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1.2 SEGUNDA ONDA: ZEITGEIST DA RAZÃO

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CAPÍTULO I – MÁQUINAS E MENTES

1.2 SEGUNDA ONDA: ZEITGEIST DA RAZÃO

A segunda onda iniciou sua formação a partir da contestação do zeitgeist Metafísico pelo filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650), ao introduzir o conceito da alma racional como instrumento da razão. É certo que antes dele, Avicena (819-1005), já no final do século X, anunciara uma teoria de alma racional.

Na obra Filósofos da Idade Média (1999) organizada por Theo Kobusch, Dimitre Gutas nos informa que Avicena, nascido na Pérsia como Abu-'Ali al-Husayn Ibn-'Abdallah Ibn-Sina, foi um importante e influente filósofo da língua árabe numa época de supremacia da cultura medieval islâmica. Como era costume à época, Avicena iniciou seus estudos muito cedo, com aproximadamente 16 anos, e dedicou-se a áreas de conhecimento tão distintas quanto o Corão, literatura árabe, aritmética, ciências jurídicas, medicina e filosofia. Nos informa Gutas que o plano de estudos filosóficos que Avicena cumpria, segundo seu próprio depoimento, correspondia “à classificação das ciências filosóficas próprias à Antigüidade Alexandrina tardia, de tradição aristotélica. Em primeiro lugar está a lógica, como ferramenta (órganon) do estudo filosófico. Segue a isso a filosofia teórica, à qual pertenciam a física (os tratados físicos e zoológicos de Aristóteles), a matemática (o quadrivium) e a metafísica.” (GUTAS in KOBUSCH, 1999, p.49).

Entretanto, a proposta de Avicena foi uma verdadeira metafísica da alma racional visto que sua teoria integra objetos de cunho tradicionalmente religioso tais como a profecia, a revelação, milagres, a teurgia e a divina providência.

Para Avicena, a alma racional é uma substância que subsiste por si mesma e não habita nem o corpo humano nem nada que seja corpóreo. Ela é plenamente separável e desagregada da matéria. Em conjunto com o corpo humano e não antes dele, a alma racional alcança a existência; ela se relaciona com ele de certa maneira e durante toda a vida de uma pessoa. (idem, p.49).

Como seria de se esperar, Avicena, utilizando-se de terminologia e conceitos aristotélicos, assim explica a alma como um ente racional:

ela o é “à medida que dela depende a execução de ações com base na decisão racional e na escolha direcionada, e na medida em que ela conhece universais”. A alma racional tem exatamente duas funções. Uma função teórica, a de reconhecer os universais, e uma função prática, a de tomar decisões racionais e fazer reflexões que conduzam a ações, em um momento seguinte. Nessa função dual da alma racional reside para o ser humano o ponto de contato entre o mundo transcendente e o mundo natural. Nela está representada, assim, a totalidade do universo. A parte teórica conhece o mundo supralunar da realidade metafísica [...], e a parte prática se volta ao mundo sublunar do surgimento e da transitoriedade natural. [...] a alma racional não está em um corpo, mas sim em uma posição a partir da qual ela dirige e orienta o corpo, por meio da apreensão de universais e da decisão racional que toma. (idem, p.49-50).

O rompimento de Descartes com a Escolástica implantada em toda a Europa pela Igreja Romana, mais de 500 anos depois de Avicena, foi profundamente influenciado pelas descobertas científicas de Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Kepler cujos trabalhos se constituíram na base científica da física mecânica de Isaac Newton e da doutrina mecanicista cuja metáfora foi o relógio. Foi o início da formação de uma cultura científica racional, que se utilizava de métodos dedutivos, matemática, física, geometria e da razão na busca da verdade.

