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Cf VIANNA FILHO, Luis O sertão e o negro In: Revista do Brasil, 3 a Fase Rio de Janeiro, 1938, p

CONSAGRAÇÃO E MARGINALIDADE

OS MENDIGOS FARTOS

55- Cf VIANNA FILHO, Luis O sertão e o negro In: Revista do Brasil, 3 a Fase Rio de Janeiro, 1938, p

56- Cf. CHAUÍ, Marilena & FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Ideologia e mobilização popular. Rio de Janeiro, Paz e Terra/CEDEC, 1978, p.146.8

modernizante a partir da qual o sertão deveria ser ocupado pelas cidades e invadido pela modernidade é invertida na proposta de Plínio: nela, o “espírito” e a “mentalidade” do

“Sertão” do nosso Hinterland, é que deveriam comandar e dirigir o nosso processo de civilização57. Em síntese, o potencial subversivo das grandes cidades poderia funcionar

como fator de dissolução da identidade nacional: eis seu temor58. E é ilustrativo da maneira

como ele busca incorporar Euclides ao integralismo um episódio narrado por Paulo Emílio Sales Gomes, em artigo publicado em 1934:

O chefe nacional e seus companheiros, chegando a Cantagalo, dirigiram-se para o

jardim onde foi erigida a erma a Euclides da Cunha. Aí, cercaram o busto indefeso, chamaram-no de integralista, e em seguida Plínio fez a chamada do novo companheiro. Thompson comovidamente respondeu: presente! Plínio soluçava59.

E ainda um autor simpático ao Estado Novo como Cassiano Ricardo, ao fazer o elogio da pureza sertaneja em contraposição à corrupção urbana, retoma a dualidade euclideana:

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57- MEDEIROS, Jarbas. Ideologia autoritária no Brasil: 1930-1945. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1978, p.530

58- Cf. TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo, DIFEL, 1979, p.52

59- GOMES, Paulo Emílio Sales. Euclides da Cunha, Olavo Bilac e o integralismo. In: CALIL, Carlos Augusto & MACHADO, Maria Teresa ( Org. ). Paulo Emílio: um intelectual na linha de frente. São Paulo/Rio de Janeiro, Brasiliense/EMBRAFILME, 1986, p.27

O sertão e a cidade prestam-se obséquios mas não se casaram ainda em definitivo. Casa-se o homem com a terra, casam-se as raças. O sertão e a cidade são noivos há 400 e tantos anos e ainda não se casaram. Ela não compreende, por preconceitos e defeitos culturais, o seu noivo sedutor e feroz60.

O sertanejo, a partir do Estado Novo, por outro lado, perde espaço no imaginário nacional, e passa a ser visto como símbolo de um atraso a ser superado. Com isto, a imagem do sertanejo deveria necessariamente, ainda, desaparecer em tempos de modernidade, e ser substituída, por exemplo, pelo candango construtor de capitais. É exatamente o que faz Juscelino Kubitschek, em discurso lido em Brasília. Ali, ele proclama: A aparência triste

de um inválido esmorecido, com que Euclides da Cunha pintou o retrato do nosso sertanejo, tende a apagar-se do panorama brasileiro. Não a encontrareis no tipo do candango, a quem devemos esta cidade61. O candango seria, grosso modo, o sertanejo que migrou para a civilização e modernizou-se.

O sertão, na cultura brasileira, não possui, em síntese, apenas um sentido geográfico, regional. Possui, também, um sentido metafórico que se torna múltiplo e ultrapassa, em vários sentidos, o aspecto territorial. Guimarães Rosa percebeu a dimensão polissêmica da palavra, ao afirmar: O sertão está em toda a parte62. E ao reafirmar: O sertão é do

tamanho do mundo63. Lúcia Lippi Oliveira acentua este caráter metafórico do sertão ao enumerar as características que lhe são atribuídas e concluir: Para além destes atributos, _____________________________________________________________________ 60- RICARDO, Cassiano. Marcha para o Oeste. Rio de Janeiro, José Olympio, 1940, v. I, p.227

61- CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte, Itatiaia, 1984, p.186 62- ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1980, p.9

aparece no imaginário social a idéia de que não há um sertão, mas muitos sertões, e que o sertão pode e deve ser tomado como metáfora do Brasil64.

