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Segunda paragem: uma heroína baixinha, verdadeira e transparente

Nascida no sertão nordestino, Val é uma mulher idosa e filha de um casal de agricultores. Seu pai casou-se duas vezes, sendo o segundo casamento o que gerou Val e seus irmãos. Este casamento precisou acontecer de forma escondida dos familiares da noiva, mãe de Val, pois com uma família tradicional, tinha arraigados profundamente em si costumes e hábitos passados pelos pais, e reforçados pela sociedade onde viveu grande parte de sua vida, a qual dizia que não era correto casar-se com um homem divorciado. A relação de seus pais perdurou por 58 anos, e os filhos gerados desta união, atualmente, estão espalhados pelo país, morando em cidades distintas.

Ao lembrar sua infância, tem boas memórias de um período vivido com boa condição financeira e com uma forte pertença à alta elite social. Desinibida, expansiva e sem medo de se comunicar, estabelecia contatos e relações com todos ao seu redor, sem se importar com diferenças de classes e status sociais. Considera que “puxou” isso do pai,

alguém com grande desenvoltura na vida social e comercial, e de quem sentiu muito orgulho durante toda a sua vida.

Traz em si muitos dos traços familiares, que se constituíram com base em costumes e dinâmicas patriarcais, machistas e autoritárias; nos quais tudo deveria ser da forma que o pai da família ordenava, sem grandes espaços para questionamentos. Outra característica de sua dinâmica familiar se dava através da atitude também paterna, pessoa que, sob o olhar de Val, poderia ser caracterizada como alguém com comportamento “mulherengo”. Em muitos momentos de sua vida, Val traz memórias de seu pai ter relações extraconjugais, que afetavam o casamento dele com sua mãe, mas que também não encontrava espaço para questionamentos, tendo a aceitação da família. Tal aceitação assim acontecia, pois, por um lado, entendia-se que esse era um comportamento natural dos homens, compartilhado por uma cultura machista, e por outro, a própria família entendia que esse era o “jeito” dele, e não cabia aí grandes conflitos.

Como era a filha mais velha, Val acabou por receber mais demandas, o que nunca achou ruim ou algo do qual precisou se lamentar. Pelo contrário, sempre se considerou a filha mais forte, além de uma pessoa positiva, transparente e intensa. Mesmo diante de um sistema e dinâmicas autoritárias e patriarcais, tentava se desenvolver e encontrar brechas em sua realidade que a permitissem viver o que desejava, mesmo que precisasse burlar as regras do pai.

Sobre burlar as regras do pai, somos levados a falar de seu casamento. Val conheceu Carlos, o homem com quem um dia iria se casar, em uma das cidades onde morou com a família. Carlos era um homem proveniente de uma família pobre de 16 irmãos e uma mãe viúva. Em um dado momento de sua vida, mudou-se para uma grande capital do país, para lá tentar a vida e promover um maior sustento à família.

A família dele, por sua vez, alugou uma casa que pertencia ao pai de Val, o que possibilitou o estreitamente da relação dela principalmente com a mãe de seu futuro marido. Em conversa com a mesma, Val percebeu que ela muito sofria por não ter notícias do filho, que havia se mudado já havia considerável tempo. Desejando ajudá-la, Val ofereceu escrever uma carta para ele, pedindo notícias e também o envio de recursos financeiros para a família. Com aproximadamente três meses, o filho retornou à casa da família, o que fez com que Val e Carlos pudessem, finalmente, conhecer-se pessoalmente. Sentindo-se atraídos um pelo outro, começaram a namorar, e Val, que não havia tido nenhuma experiência sexual até aquele momento, inicia e compartilha com Carlos tal atividade em sua vida.

Os encontros com ele, contudo, não ocorriam tranquilamente. Val tinha que encontrá-lo escondida do pai, pois o mesmo dizia que aquele rapaz “não era para a filha”. O pai justificava tais palavras pelo fato de a filha ser “letrada”, inteligente, ter Ensino Superior, e o rapaz com quem estava não ter estudos. Mas Val sabia que, para além disso, tal fala se embasava em preconceitos raciais existentes no pai, que não gostava de pessoas de pele negra e em muitos momentos deixava isso bem claro.

