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SEMIOLOGIA: COMPLEXAS AFETAÇÕES DISCURSIVAS

O terceiro marco teórico articulador desse trabalho é a semiologia, vinculada historicamente com a complexificação dos processos de midiatização e com a emergência de múltiplos sistemas sociais. Em termos arqueológicos, a evolução da problemática se organiza em três momentos: a primeira semiologia, nos anos 1960, enclausurada no corpus de análise; a segunda, dos anos 1970, deslocada para enfatizar a produção de sentido; e a terceira, a partir dos anos 1980, com acréscimo da teoria do reconhecimento ou teoria dos efeitos de sentido, preocupada em abordar aspectos referentes à recepção (VERÓN, 2004: 83).

O funcionalismo da sociedade midiática, paradigma precedente (KUHN, 1998), privilegiava o “para que serve” a estrutura comunicacional. A primazia das intenções da produção contaminava o meio, enquanto mera “zona de transporte”, e o resultado do circuito da comunicação. Assim, essa perspectiva limitava as pesquisas para a dicotomia causa e efeito (FAUSTO NETO, 2013: 43). A formulação funcionalista tratava a linguagem e a circulação de sentidos como “atividade-serviço”, passando ao largo de todas as complexidades inerentes desse processo. A significação estaria estritamente articulada com os propósitos do destinador de uma mensagem. O sujeito falante determinaria a atribuição de sentidos para o destinatário, sem qualquer espécie de negociação simbólica entre as operações discursivas de produção e reconhecimento.

Somente com a linguística gerativo-transformacional de Noam Chomsky, avalia Verón (2004), é rompido o domínio dessa racionalidade instrumental da modernidade, tendo como paradigma fundador oriundo da biologia, conforme Verón (2004: 80-82). Nesse cenário, a teoria do sentido é deslocada do ponto de vista do locutor e suas intenções para problematizar a questão do observador dos sentidos. O sujeito falante deixa de ser o foco nos estudos sobre produção discursiva para ser reconhecido como um ponto de passagem na circulação. Os polos da produção e do reconhecimento passam a atravessar a discursividade social. Com isso, o sujeito deixa de controlar o seu próprio discurso, assim como os efeitos manifestados no interlocutor. “A convicção funcionalista – segundo a qual a linguagem estaria a serviço de um projeto consciencial – é assim recusada” (FAUSTO NETO, 2013: 45).

Na passagem da década de 1970 para 1980, quando as investigações começavam a se interessar pelos processos de reconhecimento, Verón (2013: 293) instaurou um esquema que

mapeava a cadeia da semiosis em um produto específico, que ele denomina de objeto discursivo (discurso objeto – DO). Era a materialização empírica de signos que possibilitaria a execução da análise semiológica. As propriedades são geradas a partir de uma gramática de produção (GP), o que realoca DO como “membro de uma classe”, pois a GP, a princípio, seria capaz de gerar um número indeterminado de objetos discursivos.

Figura 2 - Esquema da semiosis de um objeto discursivo

Fonte: (VERÓN, 2013: 293).

As narrativas estabelecem regras e princípios, organizados em GP. Elas operam como dispositivos de enunciação, os quais despertam os sentidos de um outro, o receptor deste discurso, que com suas percepções estabelece outras gramáticas, estas de reconhecimento (GR). Portanto, cada produto enunciado se constitui por gramáticas de produção, as quais influenciam na produção e permeiam o produto com marcas que possibilitam sua reformulação. As gramáticas de reconhecimento elaboram outras gramáticas que, por meio das marcas inseridas no discurso de recepção, também podem ser reconstruídas. Vale destacar que as condições sociais de produção nunca são as mesmas condições do reconhecimento (VERÓN, 2004: 51).

Conforme Verón (2013), as GPs formalizam operações que incidem nas características identificadas, mas não as explicam. Nesse sentido, postula a existência de

condições de produção (CP), que justificariam a presença das GPs da semiosis em análise. Como veremos na sequência, o processo de midiatização incita acoplamentos com gramáticas do reconhecimento (GR), as quais esquematizam a pluralidade e a não linearidade da circulação da semiosis que são possibilitadas por meio de condições de reconhecimento (CR). Para tanto, o semiólogo retoma os conceitos luhmannianos de sistemas sociais e sistemas psíquicos para mostrar a interpenetração gerada entre essas instâncias (CP + GP e GR + CR) no processo da circulação discursiva.