O mito do sertão- o sertanismo- não pode, contudo, ser confundido com uma vertente literária que estruturou-se sob o nome de regionalismo, a qual Antônio Cândido refere-se ao mencionar toda a aluvião sertaneja que desabou sobre o país entre 1900 e 1930 e ainda

perdura na literatura e no rádio65. Tal vertente possui, por outro lado, origens anteriores ao período mencionado por Cândido, servindo como fonte de inspiração para poetas como Juvenal Galeno e romancistas como Franklin Távora, além de ser tematizado no ciclo sertanejo de José de Alencar: idealização romântica e pioneira do sertanejo.

Temos, então, um regionalismo que se expressaria através do folclore, e outro de cunho literário. Em ambos, surge a preocupação em moldar uma identidade nacional a partir da definição de feições regionais e do desenho frequentemente epidérmico do que se supunha serem os traços da autenticidade cultural brasileira. Em ambas as vertentes, ainda, define- se a busca por uma certa pureza a ser contrastada com a corrupção urbana. Ao estruturar sua obra a partir da mesma dualidade, Euclides, aí sim, apresenta evidentes pontos de contato com a produção regionalista.

E como Euclides, finalmente, pensa o sertão? Ele usa o termo principalmente como conceito antitético ao litoral, não preocupando-se em contextualizá-lo historicamente de forma precisa. Por outro lado, Euclides vai além da história factual, baseada em acontecimentos políticos, privilegiando a dimensão sócio-cultural do processo de formação _____________________________________________________________________ 64- OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Americanos: representações da identidade no Brasil e nos Estados Unidos. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000, p.70

nacional, tomando Canudos como episódio paradigmático no qual o passado permanece intocado, podendo, a partir daí, ser estudado no presente.

E quem é o sertanejo? Na abordagem inicial deste, Euclides parte de uma negação: o sertanejo não é civilizado, não vive no tempo histórico, não é moderno. Vive como que ausente e seu arraial torna-se um buraco negro no contexto da nacionalidade. Mais tarde, contudo, tal eixo ganha vida própria, tornando-se não mais bárbaro e, sim, apenas atrasado. A trajetória analítica de Euclides vai da barbárie ao atraso, com o segundo conceito deixando de lado o primeiro.

Ao definir o sertanejo como cerne da nacionalidade, Euclides está como que indicando o caminho a partir do qual esta possa- necessidade imperiosa- ser construída. E se tal nacionalidade toma como ponto de partida uma sub-raça, contrariando todos os pressupostos teóricos nos quais o autor se ampara, este busca desviar-se da contradição a partir da constatação da inexistência, segundo ele, do escravo no sertão. Para Euclides, o

elemento africano de algum modo estacou nos vastos canaviais da costa, agrilhoado à terra e determinando cruzamento de todo diverso do que se fazia no recesso das capitanias66.

Em relação ao índio, temos processo oposto: ali, a população indígena, aliada aos raros mocambeiros foragidos, brancos escapos à justiça ou aventureiros audazes, persistiu dominante67. Gera-se assim, no pensamento euclideano, uma retomada da valorização da influência indígena que caminha a par com a desvalorização da herança africana, em um processo que remete ao indianismo romântico e ignora a inversão proposta por Romero. A _____________________________________________________________________ 66- CUNHA, Euclides da. Os sertões. Op. Cit., p.66

inexistência ou pouca presença do elemento negro no sertão serve como elemento de valorização do sertanejo, filho do índio e do bandeirante, gerado em um meio isolado no qual permaneceu, o que permitiu que se conservasse prolongando, intacta, no Brasil contemporâneo, a índole varonil e aventureira dos avós68. Cria-se um contraste a partir da expressão célebre, tornada banal pela repetição a ponto de ser quase constrangedor escrevê-la, mas que é a chave da obra do autor: O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não

tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral69.

Temos o cerne da nacionalidade, então, constituído por uma sub-raça infensa aos valores da modernidade. Não podemos simplesmente virar as costas ao sertanejo, sob pena de sacrificarmos a própria nacionalidade, mas a modernidade também é um projeto indispensável. Cria-se um impasse para o qual Euclides oferece a solução escrevendo não sobre o Brasil, mas sobre a Rússia, em texto intitulado A missão da Rússia. Ali, ele afirma:

Ninguém pode prever quanto se avantajará um povo que, sem perder a energia essencial e a coragem física das raças que o constituem, aparelha a sua personalidade robusta, impetuosa e primitiva, de bárbaro, com os recursos da vida contemporânea70. Uma solução para o Brasil, segundo Euclides.

