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Parte I: Enquadramento teórico e conceptual

3. Os livros infantis e a educação inter/multicultural

3.3. Selecção, análise e avaliação dos livros infantis

A leitura é uma prática comum (ou pelo menos deveria ser), realizada pelas famílias e pelos educadores, ainda antes da criança saber ler. Os livros, para além de estimularem a criatividade e imaginação da criança, permitem-lhe, como vimos, adquirir novas aprendizagens.

A leitura de livros cujo conteúdo se prende com histórias de outros povos, quer vivam próximo de nós ou do outro lado do planeta, pode ser o primeiro contacto da criança com a alteridade. Estes livros podem ser decisivos na construção que a criança faz da imagem das outras culturas ou grupos étnicos. As aprendizagens que as crianças realizarem nessas idades podem marcar para sempre as suas percepções acerca do outro. Na opinião de Ramsey,

Os livros infantis constituem um veículo inicial para este tipo de ensino. Ao apresentarmos estas histórias às crianças, capacitamos os nossos jovens leitores e ouvintes para criarem empatia com experiências e pontos diferentes e para experimentarem um vasto leque de dilemas sociais (…). Quando as crianças representam situações e personagens de um livro, aprendem como percepcionar situações a partir de perspectivas diferentes e, literalmente, a “colocarem-se na pele do outro”» (Ramsey (trad.), 1991, pp. 168-169).

A selecção de livros cuja temática seja os outros povos e culturas deve, naturalmente, obedecer aos mesmos critérios de selecção dos livros infantis em geral: tema, apropriação à idade, tipo de texto, tipo de ilustração e autor. O Council on

rápidos que permitem analisar e avaliar livros infantis no que diz respeito quer ao racismo quer ao sexismo dois quais salientamos os mais relevantes.

Em primeiro lugar, é importante analisar criteriosamente as ilustrações, e verificar se estas veiculam estereótipos? Importa também verificar se elas transmitem aquilo que se tem vindo a designar por «Tokenismo»?4 Em seguida, deve-se observar «quem está a fazer o quê», ou seja, verificar se os personagens pertencentes a minorias étnicas ou sexuais desempenham papéis passivos e subservientes ou papéis activos e de liderança.

Em seguida, é necessário analisar a estrutura narrativa e verificar quais são os critérios para um personagem ter sucesso (se a cultura dominante é apresentada como único ideal, se as personagens «minoritárias» devem exibir qualidades extraordinárias - ser generosos, ser bons desportistas, etc – ; como se dá a resolução de problemas? (se estas personagens são consideradas como um problema por serem «diferentes», se a narrativa encoraja a aceitação passiva da desigualdade e da opressão ou, pelo contrário, encoraja alguma forma de resistência activa); qual o papel das mulheres na narrativa? Poderia a mesma história ser contada caso os papéis de género fossem invertidos?

A mesma organização incita-nos a olhar para os estilos de vida descritos na história. Até que ponto as personagens «minoritárias» quer pela sua personalidade, maneira de estar, maneira de vestir, de falar, etc., contrastam com as classes médias e altas da cultura dominante? Até que ponto os «minoritários» são apresentados apenas com referência à pobreza, aos bairros ou aos guetos onde habitam?

Em quarto lugar, o Council on Interracial Books for Children, recomenda uma atenção especial para as relações entre personagens, nomeadamente, para quem detém o poder e a liderança, para quem detém os papéis passivos ou de suporte, e para a

4 Conceito que designa o «branqueamento» ou ocidentalização do Outro; à excepção dos caracteres

fenotípicos, a alteridade é representada como os «brancos» ocidentais, com as mesmas roupas, adereços, atitudes etc.

eventualidade de essas relações se basearem em estereótipos «étnicos», «raciais» ou de género.

Em quinto lugar, e intimamente ligada à recomendação anterior, está a particular atenção que deve ser dada ao papel e ao tipo de herói. Por exemplo, quando aparecem heróis «minoritários», eles são admirados pelas mesmas características dos «brancos» do sexo masculino ou porque as suas acções na narrativa beneficiam estes últimos? Por outras palavras, devemos responder à questão «que interesses serve um determinado herói?»

Devem também ser cuidadosamente analisados os efeitos da história e/ou das ilustrações na auto-imagem da criança. Em que grau, por exemplo, os livros contrariam ou reforçam a conotação positiva da cor branca e a conotação negativa da cor negra. Até que ponto a cor branca é associada à beleza, à limpeza e à virtude e a cor negra ao mal, à sujidade, à fealdade e à ameaça? Para a Anti-Defamation League, na escolha de um livro infantil, as ilustrações não devem ser descuradas, nomeadamente quando um editor «decide se é importante ou não incluir um determinado título numa colecção de livros para crianças é tão importante analisar as ilustrações ou imagens que acompanham o texto como o seu conteúdo (2003, p. 1-2).

Em sétimo lugar, deve-se ter em conta as qualificações dos autores e ilustradores para lidar com temas que se prendam com «minorias» étnicas, raciais ou culturais. O

Council on Interracial Books for Children recomenda ainda que se dê atenção à

perspectiva do autor. Esta recomendação é particularmente pertinente se tivermos em conta que a maior parte dos livros infantis eram, tradicionalmente, escritos e ilustrados por autores brancos pertencentes às classes média ou média alta, do que resultavam obras explicitamente ou implicitamente etnocêntricas ou eurocêntricas.

Em penúltimo lugar, deve ser dada atenção às palavras «carregadas» (loaded) e para a linguagem sexista e/ou racista: «selvagem», «primitivo», «preguiçoso», «malandro», «dócil» etc, são expressões carregadas de conotações negativas ou mesmo insultuosas.

Por último, na avaliação e escolha de um livro para crianças, deve-se ter em conta a data em que o mesmo foi produzido e editado. Segundo a mesma organização livros infantis não racistas e não sexistas eram raros, nos Estados Unidos, até meados da década de setenta. No que diz respeito a Portugal, é bem provável que, dada a ausência de uma opinião pública crítica a este respeito, continuem a ser publicados e vendidos, livros infantis contendo expressões, conteúdos e imagens não apenas altamente estereotipados como racistas ou sexistas.

A escolha de qualquer livro infantil, quer por parte dos pais quer por parte das instituições educativas, deve, nos nossos dias, obedecer a critérios muito exigentes e rigorosos, a escolha de livros de teor inter/multicultural, pelos motivos que já foram referidos, requer uma atenção e um rigor redobrados.