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A partir das distintas entre-posições pelas quais esse sujeito, profissional de educação, transita ao trabalhar com educação nos espaços escolares e corporativos e através das quais se desloca interiormente entre ideologias divergentes, habitus e reflexividade, deslizando entre as formações discursivas e saberes profissionais, sob os quais se constitui, identifica e modifica continuamente, é que nos propomos desenhar uma proposição geral de uma dinâmica sócio-cognitiva, constituída a partir da compreensão do referencial que construímos sobre as relações estabelecidas entre os conceitos discutidos, nos quais operam. Complementamos essa tarefa, exemplificando graficamente nossa leitura do fenômeno através de uma representação visual disposta na figura 4 e a sua posterior realização na figura 10.

Assim, entendemos que as novas configurações sociais, em que a EC se localiza, podem ser compreendidas a partir dos referenciais discutidos. Estas crescem com a superação da modernidade simples e advento da modernização reflexiva (GIDDENS, BECK e LASH, 1995), cuja visão é convergente à perspectiva que explica a configuração social atual como produto da internacionalização das economias e emergência de um “capitalismo informacional” (CASTELLS, 2001), produzindo um quadro social que colocou em “xeque” a autoridade e legitimidade

das instituições tradicionais da modernidade (DUBET, 2002), gerando crises nas identidades sociais, e entre elas a profissional (DUBAR, 2005; 2006), a partir do surgimento de novos referenciais coletivos múltiplos: os sujeitos se ancoram e se definem a partir de múltiplas referências e dimensões distintas, diferente do que ocorria na modernidade simples (LAHIRE, 2003), processo que fomentou a busca acelerada por tecnologia e inovação das atividades produtivas.

Este cenário social nos ajuda a compreender o surgimento e expansão das unidades de educação corporativa (EC) nas organizações ocidentais, em especial no Brasil, as quais foram influenciadas pelo modelo de administração norte- americano. A estruturação de setores e contratação de profissionais com formação em educação para a EC pode ser entendida como um movimento das corporações para responder às demandas sociais que tal configuração sócio-econômica trouxe, subsidiando a criação de iniciativas de gestão do conhecimento, destinadas a adaptá-las a esse cenário de incertezas, através da gestão e formalização dos processos de aprendizagem que acontecem no seu interior, cuja finalidade é fomentar a reflexividade entre os trabalhadores.

Percebemos uma relação de dualidade entre a reflexividade, que acontece numa escala macrossocial e atinge as organizações (GIDDENS, BECK e LASH, 1995), e a reflexividade microssocial, experimentada pelos profissionais dessas organizações (SCHON, 2000), os quais aprofundam e levam a novos patamares a reflexividade organizacional, através de um processo de auto-alimentação crescente, num movimento que entendemos ser semelhante ao que Nonaka e Takeuchi (2008) propuseram para a conversão do Conhecimento nas organizações japonesas.

Nesta dimensão microssocial, individual, está o nosso recorte e foco de análise da mudança vivenciada pelos profissionais de educação, que estão ocupando os novos postos de trabalho abertos na EC: por terem um mandato profissional constituído através da formação nos processos de ensino e de aprendizagem, despertam nas corporações contratantes a expectativa de que tenham essa habilidade reflexiva bem desenvolvida e a capacidade de promovê-la nos outros. Acreditamos que a experiência vivenciada pelos educadores durante a execução de sua atividade no trabalho da EC amplia a reflexividade deles, especialmente, quando aumenta a distância entre aquilo que eles costumam desempenhar nas escolas e o

que é necessário nos espaços corporativos, acionando uma consciência vigilante sobre suas ações, que faz uso dos saberes práticos e coloca em suspensão o habitus profissional vigente, num fluxo que vai do implícito e inconsciente para o explícito e consciente, até ser efetuada a solução e “equilibração” da situação que provocou esse movimento: esse processo de conquista, possibilitado pelo domínio simbólico e racional sobre a ação, é materializado na produção discursiva desse profissional quando fala sobre seu trabalho.

