• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 7 – ANÁLISE DO VIVIDO: JOVENS E ACONTECIMENTOS

7.2. Fala jovem

7.2.3. Santíssima trindade do capital: autonomia, trabalho e dinheiro

Safra, de 18 anos, foi uma das crianças que acessou o CCA aos oito anos de idade em 2006. Ele contou-me ainda que em 2009 foi a época em que aprendeu a fazer rimas, consequência disso foi o início de sua participação nos eventos da UNAS em torno da comunidade. Ainda sobre sua trajetória, ele enfatizou que quando saiu do CCA entrou para o Instituto Baccarelli35 a fim de fazer música. “Aí fiquei pouco tempo no Baccarelli porque não me senti confortável e depois entrei nos Jovens Alconscientes. ” A respeito de seu desconforto Safra disse que

_________________

35A história do Instituto Baccarelli começou em 1996, quando o maestro Sílvio Baccarelli assistiu pela TV a um

incêndio na comunidade de Heliópolis, em São Paulo. Comovido com a luta das famílias para recuperar suas casas e pertences, ele se dirigiu à escola para ensinar instrumentos de orquestra para as crianças e adolescentes. A partir de então, o instituto começou a ganhar reconhecimento e o apoio de grandes empresas. Atualmente, o instituto atende cerca de 1.000 crianças e jovens em programas socioculturais, que por meio de formação musical e artística proporcionam desenvolvimento pessoal e oportunidade de profissionalização na música.

Não me senti confortável porque o que acontece: eu entrei pra fazer violino e aí fiquei muito tempo na fila de espera do violino, né? Sendo que tinha muita gente, às vezes, de classe média que já entrava, porque já tinha tido contato com o instrumento. Era muito mais fácil de entrar e a gente aqui da comunidade não tem essa mesma oportunidade, né? Não tem como comprar! Um violino hoje tá custando em torno de R$2.000 a R$3.000 (Safra, 2016, 18 anos, rapper, atualmente trabalha como educador).

Como já foi dito, aí reside a confluência perversa e a crise discursiva que caracterizam os movimentos sociais e de esquerda, uma vez que o projeto político da democracia radical pluralista e o da democracia neoliberal recorrem às noções comuns (sociedade civil, participação, cidadania, democracia), mas com significados e sentidos diferentes. Essa pretensa comunidade discursiva acaba por camuflar os antagonismos entre ambos os projetos, para benefício do segundo (o neoliberal), tornando-o digerível para parcelas da população, inclusive daquelas que serão imediatamente as mais prejudicadas com o seu fortalecimento, ou seja, as classes populares. A exposição do conflito, por outro lado, demonstraria exatamente o que está em jogo: “uma disputa político-cultural entre distintos desenhos de sociedade e os respectivos setores sociais neles empenhados (DAGNINO, 2005, p. 61) ”.

Conforme fomos conversando mais sobre o funcionamento do Instituto Baccarelli, Safra explicou-me que para entrar na orquestra o critério era ter algum tipo de experiência com o instrumento, no caso dele, o violino, e que para ter acesso à aula tinha que passar por uma fila de espera que demorava o tempo que ele não tinha. “E eu não tinha esse tempo, porque aí eu já tinha que começar a trabalhar e ter meu dinheiro... Porque começa a ter namorada, amigos pra sair e a minha mãe não vai me dar o dinheiro pra sair, porque não tem condições também. ”

Uma problematização importante sobre a existência de projetos sociais foi feita por Safra quando mencionou que

Assim, primeiramente, por que existe o projeto social? É porque tá faltando e se tá faltando é porque o governo não tá fazendo o papel dele. Se o governo tivesse fazendo o papel dele, não precisaria do projeto social. Então, a gente faz um projeto social pra capacitar aquela pessoa de ir buscar as coisas que ela precisa. Então, por isso eu falei, antigamente eu nem pensava no que eu queria ser e acredito que muito amigo meu também não sabe o que quer, né. Eu sei porque eu fiz parte de um projeto social, então, eu quero entrar numa faculdade pra também poder disputar qualquer outro espaço que a outra pessoa também tenha. Que uma pessoa que tenha estudo também tem, nem que eu tenha que pagar por essa faculdade. Aí, então, é isso acho que ele contribui muito pra pessoa ir buscar o seu espaço e ter espaço é igualdade, né (Safra, 2016, 18 anos, rapper e, atualmente, atua como educador).

Safra demonstra a situação paradoxal de sua participação em projeto social quando afirma que “o projeto social é uma maneira de melhorar o ser humano, mas não de melhorar a situação financeira, até mesmo porque tem a ver com a iniciativa do governo de financiamento do projeto social, de coisa pública e tal”. Outro aspecto levantado por Safra é o projeto social como um “trabalho ingrato”, pois “às vezes você tá ganhando dinheiro e às vezes você não tá ganhando dinheiro, mas tá fazendo mais coisas do que quando você tava ganhando dinheiro. ”

A respeito da síntese da unidade do Projeto Social como emprego demonstrada pela necessidade de Safra de começar a trabalhar e/ou fazer bicos, para ter seu próprio dinheiro – fato comum a todos os outros jovens –, Lyra (2013) aponta que, isto, constitui-se como elemento impulsionador do desejo de independência e autonomia dos adolescentes e não como momento pelo qual a supervisão familiar falha e abrem-se as portas para a inserção no tráfico de drogas. A percepção do desenvolvimento etário é bastante flexível na vida desses adolescentes, o que reafirma que o desenvolvimento não se dá apenas pelo cunho cronológico e etário, o desenvolvimento encontra-se atrelado ao contexto social no qual o sujeito vive, determinando suas experiências e podendo antecipar ou retroceder o desenvolvimento e a inserção no mundo adulto. Outra questão pela qual isso também se torna perceptível refere-se ao início de inserção no mundo do trabalho dos outros adolescentes. Nesta etapa do desenvolvimento, o adolescente passa a ter essa necessidade de desejar ter dinheiro para comprar coisas para si, para sair com os amigos, para dar conta de suas necessidades pessoais.

Para o jovem de periferia a inserção no mercado de trabalho é mais sofrida, as escolas não são adequadas, ao mesmo tempo em que os jovens tendem a serem vistos como ociosos e delinquentes. É neste contexto que os jovens têm sido alvos dos projetos sociais. Desta forma, compreende-se que os jovens são sujeitos sociais (DAYRELL, 2003; GROPP, 2000) que pensam, agem, ou seja, vivem, num movimento dialético e contraditório do seu tempo (SANTOS, 2013, p.90).

A adolescência passa pela fase final de autonomia que se caracteriza como sendo o momento pelo qual o desejo pela independência se concretiza e o jovem passa a buscar sua autonomia. O adolescente afinará suas relações com seus pares de iguais na construção de grupos homogêneos. No entanto, não estará em jogo neste processo de sociabilização a necessidade de uma aceitação, mas obter um status adulto frente aos outros adolescentes, que por sua vez possuem a mesma demanda. Com a liberdade amplificada e a descoberta de prazeres

e diversões que o mundo pode oferecer, a rua passa a ser o local onde este jovem passará a maior parte do tempo e o adolescente vai “autoproclamar sua emancipação diante da família” (LYRA, 2013, p.83). A rua passa a ser o contraponto da casa: lugar onde é visto e reconhecido por seus pares e pela comunidade.