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ZILBERMAN, Regina Críticos e historiadores: pesquisando a identidade nacional In: Via Atlântica Num 4 São Paulo, USP, 2000, p

MESTIÇAGEM E PESSIMISMO

13- ZILBERMAN, Regina Críticos e historiadores: pesquisando a identidade nacional In: Via Atlântica Num 4 São Paulo, USP, 2000, p

154- Cf. ODÁLIA, Nilo. Formas do pensamento historiográfico brasileiro. In: Anais de História. Ano VIII. Assis, UNESP,1976, p.38

o qual o clima fica em segundo plano, embora este tenha, também, atuado na formação racial155.

Entender, em síntese, o processo de miscigenação, para o autor, é condição indispensável para entender o próprio brasileiro, pois foi este processo que o gerou e é a partir dele que o brasileiro pode reinvidicar alguma pretensão à originalidade entre os outros povos. Deste processo, deriva a identidade nacional em toda sua essência. Deriva dele, ainda, a heterogeneidade racial que marcaria indelevelmente o brasileiro como um ser inferior perante o europeu, seguindo a cartilha dos teóricos europeus que Romero sempre teve na conta de mestres insuperáveis e inatacáveis mas, aqui, ele opera uma inversão de valores que abriria caminho para a obra de Gilberto Freyre, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna, entre outros.

A solução encontrada foi- sem negar validade às conclusões destes teóricos- adaptá-las ao contexto nacional e buscar o branqueamento como solução conciliatória entre tais conclusões e tal contexto. Não foi, porém, uma solução pacífica já que, no esquema racial proposto por estes autores, o brasileiro mestiço descrito pelo autor deveria ocupar uma solução necessariamente inferior e fadada a ser superada pela supremacia do homem branco. Tal pressuposto terminaria colocando Romero em um impasse que os pensadores brasileiros ( e foram muitos ) que envolveriam-se, mais tarde, no debate sobre a questão racial a partir de premissas semelhantes às suas tentariam resolver: o que é a origem do sucesso do processo de colonização e a chave da formação nacional fundamenta a inferioridade racial do brasileiro, em um esquema de desenvolvimento histórico baseado em teorias raciais aceitas por estes autores.

Foi, contudo, uma solução que pressupunha a superação impossível, afinal, das ambiguidades e contradições mencionadas por Odália e oriundas do conflito entre as

teorias científicas européias, em relação à raça e ao meio, e as condições raciais herdadas da colônia156, e que não se manteve. A adoção de uma perspectiva cada vez mais negativa perante o branqueamento, induzida pela adoção de um arianismo ortodoxo à Gobineau, levaram-no a um beco sem saída, na medida em que a miscigenação que agiu como diretriz básica da identidade nacional passou a ser vista apenas como um mal irremediável. E Ventura data esta mudança: Sua confiança nos lucros evolutivos de tal contabilidade racial

foi, porém, abalada a partir de 1900, quando se mostrou cético quanto ao futuro branqueamento da população brasileira e passou a aceitar as teorias arianistas contrárias à mestiçagem, que antes rejeitara157.

É o próprio Romero, de qualquer forma, quem se encarrega de datar seu crescente pessimismo. Ao comentar um ensaio de Euclides da Cunha sobre Floriano Peixoto no qual nega que este se diferencie em relação aos defeitos predominantes em conterrâneos, Romero conclui:

É verdade que o caráter nacional tem se despenhado num declive de meter dó, bastando

para prová-lo as inqualificáveis vilanias da política dos últimos anos, de que é inútil citar exemplos, porque se contam aos milheiros. Em todo caso, é inegável que nos tempos de Floriano não tínhamos ainda descido tanto e que ele se

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156- ODÁLIA, Nilo. As formas do mesmo: ensaio sobre o pensamento historiográfico de Varnhagem e

Oliveira Vianna. São Paulo Editora da UNESP, 1997, p.21

manteve firme na história pela virtude da resistência158.

Romero parte de Gobineau, contudo, para universalizar o próprio processo de miscigenação, negando que este seja específico das novas civilizações, atingindo o que ele chama de genuíno ariano, desfigurando e tornando-o, portanto, cada vez menos genuíno. Foi Gobineau com sua admirável visão genial, segundo Romero, quem descreveu as causas

da decadência do poder, da grandeza e da cultura, iniciada por toda parte pela grande raça, como resultantes do cruzamento com elementos inferiores, ali e noutras regiões. A

própria superioridade racial do europeu, nesta perspectiva, deriva de um processo de miscigenação com outras raças, processo este que a formou e a condicionou. Mas que também gerou problemas, como ele conclui logo depois: a mistura de Europeus com

Acrgnonus, Contractus, Meridionalis, Alpinus e outros tipos antropológicos não tem sido estreme de sérios defeitos, estigmatizados pelos grandes conhecedores científicos e por espíritos de primeira ordem159.

Se o mestiço é o problema, contudo, ele também faz parte da solução, atuando como instrumento no processo de supremacia da raça branca, processo que terá como consequência sua própria absorção por esta raça. Para o autor, o mestiço é a condição desta

vitória do branco, fortificando-lhe o sangue para habilitá-lo aos rigores do clima. É uma forma de transição necessária e útil que caminha para aproximar-se da raça superior160 .

____________________________________________________________________ 158- ROMERO, Sílvio História da literatura brasileira. Op. Cit. , v. V, p.405 159- ROMERO, Sílvio História da literatura brasileira. Op. Cit. , v. V, p.157 160- ROMERO, Sílvio . Estudos sobre a poesia popular no Brasil. Op. Cit., p.231

A mestiçagem que interessa a Romero como objeto de estudo é a do branco com o negro, ficando o indígena relegado a um plano inteiramente inferior em termos de elemento formador da nacionalidade. O esquecimento ao qual o negro foi relegado é, para Romero, a

mais censurável ingratidão de toda a nossa história161.

Romero define as raças históricas, enfim, como raças mestiças: produtos híbridos. Partindo deste pressuposto que, aliás, jamais abandonaria, Romero abre um caminho pelo qual passariam gerações de pensadores. O mestiço torna-se a figura central da formação nacional e, para fazer isto, ele precisa combater o índio, ou melhor, o indianismo.

O índio, na obra de Varnhagen, significa a barbárie em oposição ao homem branco, e uma barbárie de tal modo irrecuperável que, depois de quase três séculos de contato com o homem branco, ele chegou a mudar pouco ou nada: Quanto aos índios, pouco ou nada se

havia melhorado. Ou seguiam nos bosques matando-se e comendo-se uns aos outros, ou, à custa de esforços, gastos e sacrifícios, se chegavam por muito favor a aldear sem vantagens decididas para a sociedade162. Romero segue a trilha aberta pelo autor, sendo o índio, para ele, pouco mais que uma mistificação sem importância real na constituição do brasileiro, e uma mistificação construída a partir da escamoteação da importância do negro. Compreender adequadamente este processo, para ele, implicava em invertê-lo, relegando o índio à sua insignificância e conferindo ao negro o papel fundador que era o seu de direito e de fato.

A constante preocupação em ressaltar a importância do negro no processo de formação ____________________________________________________________________

161- ROMERO, Sílvio História da literatura brasileira. Op. Cit. , v. I, p.287

162- VARNHAGEM, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. São Paulo, Melhoramentos, 1948, v. V, p.171

nacional levou o autor a tornar-se um crítico feroz do indianismo- por ele chamado de

caboclismo de opereta163- e dos autores que o representavam, entre eles e principalmente, José de Alencar. O desaparecimento do indígena é visto como um advento inelutável, e em momento algum Romero o lamenta. Para ele, o índio brasileiro está condenado à sorte dos

povos da Polinésia. Ali não só o homem desapareceu ante o concurso europeu, como ainda desapareceram algumas espécies animais e até vegetais com a introdução das espécies estrangeiras164. A mistura de índios, plantas e animais no mesmo balaio demonstra claramente o desinteresse do autor em estudar a dinâmica histórica e as consequências humanas do desaparecimento de toda uma etnia. Trata-se de um processo natural, inevitável e até desejável, uma vez que ele salienta, também, o mal que representaria o Brasil tapuio, segundo ele, desejado pelo indianismo165.

A influência do negro, ainda, foi total, dando-se não apenas em termos sócio- econômicos, mas determinando nosso íntimo e moldando nosso cotidiano. Somos, para ele, integralmente mestiços, e a cultura brasileira é uma cultura mestiça, o que reforça a

alienação das elites antenadas com a cultura européia e avessas a este processo. É fundamental assim, na abordagem feita pelo autor da questão racial, a valorização da

influência negra na cultura e na sociedade brasileira em detrimento da cultura indígena. Romero define o negro como um objeto de estudo em desaparecimento, caminhando para a extinção com o fim do tráfico, e afirma: O negro não é só uma máquina econômica; ele é ____________________________________________________________________

163- Apud MENDONÇA, Carlos Sussekind de. Sílvio Romero: sua formação intelectual (1851-1880). São Paulo. Nacional, 1938, p.49

164- ROMERO, Sílvio História da literatura brasileira. Op. Cit. , v. IV, p.97 165- ROMERO, Sílvio História da literatura brasileira. Op. Cit. , v. IV, p.99

antes de tudo, e mau grado sua ignorância, um objeto de ciência...Apressem-se, porém, senão terão de perdê-lo de todo. E todavia, que manancial para o estudo do pensamento primitivo! Este mesmo anelo já foi feito quanto aos índios166.