O fluxo inverso deste processo também ocorre frequentemente, por isso chamamos de (in)fluxo. O saber explícito e consciente, que correspondeu com êxito aos improvisos demandados no trabalho, tende a ser incorporado ao fazer/agir automatizado, gerando padrões de ações práticos e simbólicos. Essa internalização pode ser realizada através de aprendizagens formais, informais ou observações e acompanhamento dos pares e colegas mais experientes em atuação, ou ainda, através dos constrangimentos institucionais, que inibem determinados comportamentos e estimulam outros.

O resultado deste processo de assujeitamento e subjetivação é a incorporação de habitus, ideologias, saberes profissionais e formações discursivas, cuja razão do sujeito submetido a este processo não questiona mais a legitimidade do que está sendo assimilado e feito durante o desempenho da tarefa, adicionando-o ao acervo implícito do seu modo de ser, dizer e fazer profissionais. Os resquícios e indícios do que foi incorporado podem ser encontrados nas formações discursivas, que “materializam” essas ideologias adotadas pelos sujeitos, que interpretam, percebem, avaliam e constroem o mundo a partir de determinadas posições.

O movimento contínuo entre essas duas dimensões, que vai do inconsciente, tácito, implícito e opaco para o consciente, explícito e inteligível, e o seu percurso reverso, está repleto de dualidades, ambivalências e contradições, as quais evidenciam as mudanças cognitivas e constituição de saberes e identidades profissionais vivenciadas por esses sujeitos, que podem ser verificadas nos discursos elaborados por eles nas comunidades discursivas estruturadas no ambiente de trabalho. A adesão, incorporação ou abandono de determinadas formações discursivas oferecem pistas sobre a mudança cognitiva vivida e a identidade profissional que está sendo elaborada por esses sujeitos na entre- posição escola – corporação, e quais domínios estão sendo escolhidos para

sustentar o saber profissional empregado; a interpretação desses elementos nos fornece os subsídios necessários para compreender o que é ser um educador numa corporação, em que se diferencia de ser um educador numa escola e quais saberes são empregados nessa “metamorfose” profissional: análise que permite realizar uma Anco deste sujeito.

Pensamos numa imagem para representar essa dinâmica cognitiva descrita. Procuramos elaborar uma figura que conseguisse simbolizar o movimento e a dinamicidade propostos neste marco teórico. A Figura 4 busca caracterizar esse movimento, em que os deslizamentos e oscilações dos profissionais da educação pela entre-posição escola-corporação se inscrevem:

Figura 4: (In)Fluxo Sócio-cognitivo.

(fonte: estudo da tese)

Esquematicamente, podemos representar o processo que convencionamos chamar de (In)Fluxo sócio-cognitivo, a partir de dois círculos, com seus elementos numa unidade integrada, as quais compreendem a dimensão consciente e social (sócio-interativa) e inconsciente (inconsciente cognitivo e psicanalítico) dos sujeitos. Estes elementos estão em constante interação e são o “palco” onde se travam as representações, assimilações, resistências e assujeitamentos dos educadores às interpelações sociais com as quais se deparam ao atuar e produzir seus discursos na EC; esse processo é interpelado, atravessado e sofre a confluência dos elementos macrossociais, tais como os constrangimentos das comunidades

discursivas, interdiscursos e reflexividade social contemporânea (da modernização reflexiva), ao mesmo tempo em que é mediado e atravessado por elementos individuais, tais como a reflexividade (cognitiva profissional), as formações discursivas, os saberes profissionais, a ideologia e o habitus; em suma, é um processo que está submetido ao (in)fluxo de elementos macrossociais e individuais, os quais influenciam-se mutuamente e permanentemente no cotidiano profissional.

