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Antes de abordar diretamente os conceitos e descritores destacados para a compreensão da mudança cognitiva dos profissionais de educação, que acreditamos caracterizar a noção do (In)Fluxo Sócio-cognitivo proposto nesta tese, organizados a partir da matriz de análise exposta (vide Quadro 4), queremos retomar a noção de Reflexividade, a qual entendemos ser capaz de elucidar a relação existente entre elementos das dimensões macro e microssociais da dinâmica sócio-cognitiva analisada.

Com esta finalidade apresentarei um episódio vivenciado durante o acompanhamento do trabalho de campo do profissional “A”, na segunda visita que lhe fiz, em 23 de maio de 2013, cujos aspectos observados na sua rotina foram abordados durante a entrevista no final da jornada desse dia, a partir da qual extraímos dois relatos, que nos remeteram ao processo de reflexividade vivenciados por “A”.

Na tarde deste dia, “A” foi requisitado por um gestor de um setor técnico que acabara de contratar novos eletricistas para a equipe de campo; coube a “A” alertá- lo sobre a exigência de participação destes novos empregados no curso de segurança do trabalho com energia preconizado pela norma regulamentar (NR) 10, que deve ser realizado a cada dois anos; o não atendimento deste pré-requisito, antes da autorização do trabalho, tornaria a empresa “X” vulnerável à autuação da Justiça do Trabalho, especialmente, na ocorrência de acidentes.

A ação de “A”, explicitada em suas afirmações analisadas adiante, que foram provocadas por exigências legais, fazem emergir e trazer para o centro da discussão, a relação entre a reflexividade social e a profissional, que abordamos no segundo capítulo: as suas reflexões, posições e encaminhamentos, em relação às demandas provocadas pelos órgãos reguladores do Governo Federal para o

Trabalho no Setor de Energia Elétrica Brasileiro, que estão sintetizadas nas normas (NR 10 e NR 35), fornecem os indícios desse processo de reflexividade social, macro, realizada pelo Governo Federal ao regulamentar as condições e exigências para a autorização do trabalho no perigoso setor elétrico, especialmente, quando é possível observar como as diretrizes federais são recebidas, interpretadas e efetivadas na base produtiva, através de um processo pessoal reflexivo de um educador, externalizado em suas falas, as quais revelam o funcionamento discursivo de um sujeito que precisa oferecer soluções formativas para as demandas educativas macrossociais da sociedade, representadas pelas normas governamentais brasileiras.

O primeiro relato de “A” está relacionado à Norma Regulamentadora n° 101

, veiculada numa Portaria do Ministério do Trabalho em 07 de dezembro de 2004, cuja finalidade é estabelecer os requisitos e condições básicas para “garantir a segurança e a saúde dos trabalhadores que, direta ou indiretamente, interajam em instalações elétricas e serviços com eletricidade” (Art. 10.1.1). Por conta da carência de instituições de ensino que formem eletricistas para o Sistema de Distribuição, um ramo muito específico do setor elétrico, “A” faz a seguinte declaração (destaques nossos):

O que acontece com a realidade hoje do profissional eletricista: aqui não existe escola de formação de eletricista, não tem. A maioria dos eletricistas são formados pela (empresa “X”, na qual o sujeito trabalha) ou SENAI... e o profissional não pode estar trabalhando, a NR10 estabelece, que ele tem que ter o curso de formação: se você é engenheiro, você tem a graduação de engenheiro; se você é técnico você tem o diploma / certificado de conclusão do curso técnico; o eletricista tem que ter também... a ideia

para esse pessoal, que eu comecei a trabalhar – que eu acho que deve ser feita para esse pessoal que já trabalha a tempo, que já tem habilidade, conhecimento, experiência, tem tudo, é fazer aquela avaliação por competência: fazer uma prova teórica e uma prova prática. Se ele

passar, ele recebe um certificado, não precisa passar por um curso [...]

como se fosse um supletivo. (fonte: entrevista –sujeito A).

