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SCWHARCZ, Lilia Moritz O olhar naturalista: entre a ruptura e a tradição In: Revista de Antropologia Vol 35, USP, 1992, p

TOBIAS BARRETO E A ESCOLA DO RECIFE: O MESTRE E O AMBIENTE

13- SCWHARCZ, Lilia Moritz O olhar naturalista: entre a ruptura e a tradição In: Revista de Antropologia Vol 35, USP, 1992, p

debate das idéias, embora muitas delas fossem heréticas e subversivas para o meio15. E tal movimento cultural teve continuidade além e após a Escola do Recife, gerando um regionalismo, nos anos vinte, que emularia o modernismo paulista e do qual surgiria a obra de Gilberto Freyre.

A Escola do Recife fez parte, ainda, de um processo de renovação que operou em diversos campos, e do qual ela foi um aspecto. Mesmo um estudioso de sua filosofia ressalta este processo, quando afirma: Nos meados da década de 70, o desejo de renovação

no campo filosófico e o rompimento com o ecletismo espiritualista já se faziam sentir nos vários centros culturais do país16.

Venâncio Filho aponta a existência de três fases na trajetória da Escola do Recife: uma, puramente literária, que vai de 1862 a 1870; a segunda, crítica e literária, indo de 1870 a 1881- e nesta fase podemos situar o surgimento de Sílvio Romero, não apenas em termos cronológicos mas, também, temáticos e literários-, e um período jurídico-filosófico que se inicia em 188217.

Já Bezerra situa cronologicamente a Escola do Recife, mencionando intelectuais como Lopes Gama e Antônio Pedro de Figueiredo como precursores e balizando um período

terminal, composto por epígonos e continuadores, que estende-se durante as duas primeiras ____________________________________________________________

15- LIMA, Heitor Ferreira. História político-econômica e industrial do Brasil. São Paulo, Nacional, 1970, p.280

16- PAIM, Antônio. A filosofia da escola do Recife. Rio de Janeiro, Saga, 1966, p.28

17- Cf. VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo ( 150 anos de ensino jurídico no Brasil

décadas do século XX e encerra-se por volta de 192518. E Macedo, finalmente, aponta o período entre 1885 e 1900 como o ápice produtivo da Escola, seguindo-se a decadência nas décadas seguintes19.

A figura de Tobias Barreto surge, em todo esse processo, como uma espécie de patrono intelectual. Sílvio Romero iniciou, depois da morte do autor, a reunião de sua obra em volumes temáticos, mas deixou o projeto inacabado. Nos anos 20, o governo de Sergipe logrou a publicação de suas Obras Completas, tomando o empreendimento de Romero como ponto de partida, mas sem seguir uma ordem cronológica, o que foi feito apenas na edição de 1986, organizada por Luiz Antônio Barreto. E, como lembra Paim, ao todo, as

Obras Completas abrangem aproximadamente 3.500 páginas20.

Tobias Barreto funcionou como elemento catalisador a partir do qual, em meados dos anos 70, a Escola do Recife iria se estruturar. O apogeu de Tobias seria, contudo, em 1882, quando participou do concurso para lente substituto da Faculdade de Direito, a qual a Escola sempre esteve ligada. Ali, sua popularidade chegaria ao auge entre os estudantes e entre a própria congregação.

Barreto foi um crítico implacável da sociedade brasileira. Apenas o Estado, no Brasil, para ele, é organizado, e a sociedade- o povo, diria Barreto- permanece amorfo e

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18- Cf. BEZERRA, Aluízio Coutinho. A filosofia das ciências naturais na Escola do Recife. Recife, Ed. Universitária da UFPE, 1988, p. 24.77

19- Cf. MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1997, p.167

20- PAIM, Antônio. Sampaio Bruno e o primeiro momento de reaproximação luso-brasileira. In: Cultura. Vol. XII. Centro de História da Cultura/UNL, Lisboa, 2000/2001, p.215

esgarçado, ligado apenas pelos maus costumes. Segundo ele:

O que mais salta aos olhos, o que mais fere as vistas do observador, o fenômeno

mais saliente da vida municipal, que bem se pode chamar o expoente da vida geral do país, é a falta de coesão social, o desagregamento dos indivíduos, alguma coisa que os reduz ao estado de isolamento absoluto, de átomos inorgânicos, quase podia dizer de poeira impalpável e estéril21.

O povo brasileiro não possui capacidade de agir de forma autônoma, o que deriva de sua própria formação: Como atividade, como força, como espírito, ele não deu-se a si mesmo

os órgãos e funções de sua vida social. Tudo lhe foi outorgado, como a um autômato imenso que devesse bolir só por virtude de quem tivesse aquela mágica e suprema chave de toda a organização política22. A única possibilidade de transformação, portanto, deriva da ação estatal, já que só o Estado tem condições efetivas de atuação. À sociedade civil, inorgânica, desarticulada, cabe esperar a ação deste.

E se a sociedade é descrita em cores sombrias, a cultura brasileira é igualmente criticada e posta no nível mais baixo de uma escala cultural evolutiva: O ponto principal do nosso

negócio, bem considerado, é o seguinte:- Eu digo que a nossa cara pátria está na retaguarda das nações, em matéria de ciência e letras;- eu digo que, sob esta relação, o

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21- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Aracaju, Edição do Estado do Sergipe, 1926, v. IV, p. 101 22- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. X, p. 23

Brasil só tem para acompanhá-lo o seu velho Portugal, que não se acha em melhor estado23. Com isto, a própria idéia de existência de uma cultura brasileira- idéia central na obra de Romero- é negada, e Barreto conclui: A candidatura do Brasil aos foros de nação

culta é um fenômeno mórbido:- alguma coisa de semelhante ao disparate dos loucos que se julgam reis24. E com isto, sua visão do futuro é marcada pelo desalento: Lastimável

Brasil! Parece que este pobre país está condenado a representar sempre um papel secundário, terciário em face das outras nações25.

E também em relação à cultura popular- tema tão caro a Romero e fundamental em sua obra-, a distância entre ele e Barreto é grande. Se Barreto reconhece, por exemplo, a necessidade de estudar a influência negra nesta cultura e a incipiência destes estudos, ele jamais deixa de considerar tal cultura como mera superstição brasileira26, não demonstrando sombra da empatia revelada por Romero em seus estudos.

A crítica de Barreto caminha a par, contudo, com o conservadorismo do autor, e com a recusa a mudanças radicais, o que o leva a declarar:

Causa-me horror a idéia de uma liquidação social; mas eu concebo e afago a

idéia de uma liquidação literária...O instituto da Internacional é para mim a organização da loucura. Porém ideio alguma coisa de análogo, que aliás não há mister de recorrer ao ferro e ao fogo; que aliás não se aparenta com a Comuna de

___________________________________________________ 23- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. II, p. 373 24- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. III, p. 258 25- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. X, p. 45 26- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. III, p. 297

Paris; uma espécie de Internacional em literatura27.

As mudanças por ele preconizadas, portanto, deveriam limitar-se ao campo literário. Seu radicalismo padece de limites que ele próprio encarrega-se de definir com precisão. E o conservadorismo de Barreto o leva, ainda, a diferenciar liberdade e igualdade, fazendo a apologia da primeira e a crítica do igualitarismo, em um curioso anticomunismo avant la

lettre. Para o autor

A liberdade entregue a si mesma, à sua própria ação, produz naturalmente a

desigualdade, da mesma forma que a igualdade, tomada como princípio prático, naturalmente produz a escravidão...O mais alto grau imaginável da igualdade- o comunismo,- porque ele pressupõe a opressão de todas as inclinações naturais, é também o mais alto grau de escravidão28.

Barreto é antimonarquista: A realeza me parece anacrônica, considerada em si mesmo e

por si mesma, como diria um hegeliano29, sendo o imperador definido como um mendigo

ilustre, que só consome e nada produz30. E ele define como inviável a existência, no Brasil,

de uma monarquia constitucional: Não vejo que se possa defender com vantagem uma _______________________________________________________

27- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. III, p. 251 28- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. IV, p. 103 29- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. IX, p. 233 30- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. X, p. 204

instituição cujo menor defeito tem sido derramar no espírito nacional um desânimo incurável e como que o tédio de uma velhice precoce31. Por outro lado, o monarca é tristemente representativo: Assim é fácil compreender que o monarca represente a nação,

porque a nação é morta, moralmente morta32.

E ao criticar as instituições políticas e religiosas vigentes no Império, Barreto questiona poderes e concepções por ele vistas como entraves ao desenvolvimento da ciência e, entre estes e principalmente, o autor situa a Igreja. Ele recusa aos padres direito e competência para intrometerem-se em questões ligadas à ciência, e posiciona-se perante às crenças religiosas: Não sou, nem quero ser um devoto. Os espíritos devotos, no rigoroso sentido da

palavra, me são sempre suspeitos33. Define tais crenças como meros riscos na parede34, e prediz seu desaparecimento perante o conhecimento científico:

Aproxima-se decerto alguma coisa de grave e profundamente extraordinário. É o

espírito humano, considerado em suas eminências, que lança ao desprezo o resto dos brinquedos de sua infância. É a queda do último véu que ainda nos oculta muita verdade santa, apenas pressentida pelos raros eleitos da ciência, cruelmente imparcial com a natureza35.

