• Nenhum resultado encontrado

3. O ESTADO E O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

3.4 Seguranças da proteção social do SUAS

3.4.3 Segurança de convivência Familiar, Comunitária e Social

A segurança de convívio familiar, comunitário e social também constitui um dos princípios da política de Assistência Social, conforme discutido no capítulo anterior. Para a garantia desta segurança, de acordo com a PNAS e NOB/SUAS, é necessária a oferta pública de uma rede de serviços continuados capazes de garantir oportunidades e ações profissionais para a construção, restauração e fortalecimento de vínculos e laços de pertencimento, mediante a oferta de experiências socioeducativas, lúdicas e culturais. Esta segurança também prevê a realização de ações e atividades que estimulem o desenvolvimento de vínculos sociais e a construção de projetos pessoais e sociais de vida em sociedade (BRASIL, 2005a).

Além da oferta de uma rede pública de serviços e do desenvolvimento de atividades que estimulem o fortalecimento de vínculos familiares e sociais, e, a elaboração de projetos coletivos, esta segurança indica a primazia da permanência do/a usuário/a no convívio familiar e comunitário em detrimento da institucionalização. Neste sentido, os direitos dos sujeitos precisam ser garantidos no território onde vivem, o qual deve contar com os recursos necessários para o enfrentamento das situações de vulnerabilidade e risco, na perspectiva preventiva. Esta segurança é materializada diretamente pela proteção básica e pela proteção especial. Neste sentido, além de apoiar as ações desenvolvidas pela PSB na promoção do convívio familiar e comunitário, a PSE precisa adotar estratégias para o fortalecimento destes vínculos relacionais e de pertencimento em todas as atividades por ela realizada, seja no âmbito da abordagem individual ou coletiva.

Em relação à forma como esta segurança vem sendo garantida pelos CREAS pesquisados, os/as assistentes sociais informam que têm trabalhado com os/as usuários/as de modo a estimulá- los/as a participar das atividades realizadas pela rede, para o fortalecimento dos vínculos comunitários e sociais. Isso é feito por meio de reflexões acerca da importância e do papel da família através da socialização de experiências, para fortalecimento dos vínculos familiares:

Nós reforçamos a importância da família participar nos serviços e atividades desenvolvidas pela rede, nas atividades da comunidade, nas reuniões e Assembleias das Associações Comunitárias e de Bairro, sempre informamos sobre as reuniões do Conselho de Assistência, e assim acreditamos que contribuímos para o fortalecimento dos vínculos sociais e comunitários. Sempre destacamos que a Assistência Social é uma política que pretende realizar o enfrentamento das demandas e necessidades coletivas. E o fortalecimento dos vínculos familiares, discutindo e refletindo com os usuários sobre o papel da família, sobre a questão do cuidado e ajuda mútua dos membros. Sempre convidamos todos os membros para as reuniões e grupos, estimulamos o diálogo,

discutimos sobre as diferentes configurações familiares, são estas as estratégias que temos utilizado. Tentamos vincular todos os membros nos atendimentos, seja individual ou coletivo, mas, em geral são apenas as mulheres e mães que vem (AS4, 2012). Sempre versando da importância da família, do papel da família, da importância da participação nos serviços, em atividades, em oficinas, em ações que são oferecidas tanto pelo CREAS como pelo CRAS, em todas as situações, isso é sempre deixado bem claro (AS2, 2012).

[...] o grupo, na verdade muitas vezes é a primeira forma de socialização que essas famílias tem, as vezes elas vem tão fragilizadas tão precarizadas, que elas vivem naquele mundinho naquele cotidiano delas que a partir do momento que elas passam a interagir com outras famílias outras situações, ou uma situação semelhante, elas consideravelmente melhoram a sua realidade! Tem impacto bem positivo, com certeza! (AS1, 2011).

A fala do/a profissional AS4 ratifica as discussões realizadas no item anterior, acerca da responsabilização das mulheres em relação ao cuidado com os demais membros, haja vista que apenas elas estão participando das atividades desenvolvidas e oferecidas pelo CREAS. Embora os/as profissionais estimulem a reflexão sobre o cuidado e ajuda mútua entre os integrantes da família, “são apenas as mulheres e mães” que se fazem presente nos atendimentos. Assim, a possibilidade de rompimento com a relação existente entre o cuidado familiar e a questão de gênero torna-se reduzida, sendo legitimados os papéis destinados aos homens e as mulheres, a partir da ideologia e expectativa burguesa de família.

Visualiza-se que a lógica da matricialidade sociofamiliar está presente formalmente no texto da PNAS, da NOB/SUAS, da tipificação dos serviços e demais documentos que regulamentam e orientam a materialização do SUAS, bem como se manifesta no discurso dos/as profissionais, entretanto, ainda encontra inúmeros obstáculos para que se efetive na prática.

Com o SUAS, assim como com as demais políticas públicas e, em especial as sociais, ocorrem como na tragédia criada por Shakespeare no início do século XVII, onde, o cavalheiro Rodrigo afirma para Iago, oficial desleal, infiel e enganador de Otelo: “sei que tuas palavras carecem de qualquer afinidade com tuas ações” (SHAKESPEARE, 2012, p. 134). Ou seja, observa-se uma distância expressiva entre o que está proposto formalmente e o que vem sendo concretizado em termos dos princípios, seguranças e garantias do SUAS.