Mesmo diante disso, Val continuou a se encontrar com Carlos, e deram continuidade ao namoro. Sentia-se apaixonada, e buscava viver esse amor. Com alguns meses no relacionamento, Val começou a ter alguns sintomas como enjoo, fraqueza e muito sono. Negou a possibilidade, até ser incontestável o fato de que estava grávida. Em um primeiro momento, assustou-se e se sentiu confusa quanto ao que fazer, temendo a reação do pai. Este, ao tomar conhecimento do ocorrido, realmente tentou impedi-la de dar continuidade à concepção do filho, assim como também de impedir a filha em continuar a se relacionar com Carlos.

Val não aceitou o impedimento imposto pelo pai. Sentia-se apaixonada, além de se sentir, também, responsável pelo filho que haviam gerado. Assumiram a relação, responsabilizaram-se pela criança, mas com a expressão clara de seu pai, que se mostrava em total desagrado quanto à decisão tomada pelos dois.

Seu então marido, agora com a responsabilidade do sustento de uma família e sem formação de Ensino Superior, começou a tentar obter renda de algumas formas, e, inicialmente, conseguiu se desenvolver bem como proprietário de uma borracharia. Nesse momento, a vida do casal caminhava bem, sem faltar-lhes nada, fazendo com que Val acreditasse que tinha tomado a decisão certa, e que ele era o homem certo para ela. À época, trabalhava como professora, na mesma escola na qual havia se formado. Fazia faculdade, e conseguiu finalizar o curso no mesmo ano em que estava também dando à luz ao seu terceiro e último filho, em 1978.

Com o passar do tempo, Carlos percebeu que não era uma pessoa realizada desenvolvendo o trabalho que naquele momento desenvolvia, e decidiu vender a borracharia. Existia algo nele ferido pelos insultos que o pai de Val outrora havia feito, o que o fazia buscar outras formas de se desenvolver em que pudesse se afirmar como alguém de sucesso, superando os preconceitos antes expostos. Sua ambição, portanto, cresceu, e Carlos buscava incessantemente se destacar, o que Val olhava e percebia, nitidamente, que era ele tentando “mostrar ao meu pai que era alguém na vida”, em suas palavras. Carlos comprou um terreno,

equipamentos e um maquinário pesado para renovar pneus. Contratou funcionários, e abriu um novo negócio. Val seria sua nova sócia, e juntos assumiriam essa nova empreitada.

Seu novo comércio cresceu, ganhou destaque – o que tanto desejava –, e alcançou os olhares de muitos da cidade. Esse foi, porém, o momento que mais marcou negativamente suas vidas: Val pontua que foi aí que tudo começou a “desandar”, tudo piorou quando seu marido “enricou”. Junto com o grande êxito da empresa do marido, vieram também as relações extraconjugais, relações das quais vinha a ter conhecimento por intermédio de sua mãe, a qual sabia de tais “notícias” por meio de seu pai.

Uma guerra foi instalada em sua vida: por um lado, precisava manter o casamento, principalmente por causa da pressão do pai, que havia sido veementemente contra sua união com Carlos; por outro, sofria muito com a infidelidade do marido, que se afastava e trazia tensões para o casamento, cada vez maiores. O pai, vendo a situação, não conseguia ajudar Val, e pelo contrário, deixava-a ainda mais angustiada quando, repetidamente, falava que tinha avisado a ela que seu casamento não daria certo, mas que, como ela havia insistido, que suportasse e lidasse com o que estava acontecendo. Com nenhum acolhimento ao seu sofrimento, Val se via obrigada a manter o casamento, vendo em sua frente uma única possibilidade: a de padecer numa relação que a fazia infeliz.

Com o passar do tempo, seu relacionamento piorava, e o que a restava se resumia a situações de traições, rejeições, tratamentos grosseiros, ausências, intolerâncias. E isso não acontecia somente com ela, pois o marido rejeitava, também, os filhos, à mesma forma. Quanto aos negócios, mesmo sendo Val sócia do comércio de Carlos, ele não permitia que nem ela, nem os filhos tivessem o conhecimento do que se passava na empresa, tomando para si completamente a direção e o controle financeiro do comércio.

Val sentia falta de um marido, de um pai para seus filhos, e não cansava de realizar tentativas visando fazer com que algo acontecesse para que tudo pudesse se organizar melhor para todos. Conversava com o marido, e questionava, da forma mais honesta que era possível, o que ele desejava para si, para a própria vida, e para a vida da família, para que, assim, pudessem tomar as decisões devidas. Porém, sentia-se, continuamente, de mãos atadas devido às atitudes do marido que, por sua vez, ela passou a ver como um homem fraco e dissimulado, pois em todos os momentos que o pressionava de forma mais direta, falando de suas insatisfações e da possibilidade de separação caso continuassem na mesma situação, ele chorava e fazia juras de que seria um melhor marido e pai de família. Tentavam estabelecer um novo acordo, novas formas de lidar com as dificuldades presentes, mas de forma cíclica, com pouco tempo todas as violências e infidelidades voltavam a acontecer.