A figura 4 representa a estrutura analítica deste processo / fluxo de um movimento permanente de idas e vindas entre uma consciência abrangente, que contém elementos explicitáveis (nível de consciência individual) e passíveis de extração (nível de consciência social), dos quais uma parcela mais restrita pode ser inteligível (passível de abstração, teorização, generalização, explicação etc.), ao lado de uma dimensão inconsciente (Freud – Lacaniana, estruturada como linguagem), que abriga uma profunda dimensão tácita capaz de tornar implícita apenas uma parcela mais restrita de seu conteúdo, cuja significativa parcela de seu conteúdo permanece ainda opaca ao sujeito. A “mola propulsora” por onde esses elementos atravessam e são “contrabandeados” no trabalho é a reflexividade (em um sentido) que, via uma “rediscrição” dos fatos, permite ao sujeito acessar conteúdos implícitos, trazendo-os para a dimensão consciente de domínio simbólico e vivencial; por sua vez, o seu sentido “oposto”, encontra no habitus profissional e na ideologia essa “mola”, através da qual mobilizam conteúdos da dimensão consciente através da internalização e subjetivação de disposições que funcionarão como padrões automatizados de conduta para as ações similares futuras e/ou para a orientação das perspectivas de interpretações e produções discursivas.

Talvez reflexividade, habitus e ideologia não sejam assim tão contraditórios, pois quase sempre atuam juntos, apesar de possuírem origens distintas. Acreditamos que essa “mola”, a linha “tênue” que os separa seja, no primeiro caso, a consciência vigilante que atua como um elemento protagonista (focal na perspectiva de Polaniy) de uma ação coadjuvante ou mesmo figurante (subsidiária nos termos de Polaniy); ao passo em que, no segundo caso, no habitus profissional, essa lógica é invertida: existe aí, uma ação protagonista (focal), automatizada, ao lado de uma “consciência” coadjuvante ou figurativa (subsidiária).

Não acreditamos que haja uma atividade cem por cento consciente ou cem por cento inconsciente, totalmente simbólica ou totalmente prática. Não há um cálculo

somativo entre elas, mas multiplicativo, cujo resultado final é sempre cem por cento; estamos e existimos cem por cento, oscilando nesta “entre-posição”, que já referenciamos. Em suma, esse movimento “implícito – explícito” ou “explícito- implícito”, seja em situações de curta, média ou longa duração, é muito comum e o nosso dia a dia está repleto delas, em particular, o ambiente de trabalho, no qual passamos normalmente a maior parte do nosso dia ou dedicamos parcela significativa de nossas vidas.

Estes elementos contidos no (in)fluxo sócio-cognitivo forneceram a base, que adotamos para elaborar uma matriz de análise contendo os conceitos / categorias / dispositivos que foram observados e destacados no trabalho de campo; com eles organizamos um quadro (Quadro 4), proposto no capítulo quatro, dedicado ao marco metodológico, cuja demonstração foi feita nos capítulos cinco e seis, dedicados a análise do corpus constituído através do trabalho de campo.

O marco teórico desta tese será complementado com o desenvolvimento do capítulo seguinte (capítulo 3) para apresentar o conceito de EC elaborado a partir da revisão de literatura realizada, a qual subsidiou a localização deste estudo na produção acadêmica encontrada sobre o tema. A EC é abordada, neste segundo capítulo teórico, como o entre-lugar, o locus e o espaço discursivo onde o (in)fluxo sócio-cognitivo proposto aqui se concretiza e ocorre. Este lugar fornece os parâmetros e o contexto social em que este fenômeno analisado se inscreve, no qual podemos encontrar os rastros e indícios desse movimento sócio-cognitivo vivido pelos educadores.

3 EDUCAÇÃO CORPORATIVA: CONTEXTO, ESPAÇO DISCURSIVO

E ENTRE-LUGAR DO (IN)FLUXO SÓCIO-COGNITIVO.

“A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original.” (Albert Einstein)