Esta carência apontada entre a afinidade das ações com o discurso referente aos princípios, diretrizes, seguranças e garantias do SUAS não caracteriza-se como uma responsabilidade dos/as trabalhadores/as do SUAS, haja vista a existência de inúmeros desafios para a execução de políticas públicas garantidoras de direitos em tempos em que o ideário

neoliberal tem legitimidade, como discutido no capítulo terceiro deste estudo. Neste sentido, embora seja de fundamental importância que os/as trabalhadores/as reflitam, debatam, problematizem e questionem as dimensões propostas pelo SUAS, os/as mesmos/as não podem ser culpabilizados/as pela lacuna existente entre o Brasil legal e o Brasil real. É importante ter clareza dos limites inerentes à estrutura capitalista, e do poder – econômico e político – do qual dispõe a classe dominante e do qual se utiliza para ter seus interesses defendidos pelo Estado e difundidos para o conjunto da sociedade, conforme discutido desde o início nessa dissertação. Do mesmo modo, é possível visualizar novamente por meio da fala do/a profissional AS1, a existência e permanência de forte influência da ideologia burguesa nas avaliações realizadas pelos/as profissionais assistentes sociais, tendo em vista que a categoria não está isenta de reproduzir os valores e relações da sociedade capitalista. Há a desvalorização e desqualificação das usuárias, da realidade cotidiana, das experiências vivenciadas por elas e, além disso, as usuárias são vistas de modo isolado, como se possuíssem ou vivessem em um mundo à parte. É preciso reforçar que a classe trabalhadora constitui a sociedade capitalista, assim como a classe dominante. Ambas são constituintes e constituídas pela organização social deste sistema. São produtoras e produtos, se relacionando dialeticamente entre si e com o Estado.

Ainda, um/a dos/as assistentes sociais mencionou que tem atuado como harmonizador/a das relações familiares, na pacificação dos conflitos existentes, reproduzindo uma visão idealista da família:

A convivência familiar e comunitária a gente discute com certeza isso, aborda os conflitos, procura [...] fazer o papel do assistente social, conhecer a historia, falar da importância da família, que a gente briga, mas, tento explicar para eles tentar ter uma boa relação familiar porque é quem vai ajudar quando precisar (AS3, 2012).

Observando a fala do/a profissional AS3, é possível visualizar a reiteração do modelo ideal de família, o modelo de família criado e defendido pela burguesia, que difere, substancialmente, da família real, que vem se organizando conforme as condições reais e objetivas que dispõe para sua manutenção e reprodução. Visualiza-se que a convivência familiar é discutida na perspectiva da resolução de conflitos, sendo reforçado o papel eminentemente protetivo da família, já que esta será quem “vai ajudar quando precisar”.

Há uma valorização da família como lócus privilegiado de superação das seqüelas da questão social por um estado que pouco tem priorizado os gastos com o social e, pouco tem implementado em termos de política social e estratégias de superação das desigualdades sociais. Há um reforço as idéias próprias do senso comum nas quais a culpada é sempre a família. É, portanto, necessário investir na família. Nada mais simplista e funcionalista. Nada mais adequado a um Estado, no caso brasileiro, que ignorando a proposta de Seguridade Social conquistada na Constituição de 1988 tem por marca a refilantropização das políticas sociais e a privatização da assistência social (CARLOTO, 2002, s/p).

Além disso, observa-se o equívoco na identificação da harmonização e pacificação dos conflitos como uma das atribuições e competências do/a assistente social, reatualizando o tradicionalismo na atuação da categoria, tendo em vista que se refere a uma atuação/intervenção profissional pautada no ajustamento da família, na “[...] ajuda psicossocial fundada na valorização do diálogo e do relacionamento; com isso, reatualiza a forma mais tradicional de atuação profissional: a perspectiva psicologizante da origem da profissão” (BARROCO, 2008, p. 138).

Embora possa parecer desnecessário, as discussões e reflexões acerca da família carecem de maior aprofundamento, porque, ainda, estão presentes tendências tradicionais e moralizantes no trato com as famílias as quais vem sendo reproduzidas por profissionais das diversas áreas do conhecimento que atuam nas diferentes políticas públicas. Mesmo que as distintas configurações familiares sejam compreendidas, o entendimento do papel a ser desempenhado pelos diferentes membros ainda permanece reiterando o estereótipo burguês em que a mulher-mãe é responsável pelos cuidados com a casa e filhos e o homem-pai precisa desempenhar a função de provedor. Esta postura em relação à família é também repetida pelo Serviço Social, como se pode observar na fala do/a profissional AS3. Neste sentido, acredita-se que

[...] as metodologias de atendimento às famílias precisam ser revistas. Apesar dos avanços teóricos na compreensão desta temática, o padrão burguês de funcionamento familiar continua a pautar a forma de compreender a tarefa de atender as famílias. Há um forte caráter moralista e disciplinador que intervém nas formas de pensar as famílias que deve ser eliminado do trabalho do SUAS (COUTO, YAZBEK, RAICHELIS, 2010, p. 56).

Além disso, as habilidades e competências profissionais do/a assistente social também precisam ser conhecidas e debatidas de modo mais amplo e profundo pela categoria como um todo, a fim de que as práticas na perspectiva tradicional sejam superadas, para que este/a

profissional possa também contribuir com a superação do conservadorismo em relação à expectativa quanto aos papéis das famílias na política de Assistência Social, a fim de efetivar a matricialidade sociofamiliar, a segurança de convívio familiar, comunitário e social, e, especialmente, os direitos devidos às usuárias.