Linhas Professora Colegas Samuel Pistas de Contextualização 074 075 076 077 078 079 080 081 082 083 084 oi? tem vergonha Samuel?

não precisa ficar com vergonha não

tá?

o dia que você quiser recitar... você pode recitar tá bom?

AH...mas daqui a pouquinho... você vai saber tudo de memória não erra mais você vai ver...

vergonha... eu tenho vergonha... Porque... Porque... por que eu erro...

Fonte: Transcrição realizada pela pesquisadora.

O ‘Arquivo Poético’, portanto, constituiu-se em uma prática de letramento relacionada aos gêneros: poemas e poesias na sala de aula. O significado dessa prática pode ser identificado através das falas dos participantes, quando dizem: Professora: “Quem quer aprender uma poesia nova pra ir pro nosso arquivo?” Crianças: “POÉTICO... ”Professora: “Onde que é nosso arquivo? nosso arquivo... nossa memória de poesias...” (linhas 006 a 011). Quando a professora pergunta “Onde que é nosso arquivo?”, as crianças apontam para a cabeça, demonstrando que é a memória que tem a função de armazenar as poesias que aprendem para poderem recitá-las após saberem-nas de cor.

Encontramos que a denominação ‘Arquivo Poético’ faz parte de práticas culturais fora da escola, relacionadas às artes e linguagem. Portanto, aspectos da cultura extraescolar eram trazidos para dentro dessa sala de aula e as crianças se apropriavam de seus sentidos e significados nesse contexto.

Concordamos com as autoras Gomes, Neves e Dominici (2015, no prelo), quando, mesmo se referindo ao campo da Educação Infantil, afirmam:

Dessa forma, as professoras da Educação Infantil (também do Ensino Fundamental) podem e devem usar textos reais e significativos que circulam em nossa sociedade para, de forma lúdica, apresentar o mundo da escrita às crianças sistematicamente

com o objetivo de inseri-las nesse mundo para que se tornem leitores fluentes e amantes da leitura (GOMES; NEVES; DOMINICI, 2015, p. 11).

Com o objetivo de compreender um pouco mais sobre o significado dessa prática na cultura extraescolar, pesquisamos no dicionário Caldas Aulete (2015) os sinônimos das palavras ‘declamar’ e ‘poesia’. Sendo assim, foi possível obter os significados mais estáveis das palavras, ou seja, a concepção mais consolidada na sociedade, para relacioná-los com os sentidos e significados que foram construídos na prática dessa sala de aula.

Segundo o dicionário Caldas Aulete declamar seria:

Falar em voz alta, interpretando o conteúdo com gestos, expressões faciais e entonação expressiva (CALDAS AULETE, 2015a).

Para o significado de poesia, encontramos a seguinte definição, também pelo Caldas Aulete:

Forma de expressão artística através de uma linguagem em que se empregam, segundo certas regras, sons, palavras, estruturas sintáticas etc. Esse modo de expressão, estabelecido como gênero literário. Arte poética própria de um poeta, um grupo cultural, uma época etc. Qualidade do que exprime sensibilidade e beleza. Caráter do que comove ou inspira (CALDAS AULETE, 2015b).

Pela fala da professora “Tem gente que não tá sabendo de cor.../ tem gente que ainda tá falando embolado.../ou então.../ TÁ FAZENDO GRAÇA neh...” (linhas 001-005), nota-se que ela prezava aspectos que representam a prática do uso e função social desse gênero como a da cultura fora da escola. Considerando, portanto, os aspectos de comunicação através da linguagem por esse gênero, os alunos compreendiam que havia uma forma, um ritmo e uma sonoridade ao recitarem a poesia.

Além disso, a poesia precisava ser decorada. A professora explicita isso em outros momentos de outras aulas: “tem que saber na ponta da língua” e, também, quando disse para Samuel “você vai saber tudo de memória e não vai errar mais” (linha 084). Assim, a recitação não poderia ser feita de qualquer jeito. Outra fala que comprova essa afirmação é o convite que a professora faz para as crianças que sabiam recitar a poesia ‘As Borboletas’, que ainda não havia sido ensinada para a turma. A professora se dirige a eles perguntando: “quer vir aqui na frente recitar?” Ou seja, o poeta deve ser notado por suas palavras, gestos, expressões faciais, sentimentos; enfim, pela mensagem que quer transmitir ao ouvinte. Por isso ele deve estar em destaque, para que os demais prestem atenção e escutem suas palavras; daí o convite feito pela professora.