Os principais nomes e descobertas desta onda foram Nicolau Copérnico (1473 – 1543) astrônomo e matemático que desenvolveu a Teoria Heliocêntrica do Sistema Solar, publicada em seu livro De revolutionibus orbium coelestium em 1543. Essa teoria contestava o geocentrismo defendido por Aristóteles, Ptolomeu e pela Escolástica. Galileu Galilei (1564-1642), físico, matemático, astrônomo e filósofo, teve papel preponderante na revolução científica. Suas invenções – balança hidrostática, compasso geométrico, termômetro de Galileu, precursor do relógio do pêndulo – e do uso do Método Científico Empírico15 permitiram apoiar o heliocentrismo de Kepler. Em 1590 publicou De motu onde expôs a Lei dos corpos e o Princípio da inércia. Em 1610, após aprimoramento do telescópio e a descoberta da Via Lacta e do planeta Júpiter, publicou Sidereus Nuncio. Johannes Kepler

15 Conjunto de regras básicas para desenvolver uma experiência que consiste em juntar evidências observáveis, empíricas e mensuráveis, com o uso da razão.

(1571 – 1630), astrônomo e matemático, publicou Mysterium Cosmographicum em 1595, e defendeu as hipóteses heliocêntricas. Em 1609 publicou Astronomia Nova... De Motibus Stellae Martis, obra na qual apresentou as três leis de movimento dos planetas, conhecidas como Leis de Kepler. Em 1687 Isaac Newton (1643-1727) publicou Philosophiae Naturalis Principia Mathematica e nessa obra descreve a Lei da Gravitação Universal e as Leis de Newton – que englobam as três leis dos corpos em movimento – teorias que se assentaram como fundamento da mecânica clássica.

Descartes contribuiu com pelo menos três doutrinas importantes. A doutrina do dualismo corpo-mente proposto para resolver o problema da distinção entre as qualidades física e mental do ser humano; a doutrina das idéias, segundo a qual existiam idéias inatas – produzidas a partir da mente ou do consciente existente na alma – e idéias derivadas, produto das experiências dos sentidos. No campo da epistemologia, o método racional de pesquisa.

Descartes valeu-se unicamente de uma máquina biologia, seu próprio cérebro, para pensar e propor toda sua obra filosófica acerca da natureza e essência funcional da mente humana. Advogava que seu método baseado na razão era o caminho para se encontrar a verdade, porque a razão era inata e perfeita, por tratar-se de uma criação de Deus. É essa doutrina racionalista dedutiva de Descartes que caracteriza a segunda onda de zeitgeist, que transformou irreversivelmente a cultura medieval e alicerçou o pensamento Moderno.

Segundo Richard Tarnas, autor de A Epopeia do Pensamento Ocidental (1991), a emergência do pensamento moderno “assumiu as três formas distintas e dialeticamente relacionadas do Renascimento, da Reforma e da Revolução Científica [...] e quando já não havia mais nenhuma estrutura monolítica de crença dominando a civilização, a Ciência apareceu de repente como a liberação da Humanidade – uma redenção empírica, racional, que apelava para o bom senso e para uma realidade concreta que todos podiam tocar e medir por si mesmos.”. (TARNAS, 1991, p.305)

Nessa nova perspectiva de visão de mundo surge “a emergência de um ser humano autônomo e dotado de uma consciência de si mesmo – curioso em relação ao mundo, confiante em sua capacidade de discernimento, cético quanto às ortodoxias, rebelde contra a autoridade, responsável por suas crenças e ações, apaixonado pelo passado clássico e ainda mais empenhado num futuro maior, orgulhoso de sua humanidade, consciente de sua distinção, ciente de sua força artística e individualidade criativa, seguro de sua capacidade intelectual para compreender e controlar a Natureza e bem menos dependente de um Deus

onipotente.”(TARNAS, 1991, p.305)

Nos dois séculos seguintes grupos de filósofos, artistas e eruditos passaram a contestar tanto a visão modernista da cultura científica quanto a cultura religiosa originárias das duas ondas anteriores.

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