Essa abordagem das “teorias da complexidade” (FAUSTO, 2013: 47) não restringe a noção de discurso ao espectro linguístico. "O que é produzido, o que circula e o que produz efeitos dentro de uma sociedade são sempre discursos” (VERÓN, 2004: 61). Isso explica por que discurso e texto não são tratados como sinônimos. Dentre os postulados da análise discursiva, o semiólogo aponta que esta trabalha sobre as diferenças, tendo com a abordagem comparativa como princípio. Além disso, o discurso designa uma colocação de sentido no espaço-tempo singular. A redução de componentes de unidades-orações, característica da linguística, é o que a diferencia da análise discursiva, que não limita a abordagem e valoriza o contexto inserido.

A análise discursiva consiste na descrição de operacionalidades. Se uma superfície textual é composta por marcas, estas serão traços de operações discursivas subjacentes, as quais "devem ser reconstruídas (ou postuladas) a partir das marcas na superfície” (VERÓN, 2004: 65), presentes em um objeto heterogêneo imerso dentro da rede interdiscursiva da produção social de sentido que possibilita múltiplas leituras. Todo suporte midiático contém seu dispositivo de enunciação, denominado como contrato de leitura, que visa a construção de vínculos com o leitor via estratégias de contato que buscam construir vínculos. O sucesso deste está estritamente vinculado à capacidade de articulação do enunciador e, consequentemente, ao sucesso do suporte, já que ele é responsável pela criação de vínculos com o receptor (VERÓN, 2004: 216).

Nesse sentido, a leitura é uma construção de discursos entre enunciador e destinatário. Assim, contratos de leitura se constituem por "regras, estratégias e ‘políticas’ de sentidos que organizam os modos de vinculação entre as ofertas e a recepção dos discursos midiáticos e que se formalizam nas práticas textuais, como instâncias que constituem o ponto de vínculo entre produtores e usuários” (FAUSTO NETO, 2007: 10). Eles são construídos pela relação de escolhas feitas pelo enunciador tendo em vista um destinatário imaginado. Essa perspectiva, diferente do que foi visto na proposta funcionalista, não atribui um efeito de sentido automático,

embora toda mensagem produza efeitos. Com a processual midiatização das sociedades, desencadeiam "funcionamentos significantes cada vez mais complexos” (VERÓN, 2004: 85).

A distância entre produção e reconhecimento (Figura 2) é variável, sendo que desta diferença desponta o conceito de circulação. Não há traços ou marcas dela na superfície discursiva, diferente do que acontecem nas GP e GR. Como característica, podemos apontar que ela determina o modelo de sua dinâmica, materializando-se pela diferença entre os dois polos. Conforme Fausto Neto (2013: 46), por muito tempo a circulação foi tratada como uma “zona automática” no processo de semiosis social. Somente a partir da dimensão proposta pelos estudos da “sociedade em vias de midiatização” que esta adquiriu uma “dimensão problematizadora”. Nas palavras do pesquisador, “ela passa a se constituir em problema quando o tema dos efeitos é suscitado, uma vez que eles decorreriam do funcionamento da técnica, que desta feita despontaria como uma ‘variável causal’”.

Dessa compreensão, se afasta a concepção funcionalista de “zona de passagem” conforme é admitida a instabilidade proporcionada pela circulação entre produção e reconhecimento. Logo, ela seria “geradora de acoplamentos” e a “causa de descontinuidades” nessas instâncias (FAUSTO NETO, 2013: 47). Para o autor,

a circulação é concebida como uma região que trabalha segundo processos nos quais podem ser apresentadas marcas de sua atividade. Segundo acoplagens, põe em relação produção e recepção não como entidades abstratas, e sim como portadores de lógicas e gramáticas a partir das quais são enunciadas operações de produção de sentidos.