Como já indicamos, esse relato foi feito após solicitarmos na entrevista que “A” explicitasse mais detalhadamente, suas perspectivas de atendimento às demandas do Gestor de um setor responsável por uma das atividades fins da empresa “X”, para habilitar os novos eletricistas contratados por ele. Essa questão foi retomada na entrevista realizada no final do expediente, da qual o trecho destacado acima é um pequeno extrato da conversa registrada e que destacamos em negrito algumas

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Vide portaria Portaria GM n.º 3.214, de 08 de junho de 1978.

partes que nos remetem para o processo de reflexividade desse profissional. Nesta ocasião ele me entregou um livro didático sobre o tema, indicando sua autoria em quatro capítulos e informou, também, que existe um cadastro dos profissionais que trabalham diretamente com energia, no qual devem constar as habilitações e treinamentos exigidos para a autorização de realização do trabalho, os quais ficam a disposição dos representantes do Ministério do Trabalho.

A NR 10 foi estabelecida para regulamentar o trabalho num setor que apresenta graves riscos à saúde e vida do trabalhador e cuja estatística de acidentes demandava maior controle e acompanhamento social: a publicação da NR 10, para normatizar a atividade no setor elétrico, pode ser considerada um exemplo de expressão da reflexividade em sua dimensão macrossocial. Ela estimula e é alimentada pela reflexividade individual, profissional, como a resposta de “A” atesta: a percepção da carência de instituições de ensino que atendam esta formação específica, ao lado da busca por uma solução para a certificação e qualificação de profissionais para o setor de distribuição de energia, estimulou a parceria entre a empresa X” e a instituição de ensino profissional (SENAI) para o estabelecimento de critérios e instrumentos que validem o conhecimento adquirido pela experiência profissional dos eletricistas, ao mesmo tempo em que se elaboram cursos iniciais para interessados em ingressar num mercado de trabalho restrito, gerido por monopólios, como é o caso do setor de energia, que é uma concessão governamental e praticamente não existe concorrência entre empresas: o sujeito sabe que se quiser trabalhar como eletricista de distribuição tem que ser na empresa “X” ou em uma de suas terceirizadas.

A proposta de “A”, de criar um mecanismo semelhante ao adotado nos supletivos escolares, a partir do modelo de avaliação por competências, oferece-nos duas evidências importantes do seu movimento cognitivo: a ponte estabelecida por ele entre o mundo escolar e o corporativo, ao buscar no modelo do sistema escolar propostas convergentes às necessidades empresariais. O trabalho tácito de seu pensamento gera “soldas” imprevistas entre as estruturas escolares e corporativas; o segundo aspecto é a presença do modelo de competências como um pré- construído, a marca dele em seu enunciado, que o transporta para a discursividade e FD empresarial das competências constituídas pela junção dos conhecimentos, habilidades e atitudes (CHÁ), que indicamos na revisão como uma marca da CD

empresarial sobre educação. Num primeiro momento “A” se posiciona ideologicamente nessa FD empresarial, da avaliação por competência, silenciando a FD de avaliação processual, diagnóstica, libertária (VASCONCELLOS, 2007) da CD escolar. Por outro lado, no instante seguinte, “A” sugere um formato de certificação “como se fosse um supletivo”, deslizando para a FD escolar, na qual a ideia de supletivo significa e produz sentido, ao ativar o princípio de validação e aproveitamento dos conhecimentos prévios dos educandos.

Seu processo de reflexividade pessoal, que o leva a movimentar-se entre as fronteiras das FD escolar e empresarial, faz conexões com uma discussão mais abrangente do sistema de avaliação da educação profissional brasileiro, da avaliação por competências, da certificação, autorização e habilitação de profissionais que construíram seu saber no campo profissional e não nos espaços escolares, reflexão que oferece elementos para alimentar o debate sobre a normatização social para estes casos, ou seja, a análise da fala de “A” propicia um exemplo elucidativo de como a reflexividade social estimula a individual, que por sua vez, estimula a social num ciclo permanente, embora não haja garantias de que a ação individual modifique a realidade social.