O negro é um objeto de estudo científico precisamente devido a seu primitivismo, e não mau grado sua ignorância. Ele não é visto nunca por Romero como um membro legítimo do processo civilizador que deve ser conduzido, necessariamente, pelo branco, mas como um elemento racial que tende a dissolver-se no interior deste processo devido à primitividade que o transforma, ao mesmo tempo, em um precioso campo de estudo.

A legitimação do negro levada adiante por Romero é vista por ele como uma bandeira a ser erguida contra todos os que buscam desmerecê-lo, também, como influência determinante no processo cultural brasileiro. Cabe estudá-lo em toda a dimensão de sua importância: Depois do português é ele o fator mais valente de nosso progresso; de alto a

baixo a vida do brasileiro mostra a sua ação: língua, costumes, contos, canções, tudo no Brasil é de formação tríplice, e o olhar adestrado vai mostrar o veio negro seguindo o branco de perto e deixando o vermelho quase obliterado167.

Na lista de influências acima proposta, entretanto, ficam patentes os limites impostos a esta influência: ela não chega ao campo delimitado, grosso modo, como alta cultura. Na antropologia, na sociologia e em outras áreas, a contribuição potencial do negro simplesmente não é levada em conta.

O reconhecimento desta importância caminha a par com o habitual reconhecimento, pelo próprio autor, de seu pioneirismo, e com uma enfática afirmação de suas origens raciais: ____________________________________________________________________

166- ROMERO, Sílvio . Estudos sobre a poesia popular no Brasil. Op. Cit., p.35 167- ROMERO, Sílvio . Estudos sobre a poesia popular no Brasil. Op. Cit., p.60

Ninguém se lembrou de um dos nossos principais elementos políticos, sociais e econômicos: o negro, e seu parente o mestiço...Nós fomos os primeiros a clamar contra essa lacuna e essa injustiça, apesar de não sermos suspeitos, pois somos filhos diretos de portugueses168. Romero sugere aqui, como acentua Risério, o temor de- ao acentuar tal influência negra- ver-se suspeito, a partir daí, de se ver subitamente vinculado à laia

escura, independentemente do que ousassem dizer os seus formantes genéticos169. De fato, ao ser chamado de mestiço por Teófilo Braga, Romero reaje com a ira de quem foi ferido em um ponto sensível: Quem lhe disse que sou um mestiço e faço etnografia para meu

uso? Porque e para que é assim mau e leviano170 .

Encontramos já delineado na obra de Romero, ainda, o conceito de democracia racial que tão larga influência teria na cultura brasileira, sendo o Brasil um país fatalmente

democrático e sendo a democracia e o mestiçamento os dois maiores fatores de igualização entre os homens171. E, em 1892, ele define o Império como fazendo parte do passado, já que o tempo das aristocracias já passou. Para ele, mestiço por definição, o

Brasil é um país fatalmente democrático172. Aqui, os mestiços são maioria e ditam a lei. Em um período histórico, entretanto, em que a desigualdade racial era tida como pressuposto inquestionável inclusive por Romero, a idéia de democratização social a partir ____________________________________________________________________

168- ROMERO, Sílvio . Estudos sobre a poesia popular no Brasil. Op. Cit., p.153

169- RISÉRIO, Antônio. Black Out: a exclusão do texto africano. In: Revista USP. Num. 18. São Paulo, USP, 1993, p.117

170- ROMERO, Sílvio. Passe recibo. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1904, p.52

171- Cf. ROMERO, Sílvio. Realidades e ilusões no Brasil: parlamentarismo e presidencialismo e outros

da mestiçagem termina solapando a pretensão à superioridade racial do homem branco que Romero mesmo defendia. A mestiçagem torna-se um instrumento indispensável de adaptação aos trópicos ( idéia a ser adotada por Euclides ), e tal adaptação implica na aceitação da herança cruzada das raças. Ajustam-se teorias que, de outra forma, seriam inadaptáveis ao país, em um processo descrito por Antônio Cândido:

Sílvio Romero, sentindo naturalmente quanto poderia ser operativa no Brasil uma

teoria da civilização como mestiçagem, procurou ajustá-la à nossa realidade, e começou por definir a função histórica das populações cruzadas como condição favorável à adaptação do branco ao trópico173.

Romero demonstra, ainda, firme crença na eugenia, e vê nela a solução para os problemas decorrentes da mestiçagem. Segundo ele:

Causa ou efeito, ou, simultaneamente, causa em uns casos, efeito em outros, a severa solução energética, que tem nas gentes particularistas e eugênicas por excelência seus melhores modelos, é que nos convém, se nos queremos regenerar, se aspiramos especialmente a matar a politicagem e seus inqualificáveis e perniciosíssimos efeitos174.

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173- CÂNDIDO, Antônio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo, Ática, 1989, p. 112

174- ROMERO, Sílvio. Realidades e ilusões no Brasil: parlamentarismo e presidencialismo e outros ensaios. Op. Cit, p.321

A eugenia é pensada por ele em termos mais amplos que o meramente racial, devendo funcionar não apenas como instrumento de melhoria étnica, mas buscando evitar a reprodução de degenerados, loucos, epilépticos, tuberculosos, alcóolicos, morféticos175. Ela passa a ser vista, então, como um instrumento de profilaxia médica, moral e social, eliminando-se toda e qualquer proliferação de categorias sociais consideradas problemáticas e indesejadas. Trata-se de um programa de saneamento social cuja amplitude antecipa as mais sinistras experiências nazistas. E trata-se de um programa, ainda, que busca soluções políticas, visando erradicar a politicagem através de melhorias na constituição da população. É como se tais soluções fossem inviáveis com a população disponível no Brasil.

CONCLUSÃO

Se para Eça de Queiroz a importação de idéias levada adiante no Portugal de seu tempo caracteriza-se pela gratuidade, Marx assinala, precisamente, a necessidade de correspondência entre uma determinada teoria e as necessidades da sociedade que a adota, não havendo gratuidade nesta relação. As teorias importadas por Romero não foram idéias fora do lugar; cumpriram um papel específico. As idéias de Romero correspondem, concomitantemente, às necessidades de modernização e reordenamento social características de uma sociedade que vivia a transição para a sociedade de classes sob a égide de um novo regime político. As teorias raciais por ele defendidas dizem respeito à necessidade de criar um corpo de idéias que justifique a nova desigualdade a ser implementada, e que não poderia ser mais justificada pelo estatuto servil. Por outro lado, ____________________________________________________________________

175- ROMERO, Sílvio. Realidades e ilusões no Brasil: parlamentarismo e presidencialismo e outros ensaios. Op. Cit, p.320

sua crítica às elites atende à necessidade de renovação social a ser feitq dentro de um processo de circulação das elites ( para usar a expressão de Pareto ), no qual ele pertence aos setores que buscam a ascensão social, e dependem da modernização para obtê-la. E concluo, enfim, retomando a questão inicial: porque comecei por Romero? Vale, aqui, a observação de Moreira Leite sobre o autor: A sua interpretação do Brasil impregnou de

tal forma os estudos brasileiros que não será difícil perceber sua influência em Euclides da Cunha, em Oliveira Vianna, e até em Gilberto Freyre, para não mencionar a História da Literatura, onde sua influência foi predominante durante muito tempo176. Tomar como ponto de partida a obra de Sílvio Romero significa, portanto, reconhecer sua precedência em mais de um aspecto. Torna-se indispensável, analisando seus parâmetros metodólogicos, reconhecer seu esforço pioneiro- mesmo que tantas vezes equivocado- em sistematizar uma análise que pretendia-se científica da realidade e da história brasileira, abrindo caminho para que outros explicadores do Brasil- e Euclides e Freyre surgem como os nomes mais óbvios- pudessem seguir o mesmo caminho. Também a importância assumida pela questão racial em sua obra e a valorização da miscigenação como eixo formador da identidade nacional deixam claro o caráter pioneiro e inovador desta obra no contexto da cultura brasileira. E situando a questão da identidade nacional em seu pensamento, relacionando-a ao crescente pessimismo que nele se constata, busco acentuar como o autor trata da questão da modernidade tomando como ponto de partida a análise desta própria identidade.

Identidade nacional, cultura popular e raça são temas fundamentais em toda a obra do ____________________________________________________________________

176-LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo, Pioneira, 1976, p.320

autor. A cultura popular tem seu valor específico reconhecido como produção cultural, e não apenas como documento popular, e serve como instrumento indispensável de análise e compreensão da identidade nacional. Compreender o processo de formação racial do brasileiro e, mais especificamente, a importância da miscigenação como elemento central deste processo torna-se condição indispensável para compreendermos a construção e os sentidos adquiridos pela identidade nacional. E o decifrar esta identidade, em seus aspectos positivos e negativos, sempre foi a preocupação central de sua obra.

CAPÍTULO 2