No atual contexto da sociedade em vias de midiatização, se acentua a complexidade entre produção e reconhecimento gerada por meio da transformação das práticas e processos realizados por essas instâncias. Esses contatos instauram “novas relações sociotécnicas”, ou seja, “novas formas de acoplamentos” entre sistemas e ambiente, as quais transformam práticas e organizações discursivas (FAUSTO NETO, 2013: 48). As relações sistêmicas entre os tradicionais polos da produção e reconhecimento são enfraquecidas e instigadas a mergulharem em “zonas de pregnâncias” proporcionadas estruturalmente pela circulação. Esses acoplamentos gerados deixariam traços em formas de linguagens, reunindo “elementos de lógicas, estruturas, gramáticas”. Logo, estaria nesse intervalo entre produção e reconhecimento leituras que reuniriam a reconstrução de gramáticas específicas, instituídas pelo observador de operações, aos moldes luhmannianos.

O multifacetado cenário sócio-técnico-discursivo se problematiza, acentuando a interdiscursiva simbiose entre tecnologias, sujeitos e instituições na produção social de sentidos.

Essa processualidade se materializa no discurso, por meio de operacionalidades, alterando lógicas de operação e estratégias enunciativas. Na prática jornalística, observa-se uma diminuição de abordagens heterorreferenciais e um crescente deslocamento para uma autorreferencialidade discursiva. Há ainda uma reformulação na concepção da audiência, deslocando a abordagem distante dos públicos para a busca de um protagonismo no âmbito reconhecimento. Nesse contrato, o receptor torna-se um cogestor do processo discursivo midiático (FAUSTO NETO, 2006: 12), possibilitado em zonas de pregnâncias com a produção. As noções de recepção são reformuladas na nova "arquitetura comunicacional" (FAUSTO NETO, 2010b: 58) com o tensionamento proporcionado pelas tecnologias, as quais são convertidas em meios de comunicação. Se na sociedade dos meios as fronteiras sistêmicas eram bem estabelecidas em fluxos lineares, emerge com a sociedade em vias de midiatização complexidades que reconfiguram a circulação, constituindo novas afetações entre produção e reconhecimento em uma zona de indeterminação, geradora de potencialidades e de natureza heterogênea. Portanto, a circulação assume posição de um terceiro polo em que as instâncias de produção e recepção, compreendidas pela ótica sistêmica, se acoplam em complexas afetações entre ofertas e reconhecimento, como veremos adiante no caso amazônico.

2 SISTEMAS TEÓRICOS

No primeiro capítulo apresentamos o ambiente teórico de onde partimos para abarcar o nosso problema de pesquisa, com base na tríade conceitual que envolve sistemas sociais, midiatização e semiologia. Assim, indicamos a perspectiva sociológica que nos amparamos, o olhar comunicacional adotamos e, em decorrência desses dois movimentos, apontamos especificamente para a abordagem discursiva como guia dessa dissertação. Essa articulação estrutural irá permear as discussões que seguem nesse segundo momento.

Dessas três dimensões, efetuamos um recorte para discutir as questões relativas aos sistemas jornalístico e ambiental. O primeiro, sobre o sistema jornalístico, ressalta suas processualidades históricas e ininterruptas. Ele é dividido em quatro etapas: (1) a formação do sistema jornalístico, (2) a emergência do jornalismo com influência do funcionalismo, tratado no ambiente teórico, (3) o jornalismo no cenário de crescente midiatização, também abordada anteriormente e (4) o jornalismo de dados como uma prática social decorrente da midiatização. Esse resgate histórico serve tanto para apresentar a complexidade sistêmica no jornalismo, quanto para diferenciar seus estágios, processos e influências.

O segundo, sobre o sistema ambiental, caminha no mesmo sentido. Ele também será dividido em quatro momentos: (1) da marginalização da temática ambiental para a midiatização, como marco constituidor sistêmico, (2) o jornalismo ambiental como fruto do acoplamento estrutural com o sistema jornalístico, (3) a emergência de um saber específico por meio dessas afetações, o saber ambiental, e (4) a problematização de questões de múltiplas territorialidades na contemporaneidade.