O segundo exemplo de demonstração da reflexividade, que podemos fazer emergir da produção discursiva dos sujeitos, encontramos no segundo depoimento de “A”, o qual também está relacionado a outra norma regulamentadora, desta vez a NR 352, que é o documento regulador do trabalho em altura, que disciplina e orienta,

de maneira geral, os procedimentos que devem ser adotados em todas as empresas que possuem trabalhadores desempenhando atividades a mais de dois metros de altura. Esta norma é mais recente, foi publicada em 26 de março de 2012 pelo Ministério do Trabalho, porém, exige a elaboração de treinamentos práticos das empresas, de acordo com as especificidades de suas atividades, visto que os procedimentos de segurança para trabalhadores da telefonia são distintos dos empregados da construção civil ou do setor elétrico, só para citar alguns exemplos.

Este segundo trecho foi registrado durante a mesma entrevista, em que primeiro depoimento foi realizado, portanto, o contexto imediato indicado para a transcrição anterior é o mesmo. Ao comentar sobre os aspectos do seu trabalho com

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Ministério do Trabalho e Emprego. Portaria N.º 593 de 28 de abril de 2014.

http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C816A45B266980145CD35969A6898/Portaria%20n.%C2%BA%20593%20( Altera%20a%20NR-35)%20Acesso%20por%20Cordas.pdf.

EC, “A” faz a seguinte declaração (destaques nossos):

A gente tem um curso aqui de uma NR 35, que é Norma em altura, aí a gente fez o curso o ano passado: verificamos que tem uma deficiência

no curso – a questão de trabalho em altura em torre de transmissão, porque nosso curso está mais voltado para a parte de rede, de poste – de

rede de distribuição, não torre (de transmissão) só em poste mesmo.

Então amanhã, como vai ter uma prática de um curso que está tendo aqui de Linha de Transmissão [...] a gente vai filmar para quando tiverem as novas turmas de NR 35, ele já vai introduzir esse conteúdo no curso de

NR 35, que ficou com esse GAP, com essa lacuna de Linha de Transmissão. (fonte: entrevista – sujeito A).

É possível observar, no segundo relato de “A”, outros indícios dessa reflexividade, a que nos referimos, operando: ao cumprir uma determinação imposta pelo Governo Federal, que exige a capacitação dos trabalhadores da empresa “X” em formações sobre a NR 35, mais estritamente para os que desempenham atividades em altura, ele trabalhou na elaboração da proposta do curso, dos recursos áudio-visuais e organizou todo o material didático para esta formação. Na ocasião da entrevista me foi entregue uma pasta com um CD contendo seis vídeos (produzidos para demonstrar operações e procedimentos de segurança, como resgate, em postes da rede de distribuição), um manual comentado da NR 35, um instrumento de avaliação e 103 slides com o conteúdo programático a ser desenvolvido durante o curso. Dessa forma, além de “A” realizar a transposição e tradução das determinações legais do Ministério do Trabalho para uma linguagem didática, baseada em distintas materialidades discursivas (vídeo, textos e imagens) e de acordo com as especificidades da empresa “X”, foi necessário também reavaliar os resultados que esta formação estava alcançando, refletir um pouco mais, e, a partir disto, detectaram-se lacunas significativas em relação à norma complementar interna da NR 35 elaborada pela empresa “X”.

Eventualmente, os profissionais da empresa de distribuição precisam atuar em “Torres de Transmissão”, demandando assim protocolos de trabalho e procedimentos diferenciados dos adotados nos postes, por conta da altura e da potência energética diferente presentes nesses locais. Essa “deficiência e lacuna” na capacitação, percebida por “A”, após pouco mais de um ano de desenvolvimento da formação da NR 35, gerou a necessidade de produzir novos materiais didáticos (vídeos, textos e slides), bem como a revisão da norma para a empresa “X”, cujas reformulações podem ser submetidas à comissão do Ministério do Trabalho,

responsável pelo acompanhamento e atualização das normas federais de segurança no trabalho; esse outro relato de “A” subsidia novas interpretações sobre os seus deslocamentos discursivos e movimentos cognitivos no trabalho da EC.

Sua afirmação de que “verificamos que tem uma deficiência no curso”, sugere uma atividade reflexiva de observação e contraste entre a realidade laboral dos eletricistas e as condições formativas para a preparação e habilitação do trabalho com altura; o uso de diferentes linguagens, oriundas dos vídeos filmados, dos slides com fotos, informações e modelagens, bem como a disponibilização de diferentes textos bases para a capacitação, atesta a realização de um trabalho marcado pela reflexividade profissional, cuja automatização dos processos é evitada para que se possa questionar os resultados obtidos, avaliando e acompanhando as ocorrências de acidentes na empresa “X”. É justamente neste vínculo, entre a reflexão profissional subjetiva, com a reflexão coletiva e institucional, materializada nas normas como a NR 35, que nos apoiamos para afirmar que o processo de reflexividade possui e se retroalimenta em suas dimensões micro e macrossociais, estando assentada num movimento de vai e vem entre a reflexão pessoal e seu reflexo social.

O exemplo da NR 35 ratifica esta interpretação, visto que foi o elevado número de acidentes ocorridos com trabalhadores, dos mais diversos setores que trabalham com processos e procedimentos em alturas, os quais eram socializados em fóruns de segurança e reuniões de sindicatos, que deflagrou a estruturação de uma comissão tripartite (Governo, Empregados e Empregadores) em 2010 para criar normas que regulamentassem o trabalho em altura, a partir de condições básicas de segurança. A norma resultante desse debate social foi submetida à consulta pública, e posteriormente publicada em portaria federal produzindo efeitos nas organizações, como a obrigatoriedade das formações e treinamentos a que “A” se refere em sua fala.

Outro aspecto da fala de “A”, que poderia passar despercebido pela forma despretensiosa em que a expressão foi utilizada, foi o uso naturalizado do termo “GAP” para relatar os problemas da capacitação na NR 35; trata-se de uma expressão do inglês corrente e corriqueiro nas corporações para indicar faltas, lacunas, deficiências. O seu uso indiscriminado, silenciando a essência e os significados contidos nessa expressão, revela o efeito ideológico operando em “A”,

que se inseriu na FD corporativa para ser aceito e abrigado na CD empresarial. Só assim poderá compartilhar dos seus sentidos e participar de sua discursividade, assumindo uma posição na rede de significações do discurso empresarial sobre EC, espaço discursivo de onde falou na ocasião.

Dessa forma, nesses dois enunciados de “A” registrados em um único episódio acompanhado, identificamos um poder simbólico impressionante, capaz de revelar aspectos significativos de sua movimentação cognitiva e discursiva, percorrida no trânsito realizado entre os mundos escolar e corporativo, remetendo-nos ao âmago de nossa questão de pesquisa, que busca compreender como o ingresso na EC produz mudanças cognitivas nos profissionais de educação, como o exemplo de “A” nos ajuda a caracterizar.

Nesta análise, efetuada a partir da interpretação de dois depoimentos de “A”, encontramos subsídios para discutir um dos aspectos envolvidos nessa mudança cognitiva, a noção de reflexividade, a qual constitui importante elemento do (In)Fluxo sócio-cognitivo vivenciado pelos profissionais de educação. O posicionamento de “A” e suas respostas às demandas sócio-institucionais no trabalho com EC nos ajudam a caracterizar empiricamente o que chamamos de reflexividade no marco teórico, tanto em seu aspecto subjetivo e micro (refiro-me aqui à reflexividade profissional de Schon), quanto ao seu aspecto macrossocial (refiro-me neste caso a reflexividade social de Giddens e colaboradores), as quais se retro-alimentam. A interpretação dos enunciados, a partir dos referenciais formulados no marco teórico, permite-nos discutir aspectos da relação micro e macro da reflexividade, isto é, que eventos individuais provocam reações sociais e, por sua vez, eventos sociais deflagram reflexões individuais, fazendo com que o saber profissional pessoal estimule e seja estimulado pelo conhecimento profissional abstrato, numa espiral crescente da reflexividade em suas dimensões micro e macrossociais. Vejamos a seguir, outros elementos preponderantes deste processo de mobilização cognitiva e discursiva vivenciado pelos educadores na EC.