Após a recitação do poema ou poesia, é costume em nossa cultura o poeta ser aplaudido pelo público, como forma de agradecimento por ter transmitido através de suas palavras uma emoção, um sentimento, uma sensação de dor, tristeza ou alegria a seu público. Portanto, ao final da recitação dos alunos, a professora fala: “muito bem.../ vamos bater palmas pra eles?”.

Durante os três anos do ciclo de alfabetização, a turma aprendeu os seguintes poemas e poesias:

1. Mistério de Amor – José Paulo Paes 2. A Casa – Vinícius de Moraes 3. As Borboletas – Vinícius de Moraes 4. Leilão de Jardim – Cecília Meirelles 5. O Pato – Chico Buarque

6. O Relógio - Vinícius de Moraes 7. Convite – José Paulo Paes 8. Colar de Carolina

9. Mário – Bartolomeu Campos Queiróz

Outra forma de declamação das poesias acontecia todas as vezes que a turma recebia uma visita na sala. Além disso, quando as crianças memorizaram os poemas, a professora aproveitava esses textos e realizava uma série de atividades de leitura e escrita em torno desse repertório. Sendo assim, concordamos com Moll (1996), quando diz que:

Estamos convencidos de que os professores podem estabelecer fora das salas de aulas, de forma sistemática, as relações sociais necessárias que mudarão e melhorarão o que ocorre dentro das mesmas. Essas conexões sociais auxiliam os professores e estudantes a desenvolver sua consciência de como podem usar o cotidiano para entender conteúdos e usar as atividades de sala de aula para entender a realidade social (MOLL, 1996, p. 337).

Portanto, o ‘Arquivo Poético’, além de ser o momento de recitarem e aprenderem novas poesias, era quando as crianças tinham a oportunidade de dar início à construção de novas identidades: de serem leitores e escritores.

Aqui entendemos o conceito de identidade a partir da discussão que Vargas (2010) utiliza ao investigar o processo de construção de identidades leitoras de jovens e adultos: como um contínuo processo de transformação em relação às maneiras como os sujeitos são perpassados pelos sistemas culturais a que se vinculam (HALL, 2000 apud VARGAS, 2010)

Sendo assim, ao perpassar a trajetória de Samuel, poderemos verificar, em sua relação com o outro e pelos recursos da linguagem e da cultura, como esses e outros fatores influenciaram sua maneira de representar a si mesmo, já que essa construção de identidade se dá histórica e dinamicamente.

Hall (2000 apud VARGAS, 2010, p. 112) nos esclarece que a construção de identidades:

[...] são construções sociais, pontos de apego temporário, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos ‘interpelar’, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode ‘falar’.

Continuando nossa análise sobre o subevento, chamou-nos a atenção a atitude de Samuel ao levantar a mão, o que raramente ocorreu nos três anos, e solicitar a atenção de sua professora e da turma para sua fala.

Depois que seus colegas recitaram o poema ‘As Borboletas’ à frente da sala, a professora propôs à turma que o aprendessem. Nesse instante, Samuel, em um tom de voz mais firme, diz que ele já sabia o poema. A professora então o convida para recitar para todos “não quer recitar não?” (linha 72) e Samuel responde “eu tenho vergonha” (linhas 073 e 075) e, em seguida, diz que sente isso por medo de errar “porque...porque...por...que eu erro...” (linhas 079 a 081). Nesse subevento, portanto, é possível encontrar um aspecto da subjetividade de Samuel em que ele reconhece, em si mesmo, e explicita isso para a professora e a turma, logo no início do primeiro ano do ciclo: de “escolher” não participar por ter medo de errar ou estaria manifestando que gostaria de participar, mas pelo medo de errar desiste da participação.

Desse modo, já no início do ciclo, ele sinalizou que tinha algum dificultador, que acabou se manifestando durante todo o seu percurso escolar. Estaria aqui uma das primeiras evidências, no ciclo de alfabetização, de que ele estaria diante de um sintoma de inibição intelectual (SANTIAGO, 2005)?

Vargas (2010), citando Vóvio (2007a), nos explica que as produções discursivas sobre a construção das identidades desses estudantes trazem as marcas dos posicionamentos a que os sujeitos se submetem e estão submetidos na sociedade à qual pertencem. Constituem, portanto, ações de escolha frente à demarcação de fronteiras, de hierarquização, de inclusão/exclusão e de classificação.

Podemos, portanto, afirmar que desde sua entrada nessa escola e sala de aula, Samuel assumiu a identidade de alguém que portava uma dificuldade de aprendizagem e que, sendo assim, se via como incapaz de aprender?

Passamos agora a analisar algumas atividades que contaram como escrita na sala de aula e vamos identificar como ele participava e interagia com os demais nessas atividades e como os fatores de sua subjetividade interferiram nesse processo.