Tentava não se deixar invadir pelo desânimo, pelo cansaço. Afirmava-se como alguém feliz, satisfeita consigo mesma e com a própria vida, e sempre dando seguimento aos seus projetos, seus desejos e aos cuidados consigo e com os filhos. Percebia que suas ações não tinham reconhecimento, nem advindo dos pais, nem do marido. Vivia de uma forma em que ou recebia os tratamentos grosseiros e intolerantes do marido, ou recebia cobranças do pai. Lutava, de forma intensa e determinada a não sucumbir, mas por vezes não conseguia aguentar tamanho sofrimento, e caía em prantos sem ter quem a apoiasse.

Como se não bastassem as várias formas de violência que sofria do marido, em um determinado momento ele se tornou ainda mais intolerante e grosseiro, proibindo-a de escutar as músicas das quais gostava, de receber os próprios amigos e os amigos dos filhos em sua casa, dentre outras várias coisas que ele alegava que não mais permitiria que acontecessem. “Por qual razão, Carlos?”, perguntava Val, em tamanho sofrimento. A resposta do marido vinha de forma autoritária, destruindo qualquer possibilidade de bem-estar da família. Em poucas palavras: “Porque não!”, era o que ele respondia.

Além da violência direcionada a Val, os filhos do casal se tornavam, cada vez mais, alvos desta mesma violência, tendo Carlos atitudes de humilhação e rejeição com os mesmos, continuamente. Junto a isto, Val começou a perceber o uso abusivo que Carlos fazia de álcool e outras drogas. Não suportou mais a situação, e pediu a separação, que realmente ocorreu, mas não sem muitos sofrimentos. Como forma de se vingar pela atitude da esposa, Carlos, revoltado, cortou todos os proventos da casa (água, energia, telefonia) onde Val e os filhos continuaram a morar, tomou o carro que a ela pertencia e proibiu os funcionários de todos os postos de combustíveis da cidade de abastecer quaisquer carros que ela solicitasse.

Diante de tantas dificuldades, de tantas violências, de preocupações com os filhos e também com a empresa, que começava a mostrar indícios de descontrole e queda financeira, Val sente-se adoecida com tanto sofrimento, e entra em depressão, vendo-se impossibilitada de continuar dando seguimento a tantas questões. Seus filhos também entram em quadros de adoecimento, em diferentes períodos da vida, tendo sintomas de depressão e se envolvendo em situações limítrofes.

Val continuou morando na casa onde viviam, junto com os filhos, e Carlos, embora não mais estivesse morando com eles, tinha livre acesso a casa. Em um determinado dia, no meio de uma discussão com um de seus filhos, Carlos puxou e apontou para o mesmo um revólver calibre 38. Este foi o estopim para Val, que de assustada ao extremo, passou a se sentir completamente revoltada, e decidiu que não iria mais se submeter e nem submeter os filhos às violências do marido, nenhuma vez mais. Procurou um advogado para tratar do

divórcio, vendeu a casa onde moravam, e tratou de questões legais para continuar como sócia da empresa de renovação de pneus, mesmo que apenas burocraticamente, pois não conseguia ter nenhuma intervenção fatídica no funcionamento da mesma.

Neste ínterim, o pai de Val, vinha apresentando problemas de saúde, especificamente no coração, e já havia marcado a realização de um procedimento cirúrgico em um hospital situado na capital do Estado onde viviam. Na noite anterior à cirurgia, seu pai teve uma complicação do seu quadro de saúde, e não resistiu, falecendo aos 79 anos de idade. Val sofreu bastante com a morte do pai, principalmente por sentir muito pela impossibilidade de nunca o ter informado sobre sua separação, “por causa de seu temperamento”, dizia. Temia o que podia acontecer caso ele soubesse de tudo o que se passava, e preferia manter-se em silêncio sobre sua situação.

Val passou a morar na sua dos pais, junto à mãe, seu filho com a esposa e uma prima. Até hoje, sente-se profundamente grata à mãe, pois nesse momento de sua vida, o marido a havia despossuído de tudo o que a pertencia, e não tinha nem mesmo onde morar. Sua mãe, com pouca instrução formal, sentia muitas dificuldades em gerenciar os imóveis deixados pelo pai, o que foi assumido por Val, com muito gosto. Mesmo nesta nova configuração de vida, tentava se manter sempre muito próxima e dando suporte aos filhos, em várias dimensões, tanto financeira como pessoal e profissional.

