• Nenhum resultado encontrado

A segunda abordagem que busca justificar o fracasso escolar é denominada de cognitivista ou instrumental. Surge na França, nos EUA e na Grã-Bretanha logo após a Segunda Guerra Mundial. Essa abordagem tenta promover uma ruptura na abordagem organicista, que diagnosticava como dislexia todo e qualquer problema que o aluno apresentasse e que era considerado como dificuldade de aprendizagem, mas ainda dá continuidade a alguns determinismos biológicos nos alunos, tal como fazem os organicistas. A principal diferença entre elas é que a causa dos problemas de aprendizagem desloca-se do cerebral para o psíquico.

Vernon (1977), citado por Gomes (1995), afirma que os teóricos da abordagem cognitivista classificaram quatro tipos de déficits em relação aos processos psicológicos: memória, linguagem, pensamento e percepção. Para os cognitivistas, qualquer alteração que fosse sinônimo de imprecisão desses fatores psicológicos era considerada um déficit psicológico. Surgem, portanto, os rótulos de desmemoriados, desatentos, imaturos para alfabetização, etc.

Referindo-se a uma publicação na França na década de 50 dedicada à explicação das dificuldades de leitura e escrita, Fijalkow (1989), citado por Gomes (1995), menciona seus principais autores e as relações conceituais que estabeleciam para o entendimento do fenômeno:

1. Borel-Maisonny (1951) – pressupõe que a dislexia e a disortografia são decorrentes de perturbações de articulação, transtornos perceptivos, visuais, auditivos e na linguagem. A dislexia, portanto, resulta de vários transtornos na percepção do indivíduo;

2. Galifret-Granjon (1951) – tem como pressuposto que a estruturação espacial, problemas de lateralidade e motricidade manual ocasionam problemas na leitura;

3. Stambak (1951, 1960, 1966) – investiga a ritmicalidade relacionada à dimensão temporal;

4. Binet e Simon (1954) – avaliam, através de testes, a idade ideal das crianças para sua inserção na aprendizagem da leitura e escrita pelo resultado do teste de QI. Quanto maior o QI, mais chance de êxito e rendimento a criança terá em sua aprendizagem. A correlação entre leitura e idade mental foi disseminada no campo educacional na época do lançamento da obra.

Portanto, longe de se estabelecer um distanciamento da abordagem organicista, os cognitivistas legitimam desigualdades e diferenças pela mensuração de aptidões intelectuais, de prontidão para a aprendizagem, de inteligência ou QI e, por conseguinte, reiteram que residem nos indivíduos as causas de suas dificuldades (SOARES, 1993).

Uma das consequências pedagógicas dessa teoria apontadas por Gomes (1995) é a de que:

O psicólogo passa a ocupar o lugar do médico e é a ele que são levadas as crianças com problemas na leitura e na escrita para serem diagnosticados. Seu papel, então, é responder às demandas das escolas e dos pais e mostrar nas crianças as suas dificuldades através de instrumentos de medida que são os testes. Testes que, de acordo com Tort (1976), não passam de exercícios escolares que são antes de tudo, provas de submissão intelectual e docilidade escolar e social (GOMES, 1995, p. 45).

Tort (1976) também afirma que os testes podem favorecer ou beneficiar a criança de acordo com a classe social (SILVA, 2008). Sendo assim, surgiram as escolas para os mais avançados e as escolas especiais para aqueles que possuíam algum tipo de dificuldade. Santiago (2005) afirma que o tratamento que atualmente é dado à problemática das dificuldades de aprendizagem tem como base, em muitos casos, esses instrumentos (os testes) para detectar o sujeito débil. Para ela, esse é o terreno que durante muito tempo prevaleceu, dificultando o acesso do sujeito à clínica psicanalítica.

Anteriormente, quando o fracasso escolar ainda não possuía essa configuração terminológica, os alunos que tinham algum tipo de dificuldade eram considerados ‘zonzos’, ‘preguiçosos’ ou ‘maus alunos’. Agora, marcados pelo diagnóstico das patologias psíquicas e mentais advindo do discurso científico, os alunos passam a ser identificados por novos significantes no grupo a que pertencem, sendo denominados de disléxicos, disortográficos, portadores de discalculias etc. (SANTIAGO, 2005). Portanto, longe de apresentar uma solução para o problema, os testes acabam segregando ainda mais esses alunos e não promovendo sua inclusão no grupo.

O período preparatório para a alfabetização tornou-se, nessa época, uma prática dos pedagogos: a de aplicarem vários exercícios de ritmo, de orientação espacial e temporal,

de discriminação auditiva e visual, que eram considerados pré-requisitos para se aprender a ler e a escrever (GOMES, 1995). Segundo Cordié (1996), essa visão baseia-se no princípio do indivíduo visto como um “mosaico de funções das quais seria conveniente restaurar a que se encontra deficiente” (p. 44).

De acordo com Moll (1996), Vigotski desenvolveu o conceito de zonas de desenvolvimento real e proximal devido às preocupações que o autor tinha com os testes de QI, considerando-os diagnósticos estáticos, fossilizados. Vigotski estava interessado em ver o desenvolvimento em movimento em sua construção histórica e cultural. Segundo ele:

A zona de desenvolvimento proximal9 pode, portanto, tornar-se um conceito poderoso nas pesquisas do desenvolvimento, conceito este que pode aumentar de forma acentuada a eficiência e a utilidade da aplicação de métodos diagnósticos do desenvolvimento mental a problemas educacionais (VIGOTSKI, 1991, p. 58).

Griffo (1996) relata que, após as contribuições de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, em 1984, na área da alfabetização, houve uma vertente dos cognitivistas que rompeu com a teoria organicista, por não considerar os problemas de aprendizagem exclusivamente de ordem orgânica ou intelectual. Porém, ela destaca que:

Este rompimento não significou, no entanto, que o foco das responsabilidades pelo fracasso escolar deslocara-se do aluno para o plano social, pois o aluno passa a fracassar por não ser considerado capaz de fazer transposições no nível simbólico (GRIFFO, 1996, p. 28).

Muda-se portanto, o tipo de problema, mas permanece seu portador.

Segundo Patto (1997), citada por Andrada (2005) em seu artigo “Novos paradigmas na prática do psicólogo escolar”, no início do curso de Psicologia nas universidades, as disciplinas ofertadas examinavam os problemas escolares partindo de especialidades como psicologia do desenvolvimento infantil, do excepcional, psicologia diferencial, da aprendizagem, os testes e as medidas. Assim, havia a centralização dos problemas de aprendizagem no aluno e a concretização da existência de uma norma, de um padrão de aprendizagem e desenvolvimento considerado normal, adequado e esperado. Seria, então, essa a ordem da moderna ciência da psicologia: excluir para adaptar às categorias universais (ANDRADA, 2005, p. 197).

9

Trataremos com mais propriedade desse conceito no capítulo 4, quando apresentamos nossos pressupostos teórico-metodológicos.

Entretanto, nesse artigo, a autora propõe um novo paradigma para a psicologia escolar, pois, segundo ela, a psicologia educacional de hoje ainda se encontra em crise:

Pode-se citar como fatores desta crise, em primeiro lugar, a demanda que é enorme. Há muitos alunos desviantes, não adaptados ao objetivo final da escola: socializar conhecimento científico elaborado historicamente. Em segundo lugar, a visão de muitos dos profissionais da educação ainda está pautada no paradigma de normalidade x anormalidade, onde se espera um padrão de comportamento e de atitudes que conduzem ao sucesso escolar (ANDRADA, 2005, p. 197).

A autora propõe, portanto, um paradigma que considera a integração família- comunidade-escola, focalizada na promoção do desenvolvimento integral do ser, que possa analisar as relações entre os diversos segmentos do sistema de ensino e sua repercussão nesse contexto, a fim de auxiliar na elaboração de procedimentos educacionais capazes de atender às necessidades individuais.

Uma vivência relatada no artigo “Retorno a um passado recente: o Projeto Sala de Recursos e o atendimento a crianças especiais’”, por Vieira (2011), demonstra a construção de um novo olhar para os alunos que, na escola, eram inicialmente considerados alunos ‘especiais’ pelos professores, sendo direcionados para um tratamento especial para seu problema. Esse projeto foi desenvolvido pelos psicólogos que atuavam na então Divisão de Psicologia Edouard Claparède, da Fundação Helena Antipoff (FHA), hoje denominada Clínica de Psicologia Edouard Claparède, fundada pela russa Helena Antipoff, em 1955.

Segundo Vieira (2011), o projeto Sala de Recursos adotou uma perspectiva integradora, focalizando a não aprendizagem de forma mais abrangente e socializadora, durando quase toda a década de 1980. Para os psicólogos que atuavam no projeto, se determinado aluno não estava aprendendo, esse problema não poderia ser só dele, por isso, buscava-se uma parceria que formava um círculo entre a criança, família, escola e comunidade.

Como podemos observar, as duas abordagens até agora apresentadas partem da premissa do aluno como portador e culpado pelo seu próprio fracasso. Seja:

[...] por um fator inato ao indivíduo, que já nasce com essa responsabilidade em seu cérebro, e portanto não é capaz de aprender nas condições escolares consideradas adequadamente oferecidas. Ou então, essa culpa reside em sua falta de maturidade que significa a ausência ou baixa qualidade/quantidade de características imprescindíveis para o sucesso na aprendizagem aliados à ideia de que o processo de aquisição da escrita é feito através de situações de treino de habilidades pré- definidas, ou seja, de forma mecanizada (GRIFFO, 1996, p. 40).

No próximo subtópico, passaremos a outra abordagem, que também incorre em alguns determinismos, mas aponta como causa do fracasso outras questões, diferentes das até agora apresentadas, que focalizam exclusivamente o cérebro e o psíquico do sujeito.