____________________________________________________________ 31- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. IX, p. 175

32- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. X, p. 74 33- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. II, p. 150 34- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. II, p. 412 35- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. III, p. 48

Barreto nutre, ainda, completo desprezo pela sociologia- para ele, uma ciência que somente medraria em países atrasados como o Brasil- e pelos sociólogos. Segundo ele, em

geral os sociólogos não são homens com quem se possa falar sério; são espíritos incompletos ou doentes36. Tal desprezo ajuda a entendermos a maneira como o autor pensa o conhecimento científico: uma maneira oposta ao método romeriano, exatamente porque Barreto recusa qualquer tipo de determinismo, sendo que o método utilizado por Romero sempre foi determinista por definição. O determinismo seria a negação da liberdade e da vontade humanas, e a sociologia seria a busca de determinismos sociais37; daí sua recusa à disciplina, expressa nestes termos: Eu não creio na existência de uma ciência social. A

despeito de todas as frases retóricas e protestos em contrário, insisto na minha velha tese:- a sociologia é apenas o nome de uma aspiração tão pouco elevada, quão pouco realizável38.

Todas estas idéias foram desenvolvidas na província, de onde nunca saiu e onde jamais conseguiu um mínimo de estabilidade econômica, vivendo sempre em relativo isolamento; neste sentido, Romero foi- e certamente se viu como- um Tobias Barreto que foi tentar a vida na Capital Federal. E em sua última carta a ele, escrita em seu último ano de vida, Barreto deu conta de seu estado: como estou reduzido à proporções de pensionista da

caridade pública, e me fala nisto em sua carta, peço-lhe que dê pressa às entradas das contribuições de sua lista, visto como os meus últimos recursos estão se esgotando39. ____________________________________________________________

36- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. IX, p. 80 37- Cf. BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. IX, p. 38 38- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. IX, p. 33 39- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. X, p. 335

A situação de marginalidade cultural que foi a de Barreto durante toda sua vida- pensador ignorado pela Corte e de franca miséria no final desta-, explica seu ressentimento de provinciano e a maneira como buscou, sempre, exaltar a província em detrimento da Corte. Para ele, a corte do império é o resumo, a condensação sombria de toda a sorte de

males que nos afligem40. Já em relação à província, tudo se inverte: O que há no Brasil de

aspirações elevadas, de idéias generosas, de vitalidade oculta e aproveitável, estúa fervidamente no seio das províncias41.

E explica, de certa forma, seu apego obsessivo à cultura alemã, que levou Araripe Júnior a chamá-lo de uma espécie de Wagner brasileiro42. Roger Bastide atribui o germanismo extremado de Barreto ao que seria a vontade mental do mestiço de mudar de cor43. E Mário de Andrade, que confessa seu pouco apreço pelo autor, já apontara para a mesma direção:

Propenso por natureza ao pensamento puro, o plebeísmo, a mestiçagem que ele

tanto fez para renegar, tornaram-no um vingarento e um escandalizador sistemátco. Até que ponto foi esse desejo de escandalizar, por uma superioridade qualquer, que o levou a estudar o alemão e lhe encurtou a meta de todos os seus vôos44?

Mestiço, pobre, provinciano, pouco reconhecido e pouco valorizado em seu tempo, Barreto tampouco teria sucesso maior junto à posteridade. Ele, hoje, já não é lido e pouco é _______________________________________________________________

40- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. X, p. 176 41- BARRETO, Tobias. Obras Completas. Op. Cit., v. X, p. 36

42- ARARIPE JÚNIOR.. Obra Crítica. Volume 2. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1960, p.213

43- Cf. BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo, Perspectiva, 1973, p.63 44- ANDRADE, Mário de. Vida literária. São Paulo, HUCITEC/EDUSP, 1993, p.51

discutido. Mas simboliza a transição para um período no qual a produção cultural brasileira iria transformar a ciência- ou o que se entendia como tal- em chave mestra para abrir as portas da modernidade e para explicar a realidade brasileira. Autores como Sílvio Romero, evidentemente, mas, ainda, um Euclides da Cunha, devem muito a ele.