Algo, contudo, mantinha-se em sua vida: o desânimo, o humor entristecido, a falta em atividades que antes a motivavam. Sentia-se deprimida, retraída, alimentando-se mal e sempre sem muitas forças para realizar suas atividades cotidianas. A família, preocupada com esse quadro, sugeriu que ela passasse uns dias com a irmã, que morava na capital do estado e poderia oferecer melhor suporte para que ela melhorasse. “Os ares da capital talvez façam

você melhorar”, dizia a família a Val. Aceitou a sugestão, e mudou-se para a casa da irmã.

Com a chegada à nova cidade, alguns olhares dos familiares se direcionam às suas dores e sugerem outras intervenções, trazendo à tona a possibilidade de que Val fosse consultada por um médico especialista nos sintomas que vinham apresentando. Uma psiquiatra foi convocada à casa de sua irmã, para avaliar sua situação e orientá-la.

Diante da psiquiatra, Val não conseguiu se sentir bem. Falou pouco, algo que não era característico a ela, e perguntava-se, com frequência durante a consulta, se a psiquiatra realmente a estava escutando, ou mesmo se estava preparada para escutar o que ela tinha a dizer. Sentia que a profissional estava apressada, não mostrando muita disponibilidade de tempo para escutar sua história, e não conseguia se abrir em livre expressão. Falou, portanto,

pouco e resumidamente sobre seu sofrimento, e sobre isto foi gerado um diagnóstico de depressão, dando-se as orientações e medicações devidas.

Embora não visse muito sentido nisso, Val ainda concordou em seguir as recomendações médicas e se manteve mais tempo na casa da irmã para fazer o tratamento. Em sua compreensão, era claro que não tinha depressão. Para ela, o que realmente acontecia é que estava vivenciando um momento em que sua autoestima estava mais baixa, devido aos inúmeros sofrimentos pelos quais havia passado nos últimos anos. A família, porém, não conseguia acessar sua compreensão, o que a fazia sofrer mais, pois sentia que ninguém naquele momento estava sendo capaz de realmente entender seu drama.

Com o passar do tempo, percebeu que não se sentia nada bem, e que começava a ter a sensação de estar presa à casa da irmã. Além disso, com o uso frequente da medicação, sentia-se mais lenta, desanimada, o que passou a considerar que estava piorando seu sentimento em relação a si mesma. Lembrava de um caso de um conhecido, do qual se sabia que tomava medicações psiquiátricas há mais de 40 anos, e a fazia temer acabar por desenvolver seu mesmo quadro: o de uma pessoa com memória fraca, indisposta, deprimida, apática. Sentia saudade de casa, de seus filhos, do movimento que tinha na cidade onde morava. Por isso tudo, recusa-se em manter tal situação, suspendendo as medicações e pedindo para ir embora e retornar para o interior do estado.

Voltou, então, e foi morar com um dos filhos. Nesse momento, Val percebe que ficou ainda mais clara para si mesma qual era a cura para seu adoecimento: o trabalho no campo, o contato com a natureza e com os animais, as atividades diárias de cuidados com a casa e o restabelecimento da relação com as pessoas significativas em sua vida.

Fortalecida, decide sair da casa do filho, pois percebe também que este estava tendo problemas com a esposa e sente-se responsável por isso. Além disso, percebia que se sentir livre, desprendida era algo muito importante para si mesma, e algo essencial para seu processo de cura. A data de sua saída muito a marcou: dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, “dia da minha liberdade”, em suas palavras.

Por muito tempo, Val continuou a lutar pelo divórcio, pois o ex-marido pagava os profissionais envolvidos para que atrasassem todo o processo. Nunca havia pagado pensão alimentícia, o que muito enfurecia Val, que continuava lutando com todas as suas forças para adquiri-la, seguindo todos os passos legais necessários, que o faz até hoje.

Ao falar de si, atualmente, Val sente-se uma pessoa vitoriosa, forte e determinada, alegre e cheia de vida. Não considera mais que tenha depressão, e nunca mais fez uso de nenhum medicamento. Tem um comércio com o filho, no interior do estado, e até hoje ajuda

nas finanças da família. “Lembrem de mim como uma heroína, uma vencedora, uma

baixinha, verdadeira e transparente, além de uma pessoa feliz e positiva” (Val).