Uma solução que, se não ocorreu em Canudos, frustrada pela miopia criminosa do Exército e dos políticos, pode estar ocorrendo na Amazônia, que surge, aos olhos do autor, como uma promessa contraposta à corrupção do litoral. Euclides vê, ali, realizar-se seu ideal étnico e nacional, e afirma:

_____________________________________________________________________ 68- Cf. CUNHA, Euclides da. Os sertões. Op. Cit., p.71

69- Cf. CUNHA, Euclides da. Os sertões. Op. Cit., p.81

Lá estão todos os destemerosos convergentes de todos os quadrantes. Mas, sobrepujando-os pelo número, pela robustez, pelo melhor equilíbrio orgânico da aclimação, e pelo garbo no se afoitarem com os perigos, os admiráveis caboclos do Norte que os absorverão, que lhes poderão impor a nossa língua, os nossos usos e, ao cabo, os nossos destinos, estabelecendo naquela dispersão de forças a componente dominante da nossa nacionalidade71.

São retomados, nos textos sobre a Amazônia, os temas do isolamento étnico e do determinismo geográfico. Como acentua Santana, novamente estavam em pauta os

modelos do cientificismo que tanto impregnara Os Sertões72. E o sertão de Canudos é definido como uma síntese dos sertões do Norte, seu representante exemplar no que tange ao aspecto físico: resume-os, enfeixa os seus aspectos predominantes numa escala

reduzida. É-lhes de algum modo uma zona central comum73. Tal caráter exemplar tem consequências metodológicas: permite a Euclides tomar o arraial como ponto de partida para demonstrar a influência do meio sobre a ação humana. Pelo fato de Canudos ser exemplar, tal influência se dá, ali, também de forma exemplar.

Naquele ambiente hostil, contudo, a vila destaca-se como um oásis possível e, como tal, _____________________________________________________________________ 71- CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos, Op. Cit., p.105

72- SANTANA, José Carlos Barreto de. Euclides da Cunha e a Amazônia: visão mediada pela ciência. In: História, Ciência, Saúde: Manguinhos, Vol. VI. Suplemento. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2000, p.904

ela forma um contraste isolado com o ambiente estéril74. E também isto teve consequências, com Monte Santo transformando-se em ponto de parada para desbravadores do sertão; bandeirantes, principalmente.

Fatores históricos e mesológicos determinaram a formação nacional. No norte, foram criadas capitanias dispersas e amorfas, sob o manto de uma Coroa centralizadora. Já no sul, criou-se uma onda conquistadora e aventureira que invadiu e semeou o sertão, canalizada, por sua vez, pelas características geográficas da região na qual se formou75. E o sertanejo nasceu deste processo; elemento admirado pelo autor por sua tenacidade e bravura, nasceu do bandeirante e herdou suas qualidades; assim, Euclides explica-as.

A formação cultural do sertanejo seria insuficiente, por outro lado, para a criação de padrões de civilização condizentes com os tempos modernos, permanecendo este, portanto, um retardatário, se não for impulsionado- civilizado seria o termo correto- pelos setores da sociedade brasileira capazes de adequarem-se a tais setores. Ao mesmo tempo, seu atraso é sua arma. O atraso do sertanejo transforma-se em instrumento de resistência, sua incapacidade em adaptar-se ao progresso transforma-se em virtude. Perfeitamente adaptado a um espaço atemporal, ele resiste às novas tecnologias.

Permanece, contudo, uma questão em aberto: a solução proposta por Euclides- o sertanejo- situa-se fora do tempo. Integrado à história, inserido na modernidade, ele dissolve-se. Modernidade e identidade nacional permanecem pólos irresolvidos.

Mas a necessidade de incorporá-lo permanece, e o autor em momento algum coloca-a em questão; o que Euclides discute e critica são os meios. Um paralelo: no contexto da _____________________________________________________________________ 74- Cf. CUNHA, Euclides da. Os sertões. Op. Cit., p.173

Revolução Soviética, Lênin menciona a necessidade de não se hesitar em usar a barbárie para combater a barbárie76. E em texto intitulado Plano de uma cruzada, Euclides fala em compensar o duro esmagamento das raças incompetentes com a redenção maravilhosa dos

territórios77. Neste sentido, porém, uma contradição básica estrutura Os Sertões: Euclides, já na nota preliminar, define o sertanejo como uma sub-raça instável e de deplorável situação mental, talvez efêmera, talvez fadada ao desaparecimento78. Mas a campanha de Canudos, que Lênin definiria como a necessária destruição da barbárie foi, para Euclides, um crime a ser